estrada nacional


No Cartaxo, à beira de uma pequena e simpática livraria de província, no acompanhamento de uma rua qualquer de uma qualquer cidade pequena – pequena, desorganizada, feia naquilo que as décadas recentes construíram; igual a tantas outras nos milhões que agora são gastos em Polis e recuperações daquilo que o regime democrático tão bem soube desprezar e da paisagem que as autarquias acharam por bem obnubilar e traficar para fins pouco menos que mesquinhos - surge a presença de um objecto singelo, singular no carácter, íntimo no convívio com as construções contíguas.
Sem reparos à “monumentalidade” das construções oficiais que marcam o largo adjacente, mas com o decoro e ao mesmo tempo a eficácia que a arquitectura de preenchimento exige.
Tão eficaz como a acção do arquitecto é o desempenho do promotor, que procurou soluções de mercado que passassem pela diferença no produto a oferecer. É esta vivacidade que faz – deve fazer - sobreviver a arquitectura numa época de erosão rápida da memória do habitar ou da confusão a que as orientações urbanísticas vigentes conduzem a experiência do habitar do território e das casas, (loteamentos massivos em paisagens rurais, edifícios de apartamentos desgarrados dos tecidos urbanos, sprawl inqualificado e inqualificável em qualquer povoação com pretensões a urbanidade cosmopolita, o progresso de timbre português).
Desta conflitualidade entre arcaísmos da nossa experiência do território e do mercado da construção civil, e da(s) tentativa(s) disciplinares de acrescentar ao habitar alguma coisa do nosso tempo, surgem-nos situações de paródia involuntária e kitsch, decerto resultado de confrontações entre projectistas e promotores. Tal como é o confronto entre o arcaico e o contemporâneo, a memória rural do espaço e a urbanização dos costumes. [cf. o barbecue nas varandas]
É kitsh lusitano, mas é pleno de energia vital. A sina do Galo de Barcelos.

[Habitação Multifamiliar, Cartaxo]

p.s. Pede-se, a quem conheça, que revele o nome do autor.

| João Amaro Correia | 27.12.06 |   |

praça


A praça é pública quando a vida é a ela convocada. Quando o quotidiano lá se desenrola, sem outras preocupações que não somente as da acção que cada