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terrae incognitae


Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes de Octávia é menos incerta que noutras cidades. Sabem que mais do que um certo ponto a rede não aguenta.

[As Cidades Invisíveis, Italo Calvino]



O espaço inteiro da humanidade e da natureza implode. Integralmente conquistadas todas as suas dimensões [euclidianas e outras], o espaço cessa de ser um volume extensível através do qual e expansão não tem limites. A extensão deixa de ser expansiva. Torna-se intensiva – junções, condensações, compressões, potências de partículas ou de fibras infinitas, milhões de bits de energia ou informação em quase nenhum espaço-tempo – o espaço perde o seu pensamento, a sua disposição de amplitude e abertura. De certa forma o espaço não mais exactamente dimensional: a terra não é mais que um ponto, e o ponto é sem dimensões.
A consciência agonizada do re-encerramento engendra uma espécie de pensamento do espaço – pensamento que é ao mesmo tempo essa angústia e a luta com ela mesma, o ponto de partida de uma outra história, de um outro espaçamento.

| João Amaro Correia | 5.10.09 |   | /

av. dom joão ii#2


Labirinto, máscara, espelho: as metáforas de Nietzsche são o canto do lamento e da perda inelutável com que a modernidade o intima. A matéria que enforma o espírito e já não o fulgor impalpável – irracional – na constituição do mundo.
Gémeas, máscara e labirinto, são as imagens, simétricas também, que o filósofo empresta à arquitectura. O disfarce epidérmico e hipócrita ou a abundância labiríntica do pensamento e da construção. Devoção dionisíaca ou ódio aos insuportáveis filisteus no ataque aos refúgios inautênticos do quotidiano.
E depois há os espelhos de Veneza, as suas profundas solidões e depois as cidades, já transformadas em ‘sistemas de solidão’ por Tafuri, na profusão indiferente de sinais e pistas e rastos e traços, elididos a cada colisão fortuita.

| João Amaro Correia | 29.9.09 |   | / / / /

av. dom joão ii


Todos os dias: de método e prática o pragmatismo torna-se metafísica, verdade quase indizível.

| João Amaro Correia | |   | / / / /

do pavimento


Johnny's in the basement
Mixing up the medicine
I'm on the pavement
Thinking about the government


[Subterranean Homesick Blues, Bob Dylan, 1965]




A vida minúscula do Outono anunciado, sobre o pavimento de betão a imitar pedra.
São estas coisas concretas que constituem o nosso mundo dado, interligadas de modo complexo e por vezes contraditório. Os fenómenos compreendem outros: a floresta compreende as árvores, a cidade compreende os edifícios. Fenómenos meio de fenómenos: a paisagem; um termo concreto de meio é lugar.
Actos e ocorrências, acontecimentos e incidentes, têm lugar. É difícil imaginar algum acontecimento sem a referência ao lugar. Referimo-nos a lugar como algo mais que uma localização, situação, abstracta: queremos dizer a totalidade feita de coisas concretas que têm substância material, forma, textura, cor.


Atrás, encostado aos sacos do lixo, Allen Ginsberg, HOWLing.



pequeno milagre, para a Clara

| João Amaro Correia | 21.9.09 |   | / /

habitar: passagem


[Distant cloud formation, Axel Antas, 2006]


Acolher o desejo e liberdade humanos. Acção sobre o mundo que tem como fim último situar-nos vigorosa e amorosamente sobre a Terra.
Difícil transformação da terra inóspita à qual o Homem foi lançado por Deus após a traição primordial.

| João Amaro Correia | 19.9.09 |   | / / /

o mundo é plano


Como um ícone, a arquitectura – os arquitectos – desejam, através da imagem, erguer-se do tempo que devora e da memória que obscurece. Artefacto da vaidade, liça da trivialidade doméstica – sobre o tecido (metáfora ao gosto da classe) mudo onde se derrama o desejo, a cultura, o mundo, ínfimas nódoas que constituem o quotidiano. A imagem condensada – presumimos que seja essa a pretensão - , pretende ser o século e o lugar, o tempo e o modo, sintetizados numas poucas toneladas de betão e ferro e vidro, tão iguais em todo o lado. É um desejo secreto e não dito, escapar a alguma irrelevância, que não neutralidade, que as coisas devem adquirir.
A arquitectura do ícone - o arquitecto do ícone - detesta a cidade. Exalta-se, inefável e narcísica, na auto-contemplação indulgente a que se permite chamar representação do mundo.


