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perpetuum mobile


[Mercators Projection, Icebergs Series, David Burdeny, 2007]


Mas porque estar aqui é muito, e porque tudo
o que é daqui aparentemente precisa de nós, estas coisas efémeras, que
estranhamente nos dizem respeito. A nós os mais efémeros. Cada uma
uma vez, só uma vez. Uma vez, não mais. E nós também
uma vez. E nunca mais. Mas o
ter sido uma vez, mesmo uma só vez:
o ter sido terreno, parece irrevogável.


[As Elegias de Duíno, A Nona Elegia, Ranier Maria Rilke]



A nova doutrina: o espaço hesita. Flutua ou naufraga, ergue-se ou soçobra.
Desamparado de qualquer imagem do mundo, livre de qualquer crença matricial e fundadora. Expulsos do lugar único e indivisível, o Paraíso, caímos no território que exige trabalho. Só depois das mãos, a paisagem.
Nem lugares, nem não-lugares, apenas [im]possibilidade de nos reconhecermos num lugar para a existência. O espaço que a arquitectura se encarregará de nomear, fixar, para que o ser exista.



| João Amaro Correia | 2.10.09 |   | /

av. dom joão ii#2


Labirinto, máscara, espelho: as metáforas de Nietzsche são o canto do lamento e da perda inelutável com que a modernidade o intima. A matéria que enforma o espírito e já não o fulgor impalpável – irracional – na constituição do mundo.
Gémeas, máscara e labirinto, são as imagens, simétricas também, que o filósofo empresta à arquitectura. O disfarce epidérmico e hipócrita ou a abundância labiríntica do pensamento e da construção. Devoção dionisíaca ou ódio aos insuportáveis filisteus no ataque aos refúgios inautênticos do quotidiano.
E depois há os espelhos de Veneza, as suas profundas solidões e depois as cidades, já transformadas em ‘sistemas de solidão’ por Tafuri, na profusão indiferente de sinais e pistas e rastos e traços, elididos a cada colisão fortuita.

| João Amaro Correia | 29.9.09 |   | / / / /

av. dom joão ii


Todos os dias: de método e prática o pragmatismo torna-se metafísica, verdade quase indizível.

| João Amaro Correia | |   | / / / /

o avesso do avesso do avesso



Não são os lugares que importam - é a maneira de lá chegar.

Miguel Esteves Cardoso in Público, 5.8.2009

Estar entre-dois* dilata a ansiedade: e é necessária sabedoria paciente para descobrir o melhor caminho; que, raras vezes, é a linha recta.
Dizer, portanto, que importa mais o caminho que o lugar é só possível a quem sabe sempre para onde regressar.

*Michel Onfray

[Micromegas, Daniel Libeskind, 1981]

| João Amaro Correia | 5.8.09 |   | / /

Zaratustra odiava as cidades



Uma das evidências dos lugares é a arquitectura. O espaço construído no lugar, do lugar, que, no refluxo minucioso do seu trabalho telúrico, subterrâneo, co-labora com as pedras que juntamos. É pelo desejo que as mãos fazem coincidir e revelar a geografia com o que transportamos: montanhas e vales; mitologias pessoais e colectivas; experiências do passado que não recordamos; o corpo; a superfície fria da solidão necessária à mais proveitosa reunião gregária. Depois a topologia. A invenção dos nomes e tentativa de dizer o mundo. O combate à resistência do mundo que persiste em ocultar-se e em dizer-se. Talvez menos subtil e volátil que a poesia, é também este o trabalho da arquitectura.

Michel Onfray experimenta dizer os lugares através da(s) viagem(s). Do elogio da viagem. O viajante, nómada que se cumpre no desenraizamento e na afirmação dionisíaca da descoberta de si no mundo largo e vasto e diverso. É a este viajante que cabe contrariar a supressão da História que as cidades globais pretendem contar. É este o Marco Pólo exaltado que conta ao Kahn, de si para si, a beleza que encontra no mundo – e nas cidades. O viajante que celebra o avião ‘que troça do ar’ e ao fazer a volta ao mundo é com o prazer infantil se comove com distância que nos une a todos ao ‘fogo furioso incandescente’ do centro da Terra. O viajante, máquina desejante de Deleuze, ligação e interpenetração dos ‘fluxos contínuos’ que nos re-ligam aos confins do Universo.

A alternância entre partidas e chegadas possibilita uma verdadeira definição do habitar tão caro a Heidegger.

