Onde param os arquitectos portugueses?

Agora que se repetem as eleições para a Direcção Nacional da Ordem dos Arquitectos, é porventura importante perguntar onde tem parado os arquitectos portugueses nos tempos mais recentes.
Quando há 10 minutos atrás se abateu o silêncio ensurdecedor sobre o facto do primeiro-ministro português assumir a autoria do que podem ser considerados crime estéticos e uma aberração cultural, pareceria lógico perguntar onde param os arquitectos portugueses.
Agora também urge perguntar onde eles param quando, numa espécie de projecção suicida das tendências vigentes entre a população portuguesa, é esperada uma participação de cerca de 15% nas eleições para a Ordem dos Arquitectos.
Falta de auto-estima da classe profissional? Falta de opções? Ou pura falta de interesse? Alguma coisa está certamente em falta.
Face a outras classes profissionais liberais que disputam árdua e publicamente aqueles que vão representar os seus destinos, os arquitectos portugueses espelham bem o estado corrente do país.
Não é de admirar que exista um absentismo absoluto. Com a explosão “democrática” dos cursos de arquitectura, os arquitectos deste país são hoje uma perfeita amostra demográfica do país que temos. E ainda bem.
Porém, o que é eventualmente mais grave é que, apesar da sua formação superior, os arquitectos podem, assim, estar a ecoar a cultura cívica – ou a crise social de que falava a Sedes – com que hoje contamos em Portugal.
Comecemos pela crise.
Não é de excluir a hipótese de que o absentismo eleitoral dos arquitectos se explica por razões bastante prosaicas.
A maior parte dos arquitectos, nomeadamente os mais jovens e desfavorecidos da classe não votam porque... não pagaram as quotas!
E porque é que não pagaram as quotas? Porque estão desempregados ou porque são tão mal remunerados que tem naturalmente que remediar outras necessidades mais básicas. Interessante, não é?
Isto sugere imediatamente que, se estão verdadeiramente interessados na participação eleitoral, os candidatos aos órgãos nacionais da Ordem dos Arquitectos deviam acordar um pacto de regime súbito: uma amnistia – ou, ecoando a extraordinária flexibilidade legislativa portuguesa, uma alteração estatutária temporária – para permitir que todos votassem nestas eleições.
Adiante. Subsistem ainda algumas outras possibilidades para justificar o absentismo geral dos arquitectos.
Também é verdade que muitos dos 16.000 arquitectos a que me refiro estão no estrangeiro. Face a uma tendência autofágica da classe arquitectónica portuguesa – que também lembra outra coisa qualquer – muitos dos arquitectos recentemente formados decidiram, pura e simplesmente, emigrar.
Isto é, o investimento e a permissividade do Estado na formação superior desta classe traduz-se, como já acontecia com cientistas e outras especializações de ponta, em exportação de cérebros ou de mão de obra competente, enquanto por aqui nos vamos lamuriando de desordenamento do território. Interessante, não é?
Esta é, aliás, uma resposta à questão que dá título a este artigo que combina perfeitamente com o equívoco ético e estético que recentemente envolveu o engenheiro civil José Sócrates.
De facto, para quê pagar o custo dos serviços, dos recursos humanos e da competência técnica nas quais o Estado investiu os impostos dos contribuintes, se ainda há por aí uns chico-espertos que dão conta do recado e da paisagem?
Os chico-espertos – que às vezes até são arquitectos pois, afinal, eles também “andem aí...” – saem mais barato, têm uns contactos na Câmara local que “facilitam a coisa” e até foram os primeiros a perceber que mais vale fazer o gosto ao dedo do cliente, que isto não está para modas.
Mas, perguntar-se-á então, a arquitectura não estava na moda?
Depois da celebração e da celebridade de Siza Vieira e de Eduardo Souto Moura, os arquitectos não deveriam andar por aí felizes da vida?
Não adquiriram prestígio social e profissional?
Não obtiveram reconhecimento no “estrangeiro”?
Não tiveram, nos últimos 15 anos, maior exposição mediática interna do que médicos, advogados e engenheiros?