[Lisbon architecture graffiti by Someone - a rogue architecture student?, Pedro Gadanho, via SpaceInvading, via iconeye]

| João Amaro Correia | 17.9.09 |   | / / /

landslide

[...]
It is hard to know how the current financial crisis will affect this trend. More than once I’ve heard it suggested that the downturn will be good for architecture. The argument goes something like this: The economic tailspin will put an end to the boom in gaudy residential towers that are distorting the city’s skyline. Cheap rents will attract young, hungry creative types. This will spawn a cultural flowering similar to that of the 1970s, when the Bronx was burning, graffiti artists were the norm and Gordon Matta-Clark was carving up empty warehouses on the Hudson River piers with a power saw.

But cheap rents alone won’t do it. On the contrary, the construction slowdown, if it lasts long enough, will likely drive many young talents out of the profession for good. It also looks less and less likely that a government-sponsored, Works Progress Administration-style civic project will revive the profession — another favorite fantasy of the ever-optimistic architecture scene.

Real change will first demand a radical shift in our cultural priorities. Politicians will have to embrace the cosmopolitanism that was once the city’s core identity. New York’s cultural institutions will need to shake off the complacency that comes with age and respectability. Architects will need to see blind obedience once again as a vice, not a virtue. And New Yorkers will have to remember why they came to the city in the first place: to find a refuge from suburbia, not to replicate it. That’s a tall order.


Nicolai Ouroussoff in New York Times, 24.08.2009



O Cozinheiro, o Ladrão, a sua Mulher e o Amante dela.

| João Amaro Correia | 24.8.09 |   | / / /

o avesso do avesso do avesso



Não são os lugares que importam - é a maneira de lá chegar.

Miguel Esteves Cardoso in Público, 5.8.2009

Estar entre-dois* dilata a ansiedade: e é necessária sabedoria paciente para descobrir o melhor caminho; que, raras vezes, é a linha recta.
Dizer, portanto, que importa mais o caminho que o lugar é só possível a quem sabe sempre para onde regressar.

*Michel Onfray

[Micromegas, Daniel Libeskind, 1981]

| João Amaro Correia | 5.8.09 |   | / /

interiores – uma teoria da catástrofe


Um homem oculta à mulher e aos filhos a sua nova condição de desempregado. Uma questão de honra numa sociedade de códigos rígidos e rigorosamente ordenada onde cada indivíduo assume o seu papel sem grandes questões existenciais. O tradicional, no comportamento, o moderno, que invade e desestabiliza a ordem aparente do quotidiano. A acção é o questionamento – implosão? - dos valores sociais da sociedade japonesa.
A ordem, o espírito desta sociedade, é visível na curta duração da sequência do trânsito sobre os infinitos viadutos da cidade. Tóquio flui à cadência do disposição secular das regras. A vida programada confronta-se com o acidente contemporâneo. A crise económica, a guerra no Médio-Oriente, o mundo em volta da implosão familiar.


É Kenji, o filho mais novo e espírito independente, que persiste em tocar piano, Claire de Lune, da lua que na sequência imediatamente anterior ilumina num fugaz instantâneo a mãe, o ponto de fuga. Pelo amor à liberdade e ao desejo.
Regressa-se a casa, depois da noite que todos passaram fora.
E aquele abrigo na praia acidental?, não será o mesmo do Deserto Vermelho?

