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ladies & gentlemen, Humpty Dumpty has just left the building


[Museu Fundação Oriente, Carrilho da Graça, 2008]


A distância entre a Ideia e a nossa percepção do mundo real é imensa. A essa diferença era em Platão o espaço. E o limite é espaço - espaço intersticial. O espaço do limite, ainda que sem extensão, é espaço: o espaço da geometria. E a geometria medeia a inacessível instância de Ideia e a realidade do mundo. O espaço, que não existe, torna-se. Devém pela desocultação. Pelo labor do geómetra que percorre o espaço entre as coisas, as descobre e lhes atribui o nome. É este o momento, este entre-dois, que se reconhece a realidade. A evidência que se revela.
A percepção do espaço implicará a criação contínua de espaço, um outro. Espaços múltiplos, contínuos, contíguos, separados, diferenciados, arrastados, nunca concluídos, na luz e na sombra. E inventamo-los pela luz e pela sombra. E esse é o ritmo da transformação da matéria.

Humpty Dumpty, sentado no alto fino muro, proclama o enclausuramento das palavras. Das coisas. Paradoxal com a sua precária situação no mundo, o seu corpo, sem juntas, sem dobras, com um limite unívoco, induz-nos ao erro das coisas fechadas.
O desejo do Museu da Fundação Oriente é esse. Fechar-se, ocultar-se, fixar-nos num mundo sem juntas e sem dobras, um mundo onde tudo é ‘complanar’. E, em rigor, o rigor autoritário do projecto de execução, eleva ao paroxismo a proposta do corpo do Humpty Dumpty. Precária situação no mundo.


Que lugar estranho para os The Bad Plus ultrapassarem os limites da convenção e demolirem o que faz diferir Stravinsky de Thelonious Monk de Aphex Twin de Kurt Cobain.

| João Amaro Correia | 12.10.09 |   | /

av. dom joão ii#2


Labirinto, máscara, espelho: as metáforas de Nietzsche são o canto do lamento e da perda inelutável com que a modernidade o intima. A matéria que enforma o espírito e já não o fulgor impalpável – irracional – na constituição do mundo.
Gémeas, máscara e labirinto, são as imagens, simétricas também, que o filósofo empresta à arquitectura. O disfarce epidérmico e hipócrita ou a abundância labiríntica do pensamento e da construção. Devoção dionisíaca ou ódio aos insuportáveis filisteus no ataque aos refúgios inautênticos do quotidiano.
E depois há os espelhos de Veneza, as suas profundas solidões e depois as cidades, já transformadas em ‘sistemas de solidão’ por Tafuri, na profusão indiferente de sinais e pistas e rastos e traços, elididos a cada colisão fortuita.

| João Amaro Correia | 29.9.09 |   | / / / /

av. dom joão ii


Todos os dias: de método e prática o pragmatismo torna-se metafísica, verdade quase indizível.

| João Amaro Correia | |   | / / / /

asfixia arquitectónica


[Moradia unifamiliar, José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, circa 1980]

A arquitectura como construção cultural.

| João Amaro Correia | 28.9.09 |   | /

'esvaído'


[Estrada Nacional 1, Batalha]


lembro-me das horas sobre o mar
do surdo rumor do casco dos navios
da tua boca colada à paixão dos mapas primitivos.

entretanto o teu corpo corre devagar para o litoral
e as casas por detrás dos cabelos são brancas
loucamente brancas.

no princípio eram as paredes
e havia o teu riso altíssimo encostado aos dias que
morriam nas paredes.

quem destruiu tudo isso?
quem matou as aves nos ramos da tua loucura?

oiço este rio que corre longe de mim longe de tudo
este corcel galopando pelos países -

quem canta esta noite?

entretanto tu atravessas a minha poesia com espadas de
neve
e falas de casas como quem fala do surdo rumor do casco
dos navios -

quem canta esta noite?

e o teu corpo vai correndo devagar para o litoral
e as casas por detrás dos teus cabelos são brancas
loucamente brancas.