Tendo eu realizado um doutoramento sobre a visibilidade da arquitectura em meios generalistas como o jornal O Público, posso assegurar que todas estas hipóteses são sustentadas e confirmadas por dados objectivos. À excepção, claro, da parte da felicidade.
Curiosamente, em Portugal, a celebridade, a projecção e o prestígio não fertilizaram o campo. Deve ser uma característica endógena. Ou o facto de, apesar das aparências, sermos um país estruturalmente pobre.
As circunstâncias mudam e as conjunturas também e, depois de uma prolongada ascensão demográfica e mediática, os arquitectos portugueses parecem, de novo, ter desaparecido para parte incerta.
Apesar das campanhas do “direito à arquitectura” – já agora, algum não arquitecto ouviu falar disto? – os portugueses ainda não parecem estar dispostos a pagar a mais-valia do serviço arquitectónico.
Isto também justifica a ausência dos arquitectos.
E donde vem o problema? Será que os portugueses não valorizam ou não podem valorizar a sua qualidade de vida ao nível de outros países europeus? Será que não podem, pura e simplesmente, pagar os serviços de um arquitecto preferindo assim entregar-se assim às competências dos chico-espertos? Será que têm de facto a sua própria cultura de gosto e preferem decidir por si? Ou será que a tabela de honorários dos arquitectos é desadequada à realidade do país? Ou serão as regras de mercado que estão a distorcer a oferta e a procura? Ou acontecerá, afinal, simplesmente, que os arquitectos deviam ser pagos por área a edificar e respectivo preço médio oficial de construção em vez de auferirem remunerações que flutuam com o preço final de obra – assim se acabando com muitos jogos de bastidores que prejudicam clientes e destinatários e assim se esvaziando também as distorções deontológicas que fazem com que seja um contrasenso económico para o arquitecto invistir tempo e recursos na redução de custos de obra do seu cliente?
Das mais gerais às mais prosaicas, estas, como muitas outras, são questões que justificam uma tomada de consciência e de posição dos arquitectos e dos seus legítimos representantes face à imagem que projectam de si próprios enquanto classe profissional.
Dado o contexto particular da nossa auto-proclamada “West Coast,” talvez os portugueses ainda não tenham percebido, de facto, qual o papel que a arquitectura pode desempenhar no seu dia-a-dia e na sua qualidade de vida colectiva.
Afinal, a maioria dos portugueses só sabem de longe da vã gloria dos centros culturais desenhados por arquitectos de “qualidade arquitectónica reconhecida” que, entretanto, tem as suas portas encerradas por faltas de verbas, programas e atractivos. E alguns mais iluminados só sabem que se tiverem dinheiro para investir em condomínios privados de luxo é bom que haja um “arquitecto de renome” envolvido.
Visto que assim já sabemos onde param os portugueses, onde param, entretanto, os arquitectos portugueses?
Onde param os candidatos a estas eleições da Ordem dos Arquitectos, esses que devíamos estar a ver e ouvir nos media de massa a exporem os seus programas, as suas opiniões públicas, as suas posições, as suas diferenças, as suas reflexões e proposições sobre o estado da prática da arquitectura em Portugal?
Onde param, neste preciso momento, as luminárias da arquitectura portuguesa, essas que prometeram mais intervenção crítica e social?
Onde param os críticos de arquitectura e os formadores de opinião, esses que, neste preciso momento, deviam estar a contrapor visões e perspectivas sobre o que precisa de mudar nos consensos excessivos em torno das vias únicas que actualmente caracterizam a arquitectura portuguesa?
E, para além dos emigrados, dos desenrascas e dos dignos representantes da geração rasca, onde param esses “ “jovens arquitectos” que constituem a maior parte dos arquitectos inscritos na Ordem e que agora se remetem, como é sua condição geracional mais vasta, a um silêncio comprometido com o status quo?
Por este andar, onde vão parar os arquitectos portugueses?


