A identidade do lugar , que é o mesmo de trezentos ou novecentos anos atrás, resiste no fluxo do tempo, que passa por cima dele e continuamente modifica muitas coisas, ao passo que outras, de importância decisiva para o quadro geral, por serem recordações e testemunhos da antiga dignidade, são conservadas com reverência, num piedoso desafio ao tempo e também por orgulho.
Thomas Mann, Doutor Fausto
e velhice é passado que se tornou presente, é passado apenas recoberto de presente
pickpocket – a vida que imita a arte que imita a vida
Suprema ironia, o furto de uma das 6 peças de Rui Chafes da exposição Pickpocket: Robert Bresson Visto por Rui Chafes e João Miguel Fernandes, na cinemateca. As mãos, o trabalho das mãos, central em alguns filmes de Bresson, e modo de vida em Pickpocket, laboraram na própria exposição e fizeram-nos regressar ao invisível que o cinema de Bresson torna visível*.
[Pickpocket: Robert Bresson Visto por Rui Chafes e João Miguel Fernandes, Cinemateca Portuguesa]
*Rendez visible ce qui, sans vous, ne pourrait être vu.
arké/chorea
Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da segurança e a liberdade. É uma ordem complexa. Sua essência é a complexidade do uso das calçadas, que traz consigo uma sucessão permanente de olhos. Essa ordem compõe-se de movimento e mudança, e, embora se trate da vida, não de arte, podemos chamá-la, na fantasia, de forma artística da cidade e compará-la à dança – não a uma dança mecânica, com os figurantes erguendo a perna ao mesmo tempo, rodopiando em sincronia, curvando-se juntos, mas a um ballet complexo, em que cada indivíduo e os grupos têm todos papéis distintos, que por milagre se reforçam mutuamente e compõem um todo ordenado. O ballet da boa calçada urbana nunca se repete em outro lugar, e em qualquer lugar está sempre repleto de novas improvisações.
Jane Jacobs, Morte e Vida de Grandes Cidades, 1961
[City Life, Steve Reich, 1995, Ensemble Moderne]
para a Maria José
banlieusation
Para além da estética, do marketing, da polémica, aquém da política e depois da sociologia, da antropologia ou da psicologia, sigamos pelo espaço (público) da digressão bárbara.
Do subúrbio à cidade, da cidade de regresso aos baldios de depois do subúrbio.
Metro, boulot, dodot?
[Stress, Justice, 2008]
Harmonia e leveza triunfantes*

A colecção de imagens que Pina Bausch e os bailarinos do Tanztheater Wuppertal recolheram em Lisboa, mas não só, foi o pretexto para a construção de um espectáculo luminoso, de uma harmonia e de uma leveza triunfantes. Masurca Fogo, o espectáculo que foi anteontem estreado no Centro Cultural de Belém em Lisboa, no âmbito do Festival dos 100 Dias da Expo’98, está distante da densidade dramática de obras anteriores da coreógrafa, como Viktor ou Palermo, Palermo, onde o mundo era representado como um lugar de um peso, de uma desolação e de uma solidão insustentáveis, para dar apenas exemplos de obras que foram construídas a partir do mesmo modelo de Masurca Fogo: Pina Bausch e a companhia realizam um workshop na cidade que o espectáculo acaba por “reflectir”, mas de forma transversal, a fim de recolherem imagens que constituem as suas fontes inspiradoras.
Em Masurca Fogo não é só o universo de representação de Pina Bausch que se transforma. Por um lado, o lugar de primazia dado habitualmente aos movimentos realizados em coro é agora atribuído aos magníficos solos que se sucedem ao longo da peça, dançados por corpos que se precipitam da rocha aveludada que constitui o cenário, ou que dançam envoltos pelas imagens projectadas de uma viagem, do mar ou de flamingos. Estas imagens moldam-se tridimensionalmente aos recortes do espaço de cena, criando-se um impressionante efeito de fusão entre as imagens projectadas e os movimentos dos bailarinos. Por outro lado, os movimentos coreograficamente muito virtuosos — alguns deles, sobretudo os dos homens, são mesmo atléticos, como os dançados ao som dos tambores de Rui Júnior — ganham espaço e tempo às secções onde a expressão do corpo se socorre de outros elementos de teatralidade, como a voz, a representação, o gag.