[E as casas são brancas loucamente brancas, José Agostinho Baptista]


Ajustar os lugares para benefício dos homens na terra, rasgar pontes, desenhar fachadas ostentatórias, construir para a memória os monumentos e os túmulos, conceber o espaço vazio – a praça – onde os indivíduos passam e se cruzam, organizar os solos, abrir portas e janelas, fazer o espaço indizível: a arquitectura não descansa.



p.s. São poucos os lugares excluídos à asfixia.

| João Amaro Correia | 26.9.09 |   | / /

o discurso de Lisboa


Paulo Varela Gomes

| João Amaro Correia | 9.9.09 |   | /

landslide

[...]
It is hard to know how the current financial crisis will affect this trend. More than once I’ve heard it suggested that the downturn will be good for architecture. The argument goes something like this: The economic tailspin will put an end to the boom in gaudy residential towers that are distorting the city’s skyline. Cheap rents will attract young, hungry creative types. This will spawn a cultural flowering similar to that of the 1970s, when the Bronx was burning, graffiti artists were the norm and Gordon Matta-Clark was carving up empty warehouses on the Hudson River piers with a power saw.

But cheap rents alone won’t do it. On the contrary, the construction slowdown, if it lasts long enough, will likely drive many young talents out of the profession for good. It also looks less and less likely that a government-sponsored, Works Progress Administration-style civic project will revive the profession — another favorite fantasy of the ever-optimistic architecture scene.

Real change will first demand a radical shift in our cultural priorities. Politicians will have to embrace the cosmopolitanism that was once the city’s core identity. New York’s cultural institutions will need to shake off the complacency that comes with age and respectability. Architects will need to see blind obedience once again as a vice, not a virtue. And New Yorkers will have to remember why they came to the city in the first place: to find a refuge from suburbia, not to replicate it. That’s a tall order.


Nicolai Ouroussoff in New York Times, 24.08.2009



O Cozinheiro, o Ladrão, a sua Mulher e o Amante dela.

| João Amaro Correia | 24.8.09 |   | / / /

espaço político - do facebook ao campus da justiça

As notícias de Teerão disseminam-se através Facebook, Twitter, blogs, sms. A organização da resistência, virtual, expande e convoca e provoca a luta, real, pelo espaço público da cidade iraniana. O confronto violento entre as milícias Basij e os manifestantes da oposição ocorre no domínio físico da polis depois de disseminada no reduto da internet. O espaço público, da democracia e do confronto livre, manifesta-se, experimenta-se e atravessa o Facebook e a Praça Enghelab num trânsito de difícil controlo. Entre a rede e a arquitectura, entre a ininterrupta ligação e o espaço físico dividido – a arquitectura na sua ontologia é a compartimentação e hierarquização - a cadeia dos acontecimentos cede dos ecrans vertiginosos à luta corpo-a-corpo da e na rua. A arquitectura, como escolha, decisão, é o vínculo ideológico com o espaço. Um modo político de o nomear.

O carácter representativo da arquitectura é (sempre) manipulado ao serviço das ideologias: o Reich e a trágica fantasia da Welthauptstadt Germania perpétua, num discurso imutável e facilmente reconhecível pelas gerações; Stalin e a ostentação dos feitos heróicos soviéticos – em reacção à utopia imediatamente anterior da modernidade inapelável do Palácio dos Sovietes e da antropologia optimista do construtivismo; Wright e a quimera do automóvel que transportaria em si a liberdade individual; Le Corbusier e o homem novo na cidade radiosa, asséptica e monstruosa; Mies Van der Rohe e o encanto pela ‘transparência’ das grandes corporações capitalistas; o paroxismo whore de Philip Johnson no frontão furado do AT&T, Rem Koolhaas e a mala de truques do marketing e do bombardeamento imagético; da Cidade Universitária ao Portugal dos Pequeninos; de Raul Lino ao Bairro das Estacas. Uma lata de sopa de tomate, uma revolução. A moral é a amoral. Mas é da essência da arquitectura não ser neutra e ter com a realidade relação expressiva e comunicativa. E transformadora.