Pedro Gadanho

[via O Despropósito]

| João Amaro Correia | 28.2.08 |   | / /

p#26


p#001

| João Amaro Correia | |   |

arquitectura & poder#2


[...]
Neste ar impassível
Em que os prédios cegos se servem
De toda a sua altura para proclamar
A força do Homem Colectivo,
Cada língua verte a sua vã
Desculpa competitiva:
Mas quem pode viver tanto
Num delírio irracional?
Fora do espelho espreita
O rosto do imperialismo
E o logro internacional
[...]

[W.H. Auden, 1 de Setembro, 1939]

| João Amaro Correia | 27.2.08 |   | / /

arquitectura & poder


Com especial dedicatória a José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, Eng. Técnico

[...]
Tucídides exilado sabia
Tudo o que há para discursar
Sobre a Democracia
E o que fazem os ditadores
Com os seu sermões maçadores
Para um túmulo de apatia,
Está tudo no livro dele,
O esclarecimento deposto,
A dor que se entranha no pêlo,
O mau-governo e o desgosto
Temos de tornar a sofrê-los.
[...]


[W.H. Auden, 1 de Setembro, 1939]

| João Amaro Correia | |   | / /

o desejo vigiado: geometria do sentimento


Duas personagens deambulam: Vittoria, “cansada, deprimida, desgostosa e desorientada” para quem o amor é o grande esforço; Piero, a vitalidade e o optimismo do capitalismo, o yuppie avant la lettre. A ambiguidade moral do sucesso do capitalismo do pós-guerra. Uma cidade: Roma. A arquitectura de Roma é o território simbólico da vertigem e da repulsa, do carrossel da relação dois. O acentuado contraste do antigo e histórico com o novo e o optimista, num momento que nos sugere as primeiras dúvidas face ao optimismo no progresso imparável que pretendia a modernidade.
Vittoria e Piero encontram-se num fúnebre minuto de silêncio, interrupção da agitação da bolsa de Roma – construída a partir das ruínas de um antigo templo. O jogo da sedução não é encenado num dos seus modernos apartamentos. Tem lugar num antigo apartamento, propriedade dos pais de Piero, no centro de Roma, mise-en-scene da regressão e compulsividade da própria relação. Indolor, quase carinhosamente, exploram-se, na cidade antiga. Vagueiam em território estranho. Paredes antigas, história, o contraponto do optimismo imparável, impensado, de Piero, e do mal de vivre modernista de Vittoria.

Final: ruas desertas da Roma vespertina no moderno bairro E.U.R. A expectativa de Vittoria ou Piero surgirem no enquadramento da fronteira da cidade. Mas resta apenas o cenário, os objectos, tangentes às suas vidas cruzadas. A apoteose do modernismo na alienação, na incomunicabilidaade, na impossibilidade de ligações num mundo cada vez mais mecanizado.O apocalipse no título dos jornais: o terror atómico reduzirá a vida à poeira. Ao eclipse tecnológico.

coreografia do naufrágio












[O Eclipse, Michelangelo Antonioni, 1962]

| João Amaro Correia | 26.2.08 |   | / /

uma campanha alegre#3


Tornou-se, pelo menos para mim e para os muitos com os quais vou trocando conversas, muito difícil fazer arquitectura, pelo menos muito mais do que seria desejável.

Não, certamente, pela falta de estímulos, de prazer ou de capacidade de enfrentar os problemas, mas sim pela falta de um enquadramento da profissão claro e mais do que tudo civilizado e ordenado.


[João Santa-Rita, MV na OA]

| João Amaro Correia | 23.2.08 |   |

uma campanha alegre#2


MV na OA

| João Amaro Correia | 21.2.08 |   |

uma campanha alegre


Manuel Vicente na OA
Manuel Vicente no You Tube

| João Amaro Correia | |   |

lisboa, cidade aberta


[António Pinto Ribeiro, 19.06.2007]