[Sonata de Tóquio, Kiyoshi Kurosowa, 2008]

para o David

| João Amaro Correia | 26.7.09 |   | / /

metanarrativa[s]


Imagens de máquinas vs máquinas de imagens.


61 essential postmodern reads: an annotated list.

[Pruitt-Igoe, St. Louis, 1954.1955]

| João Amaro Correia | 22.7.09 |   | / /

câmara café de lisboa

- Os tipos do Porto pensavam que eu era de Lisboa. Tive que lhes dizer ‘oh meus amigos, aquilo que mais gosto em Lisboa são as duas pontes e o aeroporto’.
- A única coisa de jeito aqui em Lisboa é o casino. E nem é bem em Lisboa. É no Estoril.


O diálogo, impregnado de uma profundidade midlle-class-viril-imbecil, entre dois cidadãos que trabalham em Lisboa – presume-se que vivam em Lisboa ou num dos seus subúrbios – que recorrem à bazófia altiva como subterfúgio da desresponsabilização. Vivem num lugar que lhes não interessa que não seja pela extracção de uma parca prosperidade que lhes garanta sustento e visitas ao casino. Ostentam o desprezo pela cidade no elogio da sexta-feira escapista: ‘que nunca mais chega’.
‘Somos todos de fora de Lisboa’, diz-se. Poucos somos os de terceira, quarta, geração de lisboetas. Muitos por necessidade, poucos pelo desejo. (As razões explicam-nas facilmente a economia, a sociologia, o deformado desenvolvimento regional e a ausência de coesão territorial. E a cultura.) A maior parte indiferente, legitimamente indiferente, diga-se, à cidade. Porque a cidade, esta Lisboa contemporânea, é mero dispositivo utilitarista. Porque é reduzida a uma cidade de serviços, a um imenso escritório de trânsito congestionado em frente ao Mar da Palha.
Deste oceano de desprezo releva o deserto, a apatia, a renúncia à polis e à comunidade. Se não somos lisboetas, também já não somos da ‘terra’. O que é um óptimo motivo para que a quem tudo o que seja excluído do umbigo seja também indiferente e irrelevante. Mesmo que seja o lugar onde passa a maior fatia das horas do dia.
Falha o desejo de a habitar (plenamente), falha o desejo de a transformar.

| João Amaro Correia | 15.7.09 |   | / /

cidades


7. Depois, é preciso ter em grande consideração o bem comum. Amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem comum. É o bem daquele «nós-todos», formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social. Não é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem parte da comunidade social e que, só nela, podem realmente e com maior eficácia obter o próprio bem. Querer o bem comum e trabalhar por ele é exigência de justiça e de caridade. Comprometer-se pelo bem comum é, por um lado, cuidar e, por outro, valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade. Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidades reais. Todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de incidência na pólis. Este é o caminho institucional — podemos mesmo dizer político — da caridade, não menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai directamente ao encontro do próximo, fora das mediações institucionais da pólis. Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político. Aquele, como todo o empenho pela justiça, inscreve-se no testemunho da caridade divina que, agindo no tempo, prepara o eterno. A acção do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana. Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações, para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras.

[Apocalipse de Saint-Sever, Grégoire de Montaner + Caritas in Veritate, Bento XVI, 2009]

| João Amaro Correia | |   |

sugestão ao Metropolitano de Lisboa para a Estação de S. Sebastião


[Metropolitano de Estocolmo]