Recém inaugurado, o Campus da Justiça, é o nosso mais recente equívoco arquitectónico, político e simbólico. A começar pelo nome, Campus da Justiça, que nos transporta a um ágora específico onde é concentrada a administração da justiça democrática que o deveria ser por todo o território servido pelas leis do estado democrático. Não será preciosismo, o nome. Como o não é a referência à apressada reconversão programática de um complexo estruturado para receber escritórios e serviços num lugar que deveria revestir-se de alguma gravitas –aludir exclusivamente as especifidades programáticas, esse diktat muito moderno, não será o melhor trilho crítico - , ou o fervor, quase libidinal, da ‘eficácia’ concentracionária dos serviços judiciais que revela a profundidade extensa da ideologia da ‘técnica’ que devora qualquer hipótese de uma ideologia de Cidade aberta.
Plantado na monocultura de serviços do Parque das Nações, num território adormecido e instrumentalizado pelo zoning negligente do nosso urbanismo tardo-moderno, afastado do núcleo denso da cidade – e a cidade é densidade, multiplicidade e diversidade – cresce, longe da cidade e dos homens que supõe servir.
A arquitectura segue a rota do ‘tardo-capitalismo’ nacional e desta maneira impensada de construir as cidades. Umas mediocridade em ‘volumetrias’ ‘puras’, ‘transparentes’ – como os escritórios?, como a justiça de uma sociedade aberta? - ‘áreas generosas’, ‘open-spaces’, ‘arranjos exteriores’ de uma austeridade vulgar e comezinha.

O boicote de um grupo de juízes à inauguração do Campus da Justiça foi, antes de tudo, uma crítica à arquitectura e à polis que nela tem lugar e que reciprocamente a ergue. (Foi ao mesmo tempo comovente e confrangedor assistir ao depoimento de um juiz que trouxe consigo umas cadeiras antigas do Tribunal da Boa Hora na tentativa de acertar com o ‘espírito do lugar’.)

Poder-se-ia chamar aqui Habermas ou Bauman ou Jameson ou Vidler ou qualquer outro pensamento contemporâneo do espaço público e das relações essenciais entre o espaço, na sua conformação, e a qualidade da democracia, mas não se exagere. O Campus da Justiça é capaz de ser apenas mais um sintoma do deslumbramento tecno-provinciano do Primeiro-Ministro. Que nos representa exemplarmente.


para o Domingos Miguel

| João Amaro Correia | 24.7.09 |   | / /

câmara café de lisboa

- Os tipos do Porto pensavam que eu era de Lisboa. Tive que lhes dizer ‘oh meus amigos, aquilo que mais gosto em Lisboa são as duas pontes e o aeroporto’.
- A única coisa de jeito aqui em Lisboa é o casino. E nem é bem em Lisboa. É no Estoril.


O diálogo, impregnado de uma profundidade midlle-class-viril-imbecil, entre dois cidadãos que trabalham em Lisboa – presume-se que vivam em Lisboa ou num dos seus subúrbios – que recorrem à bazófia altiva como subterfúgio da desresponsabilização. Vivem num lugar que lhes não interessa que não seja pela extracção de uma parca prosperidade que lhes garanta sustento e visitas ao casino. Ostentam o desprezo pela cidade no elogio da sexta-feira escapista: ‘que nunca mais chega’.
‘Somos todos de fora de Lisboa’, diz-se. Poucos somos os de terceira, quarta, geração de lisboetas. Muitos por necessidade, poucos pelo desejo. (As razões explicam-nas facilmente a economia, a sociologia, o deformado desenvolvimento regional e a ausência de coesão territorial. E a cultura.) A maior parte indiferente, legitimamente indiferente, diga-se, à cidade. Porque a cidade, esta Lisboa contemporânea, é mero dispositivo utilitarista. Porque é reduzida a uma cidade de serviços, a um imenso escritório de trânsito congestionado em frente ao Mar da Palha.
Deste oceano de desprezo releva o deserto, a apatia, a renúncia à polis e à comunidade. Se não somos lisboetas, também já não somos da ‘terra’. O que é um óptimo motivo para que a quem tudo o que seja excluído do umbigo seja também indiferente e irrelevante. Mesmo que seja o lugar onde passa a maior fatia das horas do dia.
Falha o desejo de a habitar (plenamente), falha o desejo de a transformar.

| João Amaro Correia | 15.7.09 |   | / /

da existência das ordens profissionais e também da dos arquitectos

Sou licenciado em Economia. Tenho dois mestrados e um doutoramento em Economia. Sou professor de Economia numa universidade pública. Sou membro da Associação Económica Europeia. Tenho artigos publicados em revistas científicas internacionais de Economia. Com todas estas qualificações, o Estado português não me reconhece como economista. Porquê? Porque não estou inscrito na Ordem dos Economistas.