| João Amaro Correia | 19.2.08 |   | /

declaração de voto


Em Manuel Vicente é a liberdade e a possibilidade que ordenam o discurso. A ordem contingente do mundo, das coisas, é pretexto e motivo para a descoberta do próprio mundo. A liberdade e o uso da liberdade é a inclusão da contingência na palavra a na acção. Dela extrair sentidos, ou não, e em consequência da responsabilidade da liberdade, produzir novos significados para o mundo e para a existência.
É por isto que a arquitectura é para Manuel Vicente um acto de produção cultural. Não mera junção, justaposição, sobreposição de Dec. Lei, regras, planos, técnicas, pensamentos. Será tudo isto, incorporado a priori no que é um pensamento arquitectónico, feito de arquitectura, feito de amor às coisas terrenas, profanas, numa tentativa indizível de alcançar o sagrado. O deus que se esconde nas pequenas coisas. Numa luz inclinada, numa parede pintada, numa caixilharia de alumínio anodizado, que, pela manipulação, a podemos tornar um pouco mais que uma caixilharia de alumínio anodizado igual às outras todas da Segunda Circular.
É nessa liberdade, de que são inclusos o riso, a ironia, a irrisão, que aguça a nossa percepção de nós mesmos e nos situa no sítio das coisas do mundo. E em que a arquitectura é quase uma ontologia de existência.

Colaborei com Manuel Vicente durante um ano. Foi a época mais marcante da minha formação. Numa espécie de complexo de Édipo, ainda hoje, a cada linha, cada folha de papel, suspeito que resida alguma ansiedade de lhe fazer jus. De, pela arquitectura, chegar a poder ser tão homem quanto está ao nosso alcance ser.
Voto Manuel Vicente.

| João Amaro Correia | |   |

intenção de voto

MV na OA.

| João Amaro Correia | 17.2.08 |   |

que farei quando tudo arde


O passado acontece cada vez mais depressa.

[UN Studio, VilLA NM]

| João Amaro Correia | 8.2.08 |   | / /

geração big brother – sol enganador

La necesidad y la certeza de que hay que mantenerse constante como un personaje en primera línea -aunque no haya mensaje alguno que transmitir- y con unas apariciones públicas banales, performáticas, sostienen las actitudes y acciones de jóvenes y no tan jóvenes arquitectos que tratan de imitar el desfasado modus operandi de un vetusto y carente de ideas star-system con nostalgias del siglo pasado.
[...]
Reducirse a entender que la sociedad contemporánea es solamente esto, es falso. La multiplicidad de medios nos abre nuevas vías de expresión y provocan la interacción creativa del pensamiento. Nuestra premisa debe ser trabajar desde las entrañas de esta sociedad hiperinformada y caótica en su construcción digital para extraer de ella no sólo el material que nos permita desenmascarar a los fantoches, sino también la sustancia con la que construir una arquitectura acorde con la realidad de la sociedad actual.

Fredy Massad, Generacion Big Brother


Ou o teste aos limites da mediatização das ideias.
A circulação infinita das imagens, leves, aéreas, turbilhão que nos desloca da realidade e dos contextos. O paradoxo é a aparente simplicidade com que a ideia se propaga, em poderosos renders que a todos nos parecem possíveis, é ela própria o entorpecimento da própria ideia. Virtual, desapegada do mundo, a imagem é a condensação da complexidade do mundo em pixels despojados do sentido da ideia. Autofágica, é o vórtice do desejo do arquitecto em escapar ao real, canibaliza o pensamento e atrai-nos ao abismo. O conhecimento é traficado pela informação, as ideias por imagens, a arquitectura pelo nihilismo virtual
Mas a resistência dos materiais, a desobediência da arquitectura, é permanecer dentro do mundo, trabalhar com o aparato com que a realidade surge ao arquitecto. Pensar a complexidade do mundo. Trabalhar com-o-mundo, é o destino da arquitectura. O resto são sombras de um sol enganador.

| João Amaro Correia | 7.2.08 |   | /

"Europe's West Coast" - "The inland"