Sabendo-se que as diferentes fisicalidades e experiências vividas dos bailarinos são transportadas para as peças de Pina Bausch, através de improvisações temáticas realizadas durante o processo de criação, e tendo a companhia sido recentemente renovada, sendo agora constituída por um grande número de bailarinos jovens, não será arriscado afirmar-se que estes também terão contribuído para estas transformações. Mas os métodos de construção — a fragmentação do tempo, do espaço, das referências sonoras e das acções e a sua subsequente sobreposição —, assim como a alternância de momentos intensos que representam experiências humanas e de situações descontextualizadas e caricaturas que criam momentos de humor, ou a genial concepção dramatúrgica, fazem de Masurca Fogo uma peça com a assinatura inconfundível de Pina Bausch.
O que é verdadeiramente inesperado em Masurca Fogo, se bem que já tenha vindo a ser esboçado em peças recentes da criadora, é que a relação tensa e difícil entre homens e mulheres dá lugar a um encontro intensamente harmonioso representado através da própria dança, sobretudo na segunda parte da peça. A linha de pares que, na primeira parte, serpenteia no palco ao som de uma morna desenvolve-se, no final do espectáculo, em fortes abraços e desfaz-se com os corpos, dois a dois, deitados serenamente uns sobre os outros. Bausch foi buscar estas imagens da dança a Cabo Verde e ao Brasil. Antes, as imagens filmadas de um concurso de dança — Dança Cabo Verde, edição 96 — enquadram o movimento de dois pares no palco. De repente, quando outros pares salpicam a plateia com o seu lento rodopiar, nós, espectadores, sentimo-nos também envolvidos no espectáculo. Noutra secção, os bailarinos constroem uma exígua barraca e, no seu interior, dançam ao som de valsas brasileiras.
Mas se esta harmonia luminosa é dominante, sendo reforçada pelo cenário branco e pelo desenho de luzes que em muitos momentos propaga uma intensa claridade — sobretudo durante alguns solos ou movimentos dos homens em grupo, como a secção das corridas —, a solidão e a nostalgia acompanham também os “habitantes” de Masurca Fogo. Logo no início da peça, uma mulher (Ruth Amarante), cujos suspiros incessantes são amplificados por um microfone, é deitada, sem reagir, sobre o corpo de um homem. Ouve-se cantar: “I feel so sad”. A nostalgia dança-se ainda em alguns solos de fluido esbracejar, como os interpretados por Dominique Mercy ou Beatrice Libonati (dois dos intérpretes mais antigos da companhia) sobre fados de Alfredo Marceneiro e de Amália Rodrigues.
A incomunicabilidade entre os homem e as mulher — um leitmotiv bauschiano — exprime-se também em Masurca Fogo, se bem que de forma mais leve, quase brincalhona: um homem e uma mulher, colocados frente a frente, empurram a cara um do outro com um brando safanão; um rapaz diz a uma rapariga que gosta dela, mas esta foge, depois a situação inverte-se, e quando finalmente revelam o desejo mútuo de se beijar, não são capazes de o fazer.
Outros temas caros a Pina Bausch, como os jogos dos adultos-crianças — a cena em que o rapaz vê as suas traquinices boicotadas por outro que o persegue, ou a cena em que várias pessoas nadam dentro de um plástico gigante — cruzam-se em Masurca Fogo com outras hilariantes paródias aos rituais cerimoniosos — quando um romântico par faz um brinde com champanhe partem-se as bases das taças; um homem despeja a água e as flores de uma jarra sobre a saia de uma mulher — ou aos comportamentos de alienação, como quando três comensais e um par de dançarinos ficam suspensos face a um televisor.
Em Masurca Fogo, Pina Bausch sobrepõe imagens recolhidas em Lisboa, ou melhor, Portugal, a outras captadas em Cabo Verde. Imagens filtradas pelo seu olhar e pelo dos seus bailarinos que nos são devolvidas num espectáculo de uma intensa luminosidade que ficará registado para sempre na nossa memória. Em fragmentos, secções, que se alinharão em ordem diferente ou se sobreporão.
* Crítica de dança publicado no jornal Público, a 13 de Maio de 1998.
Maria José Fazenda
‘this things on stage are very real’
we just started and we tried.
to tried to find something.
[o set não existe por si próprio. é para os actores contarem uma história.]
free of meaning.
just a struggle to find something, to create something.
openness – to give space
openness – to see whatever they want to see
openness – raising questions

to not know: it hurts to be able live unsure. to grab, to scratch.
the day one think that one think that one knows how something work, one should stoop doing it.