Quais as consequências de não estar inscrito na Ordem? De acordo com artigo 4.º dos seus Estatutos, não posso fazer “análises, estudos, relatórios, pareceres, peritagens, auditorias, planos, previsões, certificações e outros actos, decisórios ou não, relativos a assuntos específicos na área da ciência económica”. Resta-me, sempre que quiser elaborar um destes estudos, pedir a um meu aluno que assine por mim.

A Ordem dos Economistas não é um exemplo isolado. A pouco e pouco, Portugal tem-se tornado num estado corporativo. Advogados, arquitectos, biólogos, enfermeiros e muitos outros organizam-se em torno de corporações profissionais. Há ainda Pró-Ordens para psicólogos e professores.

Por que existem estas corporações profissionais? Tipicamente, argumenta-se que determinadas actividades são muito exigentes e especializadas e que os prejuízos que maus profissionais causariam à sociedade seriam tremendos. De seguida, diz-se que os profissionais no activo estão em melhores condições para definir os requisitos da sua profissão.

Esperar-se-ia que as Ordens Profissionais e outras corporações dessem formação adequada sobre o exercício da profissão e que procedessem a um controlo de qualidade, punindo infracções a códigos deontológicos. É isto que observamos? Claramente, não. Há uns anos, por exemplo, não houve qualquer condenação aos médicos que passaram centenas de atestados a alunos de Guimarães para faltarem aos exames. Há uns dias, a Inspecção-Geral de Saúde concluiu que a um número alarmante de baixas médicas nem sequer correspondia um único registo clínico do “doente”. De ambas as vezes, a reacção da Ordem dos Médicos foi dizer que os médicos não são polícias. Se nem com estes escândalos mediáticos as Ordens actuam, o que esperar no dia-a-dia? Na verdade, em vez de garantirem as melhores práticas, as Ordens protegem, de uma forma autista, os seus associados.

A única acção visível da Ordem dos Médicos tem sido a de limitar o número de médicos. Desde que existe, tem-se esforçado por impedir a abertura de novos cursos de medicina e o aumento do número de vagas nos cursos já existentes. Quase sempre com sucesso. Os farmacêuticos têm conseguido impedir a abertura de novas farmácias. Mesmo a ténue e meritória liberalização ensaiada pelo governo Sócrates serve os interesses das farmácias instaladas. A Ordem dos Notários quer o monopólio da autenticação de documentos. A Ordem dos Arquitectos recusou-se a reconhecer o curso de Arquitectura da Universidade Fernando Pessoa. A Ordem dos Revisores Oficiais de Contas exige uma licenciatura adequada e obriga os candidatos a sujeitarem-se a quatro exames escritos e um oral. Cada exame custa 300 euros. Antes dos exames os candidatos são aconselhados a frequentar um curso de preparação com quatro módulos, que decorre ao longo de um ano. O custo de cada módulo é de 1650 euros. A pequena minoria que passa nos exames tem ainda de fazer um estágio de três anos com remunerações baixíssimas.

As estratégias variam, mas o objectivo é o mesmo: criar barreiras hercúleas que impeçam o acesso à profissão. É este o papel das Ordens. Restringir a oferta e a concorrência. Os efeitos de tamanhos obstáculos são óbvios. Já em 1776, Adam Smith escrevia que "os privilégios exclusivos das corporações, os estatutos de aprendizagem, e todas as leis que, em empregos determinados, restringem a concorrência (...) tendem a sustentar salários e lucros a um nível superior à sua taxa natural. Tais sobrevalorizações podem durar tanto quanto as regulamentações que lhe deram origem".

Não vale a pena ter ilusões. As Ordens, e outras corporações profissionais, servem para garantir remunerações anormalmente elevadas aos seus associados, perpetuando os seus privilégios, prejudicando e subjugando o interesse público a interesses privados.