Um país de patos bravos
Num momento em que Portugal se procura relançar como West Coast, o último pequeno escândalo que envolve o nosso PM é apenas patético. Para além da eventual ilegalidade dos actos praticados, o que aqui se joga é a imagem de uma cultura nacional. Trata-se dessa cultura bacoca e mal-formada que tarda ainda a revogar um Decreto-Lei, o famigerado 73/73, que simplesmente devolverá a competência de projecto àqueles com quem sempre deveria ter estado. Trata-se da cultura que durante algumas gerações premiou a chico-esperteza e a saloiice. Se, num contexto de mudança, os erros de juventude fossem realmente para se corrigir, se esta cultura fosse mesmo para superar, esperar-se-ia que Sócrates aproveitasse esta tragicomédia para fazer o mea culpa e procurar mudar a paisagem. Quando envereda por desculpas esfarrapadas, quando afirma a sua autoria dos projectos agora vindos a lume, o PM esquece o essencial: são aquelas imagens e aqueles crimes estéticos contra a paisagem que é preciso combater. Lançar uma West Coast cujo PM se declara ufano autor de tais projectos é um contra-senso de marketing político.

Pedro Gadanho, arquitecto

O homem que reclama a asssinatura destes projectos foi depois, nomeadamente, Secretário de Estado do Ambiente e Ministro do Ambiente com a tutela do ordenamento do território – do ordenamento do território, sublinhe-se bem. É agora Primeiro-Ministro de um governo que no seu arsenal propagandístico inclui o novo-riquismo da mais recente colecção fotográfica encomendada pelo ministro Manuel Pinho, esse exemplo de parolice consumada que é a campanha “Europe’s West Coast”.

Augusto M. Seabra, Letra de Forma

| João Amaro Correia | |   | /

estrada nacional#14

Afinal quem terá aprovado os "projectos de José Sócrates" na Câmara da Guarda? Terão sido os verdadeiros autores? E quem terá aprovado os projectos de José Sócrates na Câmara da Covilhã?


[Engenheiro Técnico José Sócrates]


O pano de fundo, a atmosfera do que se constrói, chegou ontem à capa do Público. Se há mérito na democracia é podermos eleger um igual para os mais altos cargos de representação. Sócrates, o seu carácter, tem essa virtualidade. É um de nós, dos esquemas, da pequena corrupção, da inocente trafulhice, que só queria “fazer pela vida”. Conseguiu o terceiro posto mais alto da nação. Conseguiu “safar-se”. E para além da espessa barreia da propaganda é humano. Como nós.

| João Amaro Correia | 2.2.08 |   | /

vamos, então, por partes

Reconhecendo a mistura de questões aludidas no post anterior, e que, por lealdade, o devo ao António.
O leitmotiv do post foi as várias notícias que têm vindo a lume nas semanas recentes e que culminou com a revelação das assinaturas ilícitas em projectos de engenharia/arquitectura, do nosso primeiro-ministro, (só este nubloso conceito arquitectura/engenharia, a propósito das assinaturas ilegítimas do primeiro-ministro, que existe ao arrepio da clarificação de competências, deveres e responsabilidades, no processo de projecto, é paradigmático da desordem em que os arquitectos e engenheiros actuam).
Mas esta semana, no que à prática profissional da arquitectura diz respeito, começou na semana passada com a notícia da repetição da eleição dos órgãos sociais da Ordem dos Arquitectos, por ordem da “decisão expressa no acórdão de sentença proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa”, dando razão aos argumentos do arquitecto Manuel Vicente. Ou seja, aparece-nos esta semana na imprensa matéria mais que suficiente para questionar-mos a actuação e, mais radicalmente, a necessidade da existência de uma Ordem dos Arquitectos.
Vamos, então, por partes.

Ao longo dos últimos 33 anos o pior inimigo da arquitectura e dos arquitectos foram os próprios arquitectos. Por diversos motivos, uns que os transcendem, outros que são de sua responsabilidade, somos chegados a um ponto de absoluto divórcio entre o que são os propósitos da OA - “contribuir para a defesa e promoção da arquitectura e zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de arquitecto, promovendo a valorização profissional e científica dos seus associados e a defesa dos respectivos princípios deontológicos” – e a realidade da prática da profissão. A justa batalha do 73/73 não servirá para encobrir a imensa zona de acção dos arquitectos de que a OA tem estado alheada. E ainda assim temo que a batalha do 73/73 seja vista mais como uma defesa corporativa de interesses – o alargamento do mercado de trabalho, via secretaria – do que a tentativa de reconhecimento da arquitectura como bem público que a todos os cidadãos diz respeito. E a cada novo problema que surge na prática profissional a OA tem acudido tarde e a más horas, e sempre com um vigor legislativo e impositivo eivado de vícios mais condizentes com um estado corporativo do que com uma democracia liberal que faz da livre iniciativa e do risco forças motrizes do progresso social. Comecemos pelo início