O reencontro. Ítaca excluí o viajante da errância. O Judeu Errante, o condenado ao qual não é permitido fixar-se – habitar - é o que nunca chega a casa, o que nunca acha o sentido da viagem. E do mundo. A viagem - o mundo - só se reconhece na sua plenitude no reencontro com a morada. A casa. O habitar. 'Na arte do habitar concentram-se práticas de arquivo quotidianos, é verdade, mas também se articulam hábitos, rituais sem os quais a angústia não pode ser conjurada, permanecendo e consumindo o corpo e a alma.' É necessária a demora e a ritualização dos dias. Permanecer, ser, junto ao fogo familiar e determo-nos nas leis da hospitalidade que exigem tecto sedentário. O lugar abandonado - para outros se constituírem - reencontra-se no habitar.

Eis a perturbação do viajante que é também política: contra a ponderosas razões (e i-razões), de Estado, sangue, de solo, é o que procura o mundo, dizê-lo de novo, singular, único; é quem perturba e desorganiza a disposição social estabelecida. É o que ama a liberdade, conduz o seu destino pelo Sol e contraria a paz aparente do quotidiano. O estrangeiro que nos outros lugares (do outro) se descobre a si mesmo. ‘Nós próprios, eis a grande questão da viagem.’

O mundo constituído e dito pelos lugares. Anti não-lugares.


[Teoria da Viagem – Uma Poética da Geografia, Michel Onfray]


para o António

| João Amaro Correia | 29.7.09 |   | / / /

e velhice é passado que se tornou presente, é passado apenas recoberto de presente

A identidade do lugar , que é o mesmo de trezentos ou novecentos anos atrás, resiste no fluxo do tempo, que passa por cima dele e continuamente modifica muitas coisas, ao passo que outras, de importância decisiva para o quadro geral, por serem recordações e testemunhos da antiga dignidade, são conservadas com reverência, num piedoso desafio ao tempo e também por orgulho.

Thomas Mann, Doutor Fausto

| João Amaro Correia | 21.4.09 |   | / /

aqui [é o que aqui é]

i.

[...]
; e sob o som
Do vento não pensar em dor alguma
O som das poucas folhas,

Que é o som da terra
Cheia do mesmo vento
Que sopra no mesmo deserto lugar.
[...]


[Boneco de Neve, Wallace Stevens]


ii.

[…]
Maintenaint donc que j’ai dans la perception la chose même, et non pas une representation, j’ajouterai seulement que la chose est au bout de mon regard et en général de mon exploration; sans rien supposer de ce que la science du corps d’autrui peut m’apprendre, je dois constater que la table devant moi entretient un singulier rapport avec mes yeux en mon corps: je ne la vois que si elle est dasn leur rayon d’action; au-dessus d’elle, il y a la masse sombre de mon front, au dessus, le contour plus indécis de mes joues; l’un et l’autre visibles à la limite, et capables de la cacher, comme si ma vision du monde même se faisait d’un certain point du monde. Bien plus: mes mouvements et ceux de mes yeux font vibrer le monde, comme on fait bouger un dolmen du doigt sans ébranler sa solidité fondamentale.
[…]
Ainsi la perception nous fait assister à ce miracle d’une totalité qui dépasse ce qu’on croit être ses conditions ou ses parties, qui les tient de loin en son pouvoir, comme si elles n’existaient que sur son seuil et étaient destinées à se perdre en elle.
[…]
c’est en regardant, c’est encore avec mes yeux que j’arrive à la chose vrai, ces memes yeux qui tout à l’heure me donnaient des images monoculaires: simplement, ils fonctionnent maintenant ensemble et comme pour de bon. Ainsi le rapport des choses et de mon corps est décidément singulier: c’est lui qui fait que, quelquefois, je reste dans l’apparence et lui encore qui fait que, quelquefois, je vais aux choses mêmes.

[Le Visible et l'Invisible, Maurice Merleau-Ponty]

| João Amaro Correia | 20.11.08 |   | /

per scapere


O que existe de "natural" na natureza, a sua sensualidade imediata, só é entendido enquanto enigma pelo artifício de uma construção mental.
[...]
Algo parecia demasiado, por isso nenhuma história pode sobrepor-se. Algo como a invenção de uma pintura de paisagem. O assunto "oculto", que se ausenta assim da representação colorida do quadro, manifesta na sua nudez o facto-pintura, sem o álibi ilusório de um qualquer assunto. O facto-pintura - o surgimento conjunto da paisagem e da pintura.

[A Invenção da Paisagem, Anne Cauquelin]

| João Amaro Correia | 14.9.08 |   | /

teatro de água


[Aldeamento da Prainha, Piscina, Gonçalo Ribeiro Telles]

| João Amaro Correia | 24.8.08 |   | /

revelação

O templo, no seu estar-aí [Dastehen] concede às coisas o seu rosto e aos homens a vista de si mesmos.

Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte


O filme leva-nos a Mopu. O filme é sobre Mopu. O filme é Mopu. Cidade remota, na base dos Himalaias, onde “as crianças são como as crianças doutros lugares, as mulheres são como as mulheres doutros lugares e os homens são como os homens doutros lugares”. O que é diferente é Mopu.
As privações de um lugar a 2700m de altitude que resgata o que de mais humano existe em cada homem. É o lugar que habita os habitantes. As mãos e as faces maceradas pela carência do mundo onde este é mais vasto. E nós, homens, mais pequenos.
Onde melhor o homem e as coisas se revelam.

[Michael Powell, Black Narcissus, 1947]

| João Amaro Correia | 12.7.08 |   | / / /

o nome do lugar

A admiração por um grande verso nunca vai para a sua espantosa habilidade, mas para a novidade da descoberta que contém.
Cesare Pavese, Ofício de Viver, 9.10.1935

| João Amaro Correia | 23.6.04 |   |

Genius Loci

No dia nove à tarde depois de dar por encerrada a primeira parte do meu diário, quis ainda desenhar a estalagem e a estação da mala-posta do Brenner, mas não consegui captar o carácter do lugar e fui para casa mal disposto."

J.W.Goethe, Viagem a Itália

| João Amaro Correia | 6.2.04 |   |

o espaço e a memória

“A primeira prova da existência do indivíduo é a ocupação do espaço.”
Le Corbusier

A metáfora arquitectónica da representação do pensamento que é a imagem do labirinto não poderá reduzir-se apenas a esse estatuto de representação: uma possibilidade de pensamento como um caminho que é criado, desbravado numa teia complexa de possibilidades. Tal como para a arquitectura e para o espaço urbano que a cidade propõe através das múltiplas arquitecturas, como para o pensamento humano, trata-se de descodificar e dar um sítio às coisas: dar lugar no espaço. Estabelecer um espaço que antes não existiu, faze-lo relacionando-o com um antes (o que já foi descoberto e os nós do enigma já desvendados), e com o depois (os nós a partir dos quais se constituirá um novo caminho inexplorado). É a tentativa para visualizar os encadeamentos do pensamento, filosófico ou arquitectónico, que permite os avanços e recuos do percurso do pensamento que pretendemos como labirinto, e é este o ponto comum, uma espacialidade do pensamento.

O espaço e a memória

O espaço é a matéria primeira da nossa existência. Vive-se num espaço, num volume, numa superfície, num apartamento, numa cidade. A experiência do espaço apresenta-se conceptualmente pela ideia de lugar: a ideia de ligação do mundo com nós mesmos. É um conceito e experiência individual: são os metros cúbicos e quadrados que necessitamos para vivermos. Ao conceito de espaço correspondem dois conceitos métricos: o plano e o volume: o espaço como volume dá lugar à ideia de quantidade do território, o espaço vital. Esta é uma referência ao nosso contacto com o mundo que nos reenvia a uma oposição entre o “aqui” e o “ali”, o mundo deixa de ser neutro: tal lugar, tal posicionamento é desejável a outro. A circulação é o desejo ou a repulsa de um lugar. O factor quantitativo, a ideia de grandeza, medida à escala humana, ou seja, a relação do indivíduo com o quadro no qual ele é, pode ser avaliado segundo alguns factores intimamente relacionados com a percepção que fazemos do espaço: a escala, a forma, contacto do indivíduo e a experiência social, a dimensão estética.
A Geometria Analítica ensina-nos modos de aproximação ao espaço, a ideia de um sistema de coordenadas no qual Descartes teve um papel determinante, onde a localização dos pontos é determinada pelos seus eixos de abcissas e coordenadas, mas o que mais nos convém à abordagem do espaço labiríntico é o sistema de coordenadas intrínsecas. Sistema pelo qual cada um dos movimentos do indivíduo na relação com o ponto de partida é indicado pela quantidade de “passos” percorridos e pelo ângulo em que se realizou cada um desses passos. Este é o sistema de coordenadas que melhor se aplica ao indivíduo errante numa rede de corredores labirínticos, que lhe permite conceber uma ideia do espaço através do seu conhecimento do espaço, pelos movimentos que teve de realizar. É justamente pelo excesso de possibilidades sobre o conhecimento do espaço que se traduz a riqueza espacial, ideia de um mundo mais vasto que o indivíduo, espécie de fonte ilimitada do ser no mundo.
Porque é que o indivíduo deseja ir mais longe que o sítio onde se encontra? A partida do ser do seu ponto de origem afecta duas formas geométricas: uma, a errância livre sobre um plano mais ou menos ilimitado; outra, a errância guiada pelos corredores do labirinto, nas ruas da cidade, nas alamedas dos jardins. Este actuar no espaço é sublinhado pela motivação estética: a mobilidade é uma tendência básica do ser, o indivíduo não está só, na cidade ou na família.