Luís Aguiar-Conraria

via De Rerum Natura

| João Amaro Correia | 9.6.09 |   | / /

um pequeno incómodo


A matéria posta em prática em lúdica combinação da ordem vertical que sustenta a linha horizontal do céu do rio do passeio público. O rigor mecânico que as junta e ao ferro e ao vidro atraiçoado pelos artifícios da indústria do silicone que hesita – é de seu mister oscilar – ao ritmo da passagem das horas e das estações.
Tudo severamente ordenado, imaculadamente pintado em branco obcecado, e o chão já branco-sujo pela marcha da visita guiada à boa vida da arquitectura.
Rebarbativa, num ensaio de optimismo autista, a caixa torna-se desprotegida no seu excesso minuciosamente despido. Kitsch de reflexos que encadeiam os olhos desprevenidos e ouvidos mais prudentes.
Fartos de sentimentos decorativos e vãos, que se orgulham da sua amplitude pitoresca e frívola, já não esperamos que a arquitectura nos proporcione mais do que a inconsequência de um pequeno incómodo quotidiano.

[Esplanada na Doca do Bom Sucesso, Lisboa, Bar "À Margem", João Pedro Falcão de Campos e José Ricardo Vaz]


para a Maria João


adenda: Tem razão o prezado leitor. Corrijo o equívoco em que fui induzido. A esplanada "Á Margem" é, de facto, dos arquitectos João Pedro Falcão de Campos e José Ricardo Vaz. Aos visados o meu pedido de desculpa.

| João Amaro Correia | 26.4.09 |   | / /

ministério das cidades

[...]
é um país, não há que errar, talhado
para a aventura de queimar
papéis e gente,
tão desigual como os outros.
os primeiros autocarros passam,
a manhã levanta devagar a cabeça,
os pássaros, não esqueçamos os pássaros,
passam, de viagem.

[Segundas Moradas, 5, António Franco Alexandre]

| João Amaro Correia | 4.3.09 |   | /

bate-chapas: a reconquista

O trânsito que cruza(va) a Ribeira das Naus até ao Campo das Cebolas é maioritariamente de passagem e de atravessamento da cidade. A manhã de sol de hoje provou-o à saciedade e revelou o fracasso dos oráculos dos nossos sacrossantos automóveis. Por uma vez, e espera-se que para exercício futuro, a cidade não é “desenhada” em função das acessibilidades, funcionalidades, e outros ismos que carregam consigo o apego ao egoísmo anti-urbano, anti-democático.
Há qualquer coisa de reconquista quando se atravessa para o Cais das Colunas sem sermos gaseados por combustível queimado, quando nos sentimos acompanhados por estranhos mesmo que não nos atrevamos a desejar o V Império nem o regresso de Sebastião, quando voltamos a experimentar simultaneamente o desconforto e o esplendor e o sublime do Terreiro do Paço. A Lisboa dos bocados urbanos circunscritos pelas auto-estradas do desenvolvimentismo provinciano pode agora transformar-se numa cidade de civilização e de liberdade.
Por disperso e anárquico que seja o processo de planeamento do que hoje se iniciou, deu-se a primeira martelada na chapa da ditadura automóvel na cidade de Lisboa. Talvez ainda não pelas razões certas, ou por todas as razões certas, podemos começar a desejar uma cidade em que se consiga habitar o e no espaço público, onde, por exemplo, os amantes deixem de marchar em fila indiana e possam caminhar lado a lado, de igual para igual, entre eles e a cidade, sem o entulho tecnológico e social da omnipresente viatura individual. E a quem queira esperar D. Sebastião, que se sentem no Cais das Colunas, esperem por um dia de nevoeiro, enquanto a nós, os mais prosaicos e triviais, é-nos suficiente matéria de felicidade o sol e a cidade.

| João Amaro Correia | 16.2.09 |   | /

uma vez desaparecido o observador todas as coisas se despenham*

Havia uma janela e depois uma rua. E depois de mesas a imitar madeira e usos antigos havia um velho e uma criança e uma mulher bela de ombro aberto e a luz de dias vivos. Havia um café que se voltava para a rua. Era a cidade no café ao balcão e o cálculo do comércio do dia, pela manhã e, à noite, a adivinhação dos incêndios de que se alimentam os versos ansiosos e até os movimentos de um coração impaciente. A Pastelaria Cister, Lisboa e Washington e Bruxelas, o mundo!, aos tropeções.
Quieta e submissa trocou-se da Rua da Escola Politécnica inclinando-se para um televisor uniformemente liso pendurado à entrada para a casa de banho.
Não é lamentável quando se perde alguma coisa. Apenas triste.