| João Amaro Correia | 26.3.09 |   | / /

Os mitos das indústrias criativas

As indústrias criativas têm vindo a ocupar o centro do debate no ano europeu dedicado à criatividade, a maioria das vezes tendo por referente algo muito vago. Em Portugal, a sua evocação é feita como se as mesmas fossem as salvadoras da economia das cidades e aparecem no discurso político como uma tentativa de configurar os seus elocutores como agentes de políticas modernas. O facto é que as indústrias criativas, promovidas na Europa no quadro da ’terceira vaga’ decorrem de um conjunto de mitos que é oportuno desconstruir:
Apesar de aparecerem como usurpadoras do género, a criatividade não se esgota nas indústrias criativas; muito menos nas actividades artísticas, em particular no design, nas telecomunicações, na moda ou nas artes tecnológicas por via, sobretudo, do seu carácter de artes reprodutivas, em especial graças ao baixo custo da produção do digital. A criatividade é, antes de tudo, uma faculdade humana que pode ou não ser motivada e activada conforme haja, ou não, a capacidade da sua detecção e as condições favoráveis à sua manifestação, não sendo previsíveis a maioria dos seus impactos. A criatividade é um talento que muito ultrapassa o marketing político. A este propósito, seria oportuno ler cuidadosamente a obra de Ken Robinson.
A criatividade não acontece por mera vontade política nem basta que seja enunciada para que a sua performance seja actuante - se houvesse dúvidas sobre a ineficácia do discurso político nesta matéria, o fiasco retratado no ambiente decadente da tão publicitada Feira das Indústrias Criativas, realizada recentemente na Expo Norte, era disso exemplo -. O exercício da criatividade exige disciplina, métodos adequados, informação actualizada, crítica, debate, trabalho colaborativo e condições profissionais e de produção para que se possa materializar em objectos ou ideias. A sua passagem a um sistema de produção industrial decorre mais das capacidades distributivas e da marca cosmopolita da cidade do que de “estratégias de incubação, ninhos de produção” e outras ilusões provindas geralmente do aparelho educativo e produtivo mais conservador.
Não basta apontar exemplos de relativo sucesso temporário de algumas zonas de cidades internacionais, onde o ambiente criativo, proporcionado pelo talento, tecnologia e tolerância, produziu uma cena artística nova e gerou algum emprego para que o mesmo possa acontecer em qualquer outra cidade. A criatividade e a sua manifestação materializada exigem massa crítica substantiva, cidades de escala média ou grande, excelentes escolas de formação artística, científica e tecnológica, que são a base de recrutamento dos criadores, mobilidade e diversidade da população envolvida. Ao pensarmos nas cidades portuguesas a partir destes itens, tomamos com certeza consciência da dificuldade destas transferências de ’receitas’.
As indústrias criativas não são a solução milagrosa para a economia das cidades e os números que habitualmente são avançados em termos de percentagem de PIB (entre os 4% e os 7%) escamoteiam que a parte substancial desta economia provêm das telecomunicações, da indústria do audiovisual e das televisões que, a bem verdade, nem são indústrias recentes, nem se pode afirmar que traduzam sempre o melhor da criatividade.
Do ponto de vista de análise cultural, as indústrias criativas e o seu suposto sucesso fundamentam-se não na criatividade nem nas artes mas sim na ideia de consumo. Para os defensores mais fundamentalistas das indústrias criativas, o importante é que estas vendam e giram receitas. O envelope da criatividade com que as vendem vai buscá-lo ao domínio das artes e à aura de que estas são proprietárias mas com o espírito de que já não existem nem receptores, nem públicos e, muito menos, utilizadores críticos mas apenas uma massa anónima de consumidores globais passivos. É com certeza muito importante ler Richard Florida mas é também fundamental ler Aristóteles, Jean-Luc Nancy, Bernard Stigler, Jacques Rancière, entre outros.
Nenhum obstáculo aqui se coloca face ao desenvolvimento da criatividade e à sua possível materialização que se pode, eventualmente, configurar nessa ideia de indústrias criativas, desde que se considere que a desideologização radical da cultura tenha, como consequência, o fim da ética da economia e da criatividade científica ou artística. Impõe-se, pois, quando se falar de criatividade, de indústrias criativas e de desenvolvimento, que se seja intelectual e politicamente honesto.
No caso concreto de Portugal, a criatividade deve e pode ser estimulada e actualizada em termos concretos, desde que se tenha consciência que o processo criativo é lento, que não se coaduna com calendários legislativos, que implica reconhecer a possibilidade do erro, da falha e do sucesso adiado; que exige investimento nas retaguardas de formação elementar, que se precisa de muito tempo; que exige um forte investimento na investigação científica e na produção artística (e que, neste último caso, está muito longe dos patamares mínimos de eficiência); que há áreas potencialmente mais capazes de fornecerem a médio prazo resultados muito positivos, como sejam a arquitectura, a fotografia, a música urbana, o documentário, e que há outras que vão exigir mais tempo e podem haver casos em que os próximos tempos sejam de falhanço. É preciso, de facto, tempo, muito tempo.
A nossa relação primária com a tecnologia - para a qual contribui a história do país, a económica, a tecnológica e a cultural - é muitas vezes traduzida numa relação de deslumbramento improdutivo (há sempre ilhas, claro) não ajuda e, por isso, exige não mais tecnologia mas um melhor uso epistemológico da tecnologia.
Em conclusão, para as nossas cidades precisamos que elas sejam orientadas num sentido mais cosmopolita, que se constituam em cenas artísticas e científicas, que se internacionalizem e dêem tempo, o tempo e as condições necessárias à formação que actualize a criatividade.