| João Amaro Correia | 31.1.04 |   | /

expressões do lugar

Toda a arquitectura constitui uma forma existencial tanto quanto uma relação vital com a natureza. Physis, vida, fauna, flora, topografia, clima, paisagem ou jardim..., a natureza é sempre o que “existe” que o arquitecto não poderá ignorar mesmo se é dela que o homem se separa e é sobre ela que age.* A arquitectura caracteriza-se por ser uma mediação estável entre homem e natureza, gera um mundo habitável pelo entrecruzamento com o que existe, das situações com que se depara e de uma poética. Partindo das categorias nietzscheanas poderemos qualificar duas situações, respectivamente apolínea e dionisíaca: distância ou ligação.
Nietzsche em a Origem da tragédia, descreve estas tendências contraditórias que observa na Grécia antiga – que atravessa o homem e se experimenta na arte: a dimensão apolínea, caracterizada pela ordem, medida, serenidade, beleza formal, que se manifesta depois de Sócrates numa cultura idealista de distanciamento da natureza, que se impõe progressivamente e se opõe ao dionisíaco, instinto estético que se resguarda na natureza, hino à mesma natureza e à vida indestrutível, à natureza no homem e à embriaguez dos sentidos. O domínio dionisíaco é o espaço selvagem da physis, Dioniso, o deus ambivalente destrutor ou benfeitor, selvagem ou salvador.
A modernidade que se manifesta no séc. XIX é um modo de vida, uma visão do mundo e uma relação com a terra. O que chamamos de modernidade está associado à visão da natureza que devém paisagem. Os arquitectos modernos do movimento moderno privilegiaram a perda do contacto com o solo sobre diferentes modos. Mies van der Rohe e o primeiro Le Corbusier são as suas figuras emblemáticas. Mas há uma outra via diferente desta correntemente entendida como modernidade: arquitectos contemporâneos tais como Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto, ou Siza, cruzam-se num caminho do lugar reencontrado com o meio.

* Michel Mangematin, Méditation architecturale entre l’homme et la nature, Ville contre-nature, Philosophie et architecture, Éditions la Découvert, Paris, 1999

| João Amaro Correia | 27.1.04 |   | /

localização

Mas porque estar aqui é muito, e porque tudo
o que é daqui aparentemente precisa de nós, estas coisas efémeras, que
estranhamente nos dizem respeito. A nós os mais efémeros. Cada uma
uma vez, só uma vez. Uma vez, não mais. E nós também
uma vez. E nunca mais. Mas o
ter sido uma vez, mesmo uma só vez:
o ter sido terreno, parece irrevogável.


Ranier Maria Rilke, As Elegias de Duíno, A Nona Elegia


Genius loci é um conceito romano. De acordo com uma antiga crença romana todo o “ser independente” tem o seu genius, o seu espírito guardião. Esse espírito dá vida às pessoas e aos lugares, acompanha-os da nascença à morte e determina o carácter da sua essência. O conceito de habitar convoca a relação que o homem estabelece com o lugar. Quando o homem habita está simultaneamente localizado no espaço e exposto a determinados caracteres da envolvente. A localização no espaço envolve duas funções psicológicas: orientação e identificação. O homem necessita de saber onde está e ao mesmo tempo terá de se identificar com as características do meio que o envolve, como está num lugar. Indentificação e orientação são aspectos primeiros do ser-no-mundo. A identificação é a base do sentimento de pertença e o sentido de orientação é o que nos habilita a sermos o homo viator que é parte da nossa natureza. O homem habita quando é capaz de concretizar e resolver o mundo em edifícios e coisas, em objectos. A concretização é a função da obra de arte, em oposição à abstracção da ciência. O nosso quotidiano consiste nestes objectos intermediários, a função da arte é ocultar as contradições e complexidades do mundo: ser uma imago mundi, a obra de arte ajuda o homem a habitar. Habitar é o fim último do construir. Esta relação estabelece uma via que conduz ao habitar, “construir é já por si só, habitar”. Este estar-na-terra é para a nossa experiência quotidiana algo que desde o princípio é “habitual”. A função primeira da arquitectura é tornar visível o habitar um lugar.

Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.


Herberto Helder, A Colher na Boca, prefácio

| João Amaro Correia | 22.1.04 |   | /