[Peter Pabst, cenógrafo, designer, 8.5.2008]
o corpo (homem & mulher) e a cidade
[Masurca Fogo, Pina Bausch, 1998]
Com especial agradecimanto à querida amiga Maria José Fazenda.
arquitectura & poder#2

[...]
Neste ar impassível
Em que os prédios cegos se servem
De toda a sua altura para proclamar
A força do Homem Colectivo,
Cada língua verte a sua vã
Desculpa competitiva:
Mas quem pode viver tanto
Num delírio irracional?
Fora do espelho espreita
O rosto do imperialismo
E o logro internacional
[...]
[W.H. Auden, 1 de Setembro, 1939]
histeria proletária do betão

É lamentável o que aconteceu a Maria Zaal com a venda dos terrenos auersbergerianos, pensei eu na poltrona de orelhas. Onde havia, ainda há vinte anos, os mais belos prados e pastagens, elevam-se agora dezenas de vivendas, cada uma mais feia que a outra, em grande parte aquilo a que se chamam casas pré-fabricadas, que os seu compradores podem encomendar directamente nos armazéns das imediações, cubos de betão horríveis, com telhados baratos de eternite ondulada, pregados por desleixados mestres do seu ofício. Onde havia um pequeno bosque, onde, na Primavera, florescia um jardim, que exibia as suas mais belas cores ao emurchecer outonal, pululam agora os tumores de betão do nosso tempo, que já não tem qualquer respeito pela paisagem nem pela natureza em geral e que é apenas dominado pela avidez do dinheiro politicamente motivada, pela histeria proletária do betão, pensei eu na poltrona de orelhas. Todos os anos, um ou vários desses terrenos do casa Auersberger em Maria Zaal são vendidos a essas pessoas da região de Maria Zaal, que, com as suas ideias primitivamente ignóbeis sobre a construção, pouco a pouco vão arruinando essa Maria Zaal e que já arruinaram mesmo Maria Zaal, pois eu estive uma vez, há dois ou três anos, em Maria Zaal, por assim dizer incógnito, no caminho de Itália para Viena, e não acreditava nos meus olhos, pensei eu na poltrona de orelhas, ao verificar quão grande é já a destruição de Maria Zaal só em razão da perversa venda de terrenos do casas Auersberger. Cada venda de um terreno dos Auersbergerianos, que não ganham dinheiro nenhum, porque não precisam, como decerto eles pensam, destrói um bocado da natureza de Maria Zaal, e já destruiu mesmo Maria Zaal, como eu vi com os meus próprio olhos; pois se Maria Zaal era efectivamente, ainda há vinte anos, uma das mais belas povoações da Estíria, agora, devido à falta de escrúpulos dos Auersbergerianos, é uma das mais feias, esta é que é a verdade, pensei eu na poltrona de orelhas; os Auersbergerianos são responsáveis pelo que aconteceu a essa jóia da Estíria, pensei eu na poltrona de orelhas, e de repente pensei que não foi essa gente simples da região de Maria Zaal, impelida por estes tempos horrorosos para a histeria da construção, que destruiu a paisagem de Maria Zaal, mas sim o casal Auersberger, não foram aqueles a quem se censura que as suas casa horríveis já desfiguraram e arruinaram quase toda a região de Maria Zaal, antigamente tão invulgar, e que, como por toda a parte na Áustria, cagaram simplesmente as suas casas na paisagem, porque ninguém lhes disse como é que as deviam construir, mas sim o casal Auersberger, que, escondido por detrás deles, todos os anos impele o tio advogado a vender ainda os seus últimos terrenos, e esses últimos terrenos ele decerto os irá vender, para que eles, os Auersberger, sem mexerem sequer um dedo, possam prosseguir a sua mais ou menos inútil vida social, pensei eu na poltrona de orelhas. Pérfidos onanistas da sociedade, pensei eu sentado na poltrona de orelhas, que designação tão verdadeira, que o tapeceiro Fritz uma vez lhes lançou em rosto, como eu me recordei na poltrona de orelhas.
[EN1, Batalha + Thomas Bernhard, Derrubar Árvores, uma irritação, Assírio & Alvim, 2007]
estrada nacional#Café Central
Há mesas isoladas, como ilhas, e mesas juntas em arquipélago, por conveniências maleáveis que podem durar um quarto de hora ou anos. Há penínsulas de políticos, uns são caciques eternos, ancorados ao oceano público com favores domésticos e dinheiros europeus, outros não passam de aspirantes a boiar no tachinho regional.