António Pinto Ribeiro


Público, 19.03.2009

| João Amaro Correia | 20.3.09 |   | / /

olhar o chão#3


[Reverse Processing, Cement Transplant, East River, NY, 1970, Dennis Oppenheim , 1978]

| João Amaro Correia | |   | / / /

olhar o chão#2


[Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958]

| João Amaro Correia | |   | / /

olhar o chão


[On The Waterfront, Elia Kazan, 1954]

| João Amaro Correia | |   | / /

it's the end of the world as we know it (and i feel fine)


[Central China Television, Rem Koolhaas, 2002-2009]

| João Amaro Correia | 10.2.09 |   | / /

arquitectura em Helsínquia

- Queres ir a algum lado este fim-de-semana?
Paris, Roma... Para mim, tanto faz.

- Decide tu.
As cidades são todas iguais.



O que Mirja diz, “as cidades são todas iguais”, não é inocente. Habita em Helsínquia uma arquitectura igual à de Tóquio, Paris, L.A., ou Roma. Uma arquitectura de reflexos das marcas comerciais no vidro brilhante dos “volumes” de exaltação tecnológica e económica. No hiper-modernismo de Helsínquia, (Tóquio, Paris, L.A., ou Roma), a torre de aço e vidro substitui-se à torre de marfim, de onde se desce apenas por algum infortúnio acaso.
O “superfuncionalismo” capitalista estende-se a todos os domínios. O mundo trivializa-se sem qualquer sentido transcendente, abolem-se fronteiras entre interior e exterior, definem-se identidades a partir do consumo. A arquitectura mediatiza-se e é mediatizada como mais um objecto de consumo, indiferente ao contexto geográfico, topológico ou físico ou histórico.
O “modelo finlandês”, do bem-estar e do desejo democrático, (a transparência do Tribunal, da administração do poder, as ruas limpas e civilizadas, os cafés asseados e agradáveis), do brilho ostensivo da contemporaneidade envidraçada, transporta-nos para uma cenografia irreal e obscena, onde a memória colectiva, que também configura as cidades, é traficada pela uniformização da realidade.
Se a experiência primária da modernidade eram as cidades, hoje, estas perderam para o ar condicionado que torna o aço e o vidro suportáveis.


[Luzes no Crepúsculo, Aki Kaurismäki, 2006]


nas margens da arquitectura

Descer da torre é entrar nas margens. Não por acaso, na digressão de M. (assim, apenas uma inicial, sem nome e sem número e sem memória de si mesmo), os lugares mais próximos da inclusão na sociedade do bem-estar são as estações ferroviárias, lugares de trânsito apenas, (quando violentamente perde a memória; quando começa a regressar a si; quando se apaixona), como se a memória fosse o ponto de partida íntimo do que somos, indivíduos e sociedade.
M. habita uma comunidade de contentores alugados, qual real estate, explorada por um senhorio ganancioso e à margem de qualquer lei ou justiça. A cidade é um eco distante, um contra-campo remoto, para onde a perspectiva das personagens e da câmara conflui. A dicotomia é entre a cidade e baldios. Entre a cidadania e nem o próprio nome poder proferir.
Ainda que parte de uma sociedade que concretiza o ideal de justiça social e prosperidade, M. representa as margens dessa sociedade. Uma condição que não o resigna. Uma condição em que nos apercebemos definitivamente que o direito de cidadania é coincidente com o direito à cidade.