O acesso à profissão e os estágios profissionais.
A partir dos anos 1990 o número de estudantes de arquitectura aumentou exponencialmente. Em pouco mais de 20 anos passamos de uma situação de inexistência de arquitectos no território, cerca de 2000, que não respondiam às necessidades do mercado da construção – e daí o Dec. 73/73 - para um número superior a 10000 arquitectos. Evidentemente num mercado exíguo e limitado haverá quem não tenha trabalho. E naturalmente a quantidade não será necessariamente proporcional à qualidade. Daí a tentativa da OA impor alguma ordem no acesso à profissão. Só que o faz em termos que contrariam a liberdade individual e a própria Constituição da República. Passando alguns discursos que defendem o absurdo da atribuição de números clausos e o estreitamento do acesso a aos cursos de arquitectura que não seja por (de)mérito dos candidatos, discursos assentes numa suposta defesa do interesse público e das próprias vidas desses vindouros arquitectos, mal disfarçando o temor da concorrência aberta, a OA prevê que apenas possam aceder à profissão indivíduos que ela própria credita. A situação de monopólio é intolerável, não a desculpando um suposto interesse público que a OA ostenta. O interesse público é da arquitectura e não da instituição OA. Ou seja, em vez de se aligeirarem os trâmites de acesso à profissão, erguem-se burocraticamente obstáculos à livre concorrência. Numa república de boa-fé, a simples acreditação pelo Ministério do Ensino Superior, ou por uma putativa Agência de Acreditação e Avaliação do Ensino Superior, dos cursos leccionados, seria suficiente para o reconhecimento do percurso académico do indivíduo que deseja ser arquitecto. Mas a nossa proverbial desconfiança no Outro e nas instituições faz-nos complicar aquilo que aparentemente é simples.
Os procedimentos exigidos aos estagiários têm como destino a dispensável acumulação de papelada e o desprendimento burocrático dos “patronos” sobre os estagiários, muitos deles tratados como escravos, a custo 0, qual carne para canhão que daqui a 9 meses haverá mais uma fornada de carne fresca para alimentar os escritórios estabelecidos. O atmosfera de fundo é a da desconfiança e do medo. Desconfiança na credibilidade dos cursos ministrados e nas capacidades técnicas dos recém-licenciados, o medo das hordas de jovens ávidos de sucesso nesta profissão.

O trabalho em regime liberal.
Trabalhar em regime liberal é entrar na selva. Nesta profissão, neste país, é o espelho daquilo que somos enquanto sociedade.
A escassez de trabalho e o fenómeno recente da concentração do trabalho, conduz-nos a uma situação que divide os arquitectos entre os grandes escritórios, vulgo tubarões, e os escritórios de vão de escada que se alimentam de moscas.
Angariar trabalhos, para os pequenos escritórios, é uma peripécia quase ao registo Buster Keaton. É ter que lidar com clientes que fogem para os braços de colegas, concorrentes, que de dentro ou na teia das câmaras, sabem “fazer as coisas”. É ter que concorrer com assinaturas ilícitas que defendem tudo menos a arquitectura. É tentar concorrer com estruturas que já têm a mecânica dos interesses bem oleada. É fazer arquitectura como quem enche chouriços, com todo o respeito pelas chouriceiras.
Ou é ter que trabalhar anos a fio, por conta de outrem, a passar um recibo verde que corresponde a um futuro cinzento.
Por isso é que a cada nova obra com interesse arquitectónico que (ainda) vamos descobrindo por estas estradas nacionais fora, assistimos a um pequeno milagre da vontade e de quase excepcionais cruzamentos do destino, que deveriam ser a regra.