Há botas caneleiras com pregos na sola que contam que dantes se ia tomar o café a Lisboa, um só café e voltava-se para casa, 200 para lá, 200 para cá, 400 quilómetros pelo prazer da bica na Baixa, e sem auto-estrada, isso é que era ser rico. E que ainda antes desse tempo, um homem ia a Lisboa com a mulher às compras no Natal e a viagem dava destaque no jornal da terra, “o nosso periódico deseja, em nome de todos os seus amigos e conterrâneos, boas compras pelo Natal e muita saúde ao excelentíssimo senhor doutor e elegante esposa, no regresso de Lisboa”.
Há jovens agricultores, empresários de dois jipes, dados pelos fundos perdidos da União Europeia, e que os sujam, em passeios todo-o-terreno, nas lavas latifundiárias que não chegam a semear.
Há os que chegam de directa da Boîte Dancing Colmeia, na Estrada da Burra, onde se deitam com brasileiras num tanque de silicone e whisky marado, debaixo da intensa luz negra, a lâmpada roxa que destaca as dentaduras. Um desaparece num cubículo mas regressa como um tonto, de calças em baixo, aos pulinhos, de preservativo mal colocado na pila, branquíssimo.
- Por favor, alguém sabe como é que isto se mete às escuras, eh, eh? e a brasileira atrás, humilhada e divertida, reencaminha o bêbado para o quarto e diz-lhe, quase cantando, como brilha nessa luiz negra, como é branca tua camisinha murcha, oi minino não se enerva não, tava brincado quirido, me deixa ligar tua lâmpada amorr, deixa comigo, quer beijinho molhado não quer?, pronto, eu faço, teu fantasminha careca já me vai assustar...
E outras figuras tristes que dão para rir a semana inteira, a não ser que alguém fale de sida, foda-se, prò caralho mais essa conversa!
- Que grande arraia.
O Sol nasce e saem a tropeçar para o ar do campo, chocalhando as últimas moedas no casacão de vitela, à procura da chave do carro, porque na Boîte Dancing Colmeia a música faz muito barulho para telefonar a mentir à mulher, eh pá estive até agora com o coiso a conversar, e o café não é tão bom como o do Cortiça.
Há quem um dia experimente falar de pintura, poesia e tendências contemporâneas da Arte
- A arte da seca, eh pá cala-te!
Há espectros que estampam o carro três vezes na curva do Sanatório, e preparam cuidadosamente a quarta, falta-lhes quebrar o osso da bacia e o pescoço, são esqueletos remendados que andam, duplos do seu próprio filme.
Há mulheres que se divorciam porque, subitamente, queriam ser elas próprias.
Há barões com dinheiro, dinheiro sem barões. Há nomes de nobre que vendem carros a tipos sem nome nenhum.
Há amigos verdadeiros, amigos leais como não se encontra em qualquer outro canto do mundo, e há gente que se odeia e cruza dez anos sem se falar.
- Boa tarde a todos menos a um.
Há homens que estão sentados há 40 anos a lutar pelo desenvolvimento da terra.
Há raparigas com acne, a cara em obras, que fumam 35 cigarros e estão a reduzir. Há as que mantêm diálogos por sms de uma mesa para outra, conversas de tardes inteiras, e também mms, fotografam-se para ficar melhor na fotografia do que na verdade.
Às vezes trazem a pila do namorado guardada na galeria de imagens secretas, um pénis digitalizado com carinho, vamos lá ver se não me engano e envio esta ao meu pai por engano, ih, ih, e, sempre que necessário, pedem o multibanco à mãe para recarregar o telemóvel.
Há política e futebol e mesas de homens e mesas de mulheres, separadas como nas missas antigas, mas o que mais interessa é o romance, universal em todos os cantos do mundo. O [café] Cortiça é um rumor de vozes amplificado, ondas descoordenadas de som, uma tagarelice lenta com lava ao rubro, chávenas a bater, silvo da máquina do café, o mini-berbequim das moscas furando o fumo azul do tabaco.
Rui Cardoso Martins, E Se Eu Gostasse Muito de Morrer, 2006

Porque era o Diabo que incitava os mortais a transgredirem o interdito, a provarem a liberdade perniciosa, era ele, a serpente subtil.
[Nós, Ievgueni Zamiatine + Guggenheim Museum, Frank Lloyd Wright, 1959]

[...] tudo se desviou do modelo e se tornou não-euclidiano.
[Nós, Ievgueni Zamiatine + U. N. Plaza, Roche-Dinkeloo, 1975]