*António Franco Alexandre,
Dos Jogos de Inverno

| João Amaro Correia | 29.1.09 |   | / /

learning from alcochete#2

Como deves calcular, António, esta foi uma pouco inocente blague à volta da actualidade política, cultural, arquitectónica e ética, num tema que está na moda e sendo graça coube-me o gesto de te homenagear no teu “gosto” pelo Bob Venturi.
Dizes bem do Learning From Las Vegas como manual de uma certa “openness” do olhar do arquitecto sobre o mundo. É, sem qualquer dúvida, uma das mais bela lições do séc.xx – até no feio poderemos encontrar o bonito, tenhamos olhos para o poder olhar. E transformar. Transformar parece-me a palavra chave desta leitura. Transformar o banal, o feio, o pouco virtuoso, (sim, isto é também uma questão de moral), resignificando-o, em qualquer coisa de belo, único, bom. Todo um programa estético e ético, se porventura a estética não é já matéria ética. Ou de vida.
Tecnicamente até poderemos traçar o paralelo entre o dito alçado com aquelas evocações de velas, com a decorated-shed. Não é aquela estrutura espacial submetida a uma ditadura do programa e depois ornada com a dita metáfora fluvial? Por outro lado, e com um bocadinho de esforço, até poderemos encontrar aproximações da duck-shed com aquelas arquitecturas – e julgo estar a ser generoso no qualificativo daquelas atrocidades culturais como “arquitectura”. Ora, é aqui, neste preciso ponto, em que os architectural systems of space, structure, and program are submerged and distorted by an overall symbolic form, ali Zona de Protecção Especial do Estuário do Tejo, que nos detemos em perplexidade. E depois atravessamos a ponte na verificação de que symbolic form é aquela. E aqui, o pequeno ponto, é já um território vasto de perturbação. Se me é permitido, a questão que se coloca aqui é já ideológica e política. Que symbolic form é aquela e o que é que representa? O que é aquele derrame de nostalgia ruralizante e que valores apresenta e, orgulhosamente, desejará propagar? Enfim, que mundo ali se propõe?
As lições equívocas do Estado Novo a propósito de uma arquitectura popular portuguesa, unívoca e unitária, ainda moram no subconsciente do nosso “mercado” - não esqueçamos que lidamos com o mercado da indústria da construção civil e com o mercado cultural. O “gosto” ali proposto, o mundo ali ostentado, com todas as implicações ideológicas em que incorra, é um mundo fascizante. Perdoe-se-me a força desta palavra mas não se encontra outra para exprimir a carga retrógada, obscurantista, inculta, manipuladora – em sentido ideológico -, revestida num glamouroso e leviano embrulho de “modernidade” e “cosmopolitismo”. Para além do equívoco cultural e arquitectónico que ali se exibe o facto pernicioso que se deverá assinalar é o carácter reaccionário do complexo comercial.
Não é “apenas” a disneylandização do mundo, nem a espectacularização do quotidiano, como referes. Muito para além dessa Las Vegas global, tardo-capitalista, (Las Vegas será aqui um equívoco, pois a sua génese é “popular” e não corporativa), é uma construção que nos permite interpretar um momento exacto da sociedade portuguesa. Provavelmente será isso que nos assustará. Isso e a demissão da arquitectura de qualquer tentativa – tentação – crítica, mas a isso parece que já nos habituamos no nosso “viver habitualmente”, (revisto e aumentado, naquele pedaço de arquitectura).

Sabiamente as “grandes corporações globais” aproveitam estas “modas” do “gosto” local. Não se lhes exigirá uma “moral”, como parece ser moda no novo discurso anti-liberal. O que afirmo é que o ADN arquitectónico do Freeport é, na sua essência, português e contemporâneo. Desgraçadamente Salazar e António Ferro deverão estar a rir-se do outro lado.

| João Amaro Correia | 25.1.09 |   | / /

learning from alcochete

duck

1. Where the architectural systems of space, structure, and program are submerged and distorted by an overall symbolic form. This kind of building-becoming-sculpture we call the duck in honor of the duck-shaped drive-in, “The Long Island Duckling”, illustrated in God’s Own Junkyard by Peter Blake.




decorated shed


2. Where systems of space and structure are directly at the service of program, and ornament is applied independently of them. This we call the decorated-shed.