O trabalho no regime de funcionalismo público.
Os mal amados pelos arquitectos que trabalham em regime liberal. Quer por culpa própria, quer por uma realidade que os ultrapassa, são o elo mais fraco na cadeia dos licenciamentos de projectos de arquitectura. Vivem numa espécie de limbo, entre as muitas pressões políticas que se lhes sobrepõem e a teia legislativa que os sobrecarrega na avaliação técnica de um projecto de arquitectura.
Quer trabalhem em autarquias, quer em instituições públicas com deveres no licenciamento de projectos de arquitectura, a galáxia legislativa é de tal modo densa e complexa – e com os inevitáveis buracos na lei – que os miríficos 30 dias para emissão de um parecer sobre o projecto em avaliação, previstos no Dec. Lei 555/99 de 16 de Dezembro, são apenas isso: uma miragem que tem pesadas consequências tanto a montante como a jusante do momento da apreciação. E com evidentes efeitos na qualidade da prática da arquitectura, na paisagem e no ambiente do nosso território.
E nos buracos da lei vamos vendo os arquitectos, funcionários públicos, que se “sabem mexer”, alargando uma teia de influências e pequenos poderes discricionários que chegam ao ponto de recomendar determinados escritórios de arquitectos como condição para “aligeirar” as demoras em projectos que envolvem sempre muito dinheiro. Uma espécie de chantagem corrupta que, como um eucalipto, absorve tudo à volta: o trabalho que vai aparecendo para arquitectos “de fora” e que é desviado para estes esquemas imorais de assinaturas ilícitas ou traficadas, a idoneidade de colegas que são encobertos pela suspeição generalizada, a ineficiência da administração pública.
Em última análise, bastaria o Termo de Responsabilidade do técnico para o deferimento de um processo e um vínculo de exclusividade dos arquitectos que escolhem uma vida de serviço público. Uma forte componente fiscalizadora, por parte das autarquias, a jusante desse deferimento. Consequentemente haveria um curto-circuito nos processos, a eliminação de burocracias, a remoção das influências políticas no sector das construção – remetendo a política para aquilo que deverá ser a sua competência, na definição de estratégias de desenvolvimento urbano integrado – o fim da casuística como ponto cardeal da aplicação Planos Directores Municipais, a impossibilidade de tráfico de influências “dentro” das entidades a quem compete a emissão dos pareceres.
A lei e os seus labirintos, num Simplex, a partir de Março, feito na voracidade de uma superficial “reforma da administração pública”, que apenas produzirá mais equívocos e canais abertos à pequena corrupção. Que em vez de responsabilizar cada vez mais o técnico dos projectos, diminuindo o volume de requerimentos e imposições legais, de obstáculos, que distanciam e desresponsabilizam os técnicos que “assinam” os projectos, e proporciona a discricionariedade de muitos serviços administrativos. A lei e os seus labirintos, que conduz promotores e construtores à certeza de verem o retorno dos seus investimentos e que não os querem ver "parados" por coisas tão insignificantes como a arquitectura.

São alguma inquietações que pelos vistos não chegam ao altar da OA. Perdida nos “banhos de S. Paulo”, no glamour da vernissage, numa torre de arquitecturas virtuais, alheada das dificuldades com que os arquitectos se deparam quotidianamente, em prejuízo da arquitecura, do ambiente, e do bem público. É por isso que é pertinente questionar a necessidade de uma Ordem.
Não há aqui virtuosos ou maldosos. Ou melhor, há-os tanto como em qualquer outra profissão, e na arquitectura, tanto os há no regime liberal como no funcionalismo público. O que há aqui é uma batalha ética que tem de ser travada, primeiro dentro da classe, para depois a Ordem poder alegar autoridade na mais ínfima matéria. Só depois disso.