[O Homem sem Passado, Aki Kaurismäki, 2002]


Em qualquer um destes dois filmes é excluída da manipulação, quer do espectador, quer das personagens, para efeitos de alguma declaração política ou ideológica. Antes, Aki Kaurismäkim faz uso de algum humor sardónico na exposição das estórias e da sociedade finlandesa. Em vez da demagogia, o humor. Amor.

| João Amaro Correia | 11.1.09 |   | / /

a era do vazio


O pós-modernismo não passa de uma ruptura de superfície, conclui a recilagem democrática da arte, continua o trabalho de reabsorção da distância artística, leva até ao extremo limite o processo de personalização da obra aberta, fagocitando todos os estilos, autorizando as construções mais divergentes, desestabilizando a definição da arte moderna.

Gilles Lipovetsky, A Era do Vazio


A questão pós-moderna levanta com especial acutilância o instinto estético da arquitectura e a sua recepção pública. Fredric Jameson, em The Cultural Logic of Late Capitalism, sugere a nova apetência dos públicos massificados pela arquitectura através da importância das diversas formas de representação de classe, pelo simbolismo que cada edifício pode sustentar do seu promotor, e, de certa forma, pela atenção com que as massas [consumidoras] reconhecem à arquitectura como modeladora da “paisagem visual”. Esta visão oferece-nos claramente a distinção entre paisagem, do domínio do trabalho disciplinar, e “paisagem visual”, como consequência óbvia da arquitectura na vida e no quotidiano de qualquer indivíduo.
Tomás Taveira terá sido o protagonista do último grande debate público sobre o carácter da arquitectura. Na já distante década de 80, com o complexo das Amoreiras. O modelo era novo, o discurso, para o bem e para o mal, “irreverente”, num país que lentamente se abria à “Europa” e numa disciplina entrincheirada entre o vanguardismo estético dos arquitectos, a insuficiência cultural dos promotores, e o desprezo distraído dos “consumidores” de arquitectura.
As Amoreiras tornam-se simbolicamente o momento de assunção, no contexto doméstico, do carácter público, ou se se quiser, social, da arquitectura. O mérito é do arquitecto e da sua capacidade de sincronizar o tempo e o debate arquitectónico internacional da época com o contexto português. Terá sido o momento alto da carreira de Tomás Taveira, onde tenha sintetizado o seu pensamento arquitectónico com mais acutilância. Mesmo que envolto em polémica.
Mas a fragilidade de uma síntese arquitectónica radicada na premência e manipulação de imagens - históricas e da sociedade de consumo – atravessa facilmente a ténue linha entre um pensamento arquitectónico sério e radicado numa revisitação histórica da disciplina e um populismo vazio à mercê de interesses – legítimos, diga-se – de promotores mais interessados com a auto-representação e menos com a própria matéria arquitectónica.
E é a futilidade que domina a produção de Tomás Taveira de então para cá.


[Tomás Taveira, Saldanha 25, 2008]


p.s. Corre nos mentideros a exigência da Câmara Municipal de Lisboa da utilização de um revestimento mimetisando o Atrium Saldanha [Ricardo Bofill e João Paciência], que confronta o edifício de Tomás Taveira. Penosa, esta incursão burocrática dos serviços municipais ao estirador do arquitecto. Fosse o edifício revestido com a festiva paleta cromática de Tomás Taveira e o vazio seria um pouco menos oco.

| João Amaro Correia | 13.12.08 |   | / / /