[Robert Venturi, Denise Scott Brown, Learning From Las Vegas, 1972 + Freeport, Capinha Lopes e Associados, Alcochete]



para o António

| João Amaro Correia | 24.1.09 |   | / /

each city is an archetype rather than a prototype*

- Excuse me, where can i buy the newspaper nearby?
- There's a store there, when you turn left but I don't known if it's still open, it's after 1pm.
- Oh!, i see, this is not really a metropolitan city.
- Yes, that’s one of our problems.


Praça das Flores, 17.01.2009

* Robert Venturi & Denise Scott Brown, Learning from Las Vegas

| João Amaro Correia | 17.1.09 |   | /

fenomenologia da marquise#2

Définition du mot :
marquise

Nom féminin singulier
femme d'un marquis
(architecture) auvent vitré qui protège de la pluie
(joaillerie) bague à chaton oblong
fauteuil à deux places
(pâtisserie) gâteau voisin de la charlotte

Le Dictionnaire



marquise | s. f.
marquise

do Fr. marquise
s. f.,
varanda ou compartimento envidraçado.



Cultura pode até ser descrita simplesmente como aquilo que torna a vida digna de ser vivida.

T.S. Eliot, Notas para uma Definição de Cultura



mariazinha, deixa-me desmanchar a tua marquise!


António Machado




As marquises serão o último reduto de apropriação do espaço e da arquitectura por parte de quem os habita. Da teia legislativa que hiper-regula a construção de um edifício singelo – mas deixa ao abandono a pressão especulativa dos promotores – à paupérrima cultura da maior parte do edificado; da vontade indómita do arquitecto pressurosamente ilustrado, ao remedeio civilizacional do promotor e construtor, sobra para o habitante uns quantos metros quadrados de liberdade.
A arquitectura, também como escolha política, porque divide o espaço de maneira consequente com determinada representação do mundo, será sempre o lugar do desejo.
Depois de uma compartimentação tipológica minuciosamente detalhada para um quotidiano distraído, burocraticamente administrado pelo RGEU e economicamente subordinado às “mais-valias” do promotor, a varanda expia o mal-estar de uns poucos de restos do dia-a-dia. Um pequeno, mínimo, escritório que ali se poderá montar, um sítio, finalmente, para as máquinas que a produção capitalista “inventa” para facilitação da vida – e da alimentação da própria produção capitalista – que, não sendo “bonitas”, - uns monos brancos com uns buracos a meio - se recolhem aos 2,5m2 excluídos da perspectiva da sala ou da cozinha e que destoa na fotografia da auto-representação do habitante. E na cultura do quotidiano apressado elide-se o desejo de “ir para a varanda” [cf. série “Vamos hoje para a varanda?” de Maria Inês de Almeida no Corta-Fitas], o desejo de um momento em que a domesticidade e privacidade do interior da casa poderá encontrar-se com a atmosfera da cidade, sem perda do recolhimento e da privacidade.
O caso da marquise ultrapassa a questão estética, ética e moral. A marquise não é boa nem má. Não é bonita nem feia. Será apenas um constrangimento(quase) existencial. Quando as necessidades, mesmo as mais ínfimas, da vida não encontram lugar na arquitectura. Ou quando a arquitectura não seja capaz de se abrir à vida.

Dessa abertura disse-nos Alvar Aalto: I see it as a very positive manifestation that the artist is in a sense denying himself by going outside of his traditional sphere of work, that he is democratizing his production and bringing in out of a narrow circle to a wider public. The artist thus steps in among the people to help create a harmonious existence with the help of his intrusive sensibility, instead of obstinately upholding the conflict between art and non-art which leads to acute tragedies and a hopeless life. [Sketches, Alvar Aalto].
E Manuel Tainha, provavelmente em evocação à marquise da Brandoa, no Cais-do-Sodré:


[Agência Europeia de Segurança Marítima/Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, Manuel Tainha, Lisboa]

| João Amaro Correia | 9.1.09 |   | / /

fenomenologia da marquise


[Av. Almirante Reis, Lisboa]

| João Amaro Correia | 5.1.09 |   | /

lugares, cidades, identidades


isto é o bairro
excitante bairro
distante bairro
alucinante
isto é o bairro
excitante bairro
distante bairro
apaixonante

isto é o bairro
excitante bairro
está no sangue
na vida, apaixonante
movimento
gajos ficam fora 24horas do andamento
bairro
excitante bairro
corre no sangue
a vida e a morte alucinante
bairro
movimento, andamento
gajos ficam fora, mas de dentro

aqui encontra profetas, poetas
pensadores revolucionários
como o Mário Viegas,
estranha forma de vida
aqui por entre as vielas
isto é o bairro
aqui ninguém é piegas, hey
todas as noites temos barricada
estrada cortada
enquanto a Foz está bem policiada
aqui encontras tudo e não encontras nada
branca, castanha,
beat boys, goe’s e street boys,
pitbulls, rottweilers e red skins
gunas, carros kitados, grandes colunas,
fanáticos de futebol, ultras de Portugal
de cachecol
na mala um taco de basebol
vejo fora nas ruas que apanham mocas com putas
fogem da bófia e carros patrulha
vejo políticos no jogo, no roubo,
vejo o meu povo
mas nunca vi ruas pavimentadas oh

pj’s, rusgas os gangs, o sangue
rixas dos ninjas
saltam das carrinhas




Como expressão cultural o hip-hop e o rap decorre das ruas. Tem origem num contexto urbano pós-industrial, em bairros de rendimento, onde as perspectivas das gerações mais novas seriam tão largas como a extensão do ghetto. Está associada a uma cultura de resposta à repressão que muitas vezes a renovação urbana compreende, à deterioração das condições que, em determinadas zonas, acompanhou a desindustrialização. A exclusão é urbana, só depois social. Daqui ao fechamento das comunidades sobre si mesmas, resguardadas pela espessura do ressentimento e do ódio, o salto é ínfimo e evidente.
É, portanto, o hip-hop um discurso do e no espaço público, independentemente da linguagem desse discurso, que é, genericamente, crua.
Não sendo observador do fenómeno, calhou em zapping de insónia apanhar na (inenarrável) MTV-Portugal o vídeo de Ex-Peão, Bairro. O vídeo chega-nos como um documentário, uma digressão por um bairro degradado do, (presumivelmente), Porto. Já este ano em França se assistiu ao fenómeno do vídeo Stress, dos Justice, que serviu de pano de fundo a um debate em volta da violência das imagens e dos porquês dessas imagens, ou antes, o que originará essa estética crua do ressentimento.
As primeiras imagens - degradação urbana, o puto com o dedo médio apontado à câmara, como uma saudação de boas-vindas ao que aí vem – são carimbadas com códigos de barras, como que a marcar a uniformização, massificação, dos costumes e comportamentos, inevitáveis da sociedade de consumo. A própria marginalidade – no sentido cultural – é trazida ao mainstream da comercialização massificada. Seguem-se planos de um urbanismo legitimado pelo selo modernista: torres exclusivamente habitacionais, distantes umas das outras, separadas por impossíveis “zonas verdes”, ruas largas, dimensionadas para o automóvel.
O rapper inicia o seu discurso, contraponto às imagens da pobreza e exclusão. Elegíaco da ordem das ruas, apaixonado, o poema do MC, serve ao mesmo tempo de denúncia e interrogação aos fenómenos marginais – no sentido social – que fazem o quotidiano do bairro.
Antes da falência dos modelos de inclusão social, de que vamos tendo notícia diária, a falência é do urbanismo. A ghettização social decorre da compartimentação [zonning] da própria vida a que este desenho urbano conduz. A vida é, aqui, na rua, nas galerias de distribuição dos edifícios, nos percursos distantes entre cada edifício, num soçobrar da diferença entre o doméstico, privado, e a esfera pública. Ao invés de ruas tradicionais, com passeios suficientemente largos para albergar uma vida comum, as ruas ou são intersticiais ou de perfil via-rápida.
O espaço público deixa de ser suporte de um habitar seguro, mutuamente vigiado. São sórdidas fendas entre edifícios divididos como torres rivais. O espaço público é ainda o território da afirmação de discursos. Já não pelas palavras, mas pela 6.35.


[Bairro, Ex-Peão, 2008]

p.s. A transcrição do poema foi feita de ouvido. Contém imprecisões.

| João Amaro Correia | 17.12.08 |   | /