| João Amaro Correia | |   |

câmara corporativa


assinatura José Sócrates



A existência e actuação da Ordem dos Arquitectos decorrem da necessidade sentida pelos profissionais da arquitectura em responder às exigências de um mercado de trabalho e da construção abertos e da pressão que o número cada vez maior de diplomados em arquitectura exerce sobre o mercado de trabalho. Como associação de interesse público tem deveres de “defesa e promoção da arquitectura” e não da classe. Mas o que tem relevado da actuação da OA é, apenas, a defesa dos interesses corporativos. A defesa dos arquitectos e não a “defesa e promoção” da arquitectura.
A intransigência e os obstáculos ao livre acesso à profissão, em conflito com o que garante o quadro constitucional, o autismo na forma como encara o exercício da profissão, numa perspectiva exclusivamente corporativa, o alheamento dos vícios que acometem a prática profissional, têm servido, exclusivamente, para a manutenção do status quo, que, prova provada na nossa paisagem, não tem feito juz à alínea a) do Artigo 3º dos estatutos da OA.
O caldo cultural em que o arquitecto actua é, regra geral, o da pequena corrupção, do “natural” tráfico de influências, da fraude da assinatura de projectos de outrém. À primeira vista a consequência destas práticas não será mais que o mesquinho enriquecimento de algumas carteiras. Mas os efeitos perversos sobre a qualidade do construído, da arquitectura, têm graves custos quer ambientais, quer arquitectónicos, quer paisagísticos, quer políticos, quer económicos. São práticas que decorrem da falta de transparência e lisura nos processos de licenciamento e na actuação do arquitecto.

Numa sociedade liberal o acesso à profissão não deve ser regulamentado pelos pares, que, muito naturalmente, não quererão mais concorrência. Se existem cursos, licenciaturas em arquitectura, acreditados pelo Ministério do Ensino Superior, parece prova suficiente na credibilidade dos próprios cursos. Por outra, os estágios profissionais são também uma forma de garantir o auto-financiamento da OA, dever a que está obrigada pelos estatutos, e, mais pernicioso, a criação de um contingente de quase-escravos que a custo 0 ou quase 0 são absorvidos pelos ávidos escritórios de arquitectura. Em nada estes pequenos fait-divers promovem a arquitectura. Os próprios cursos na OA a que um estagiário está obrigado a frequentar são jogos florais da arrogância da classe, na tentativa de manutenção do poder. Para além de, paradoxo, obrigar um estagiário – por definição, sem possibilidades materiais - a custear com cerca de 300€ a famigerada “acção de formação”.
Estágio feito, número profissional adquirido, o mercado de trabalho abre-se ao novel arquitecto. O mercado de trabalho dos recibos verdes durante décadas, sem a mínima protecção social, ou, se a opção for o regime liberal, a incerteza e angústia matinais, todos os dias, na esperança vaga de encontrar trabalho, ou o funcionalismo público.
“Cá fora” a selvajaria impera, e a tão propalada deontologia profissional que a OA tanto reclama é no mínimo uma nota de rodapé da prática profissional, ou se quisermos, uma anedota. Arquitectos funcionários públicos que não têm pejo em assinar projectos de arquitectura em regime liberal – não é crime, mas é imoral. O carrossel pernicioso que é o mero cálculo de honorários. A dança das assinaturas – exemplarmente ilustradas pela actuação do primeiro-ministro aquando do seu exercício da profissão de engenheiro técnico - a troco de uns trocos. São práticas correntes que corroem a “defesa e promoção” da arquitectura.

Se arquitectos, em jogos à sombra dos corredores do poder - autárquico e institucional - persistem em minar o mercado de trabalho, se arquitectos patrocinam a arquitectura de outrém, arquitecto ou não, em coreografias de nomes e assinaturas, se arquitectos se permitem a fazer dumping e elaborarem projectos com custos inverosímeis apenas porque repetem o desenho projecto em projecto sem qualquer esforço, se arquitectos continuam a exigir recibos verdes a outros arquitectos “colaboradores” anos a fio, se arquitectos se limitam a cumprir aquilo que Pina Moura chamou “ética republicana”, simbolicamente legal mas moralmente perniciosa, se a OA permanece alheia a isto tudo, para que, de facto, serve então uma Ordem?

| João Amaro Correia | 1.2.08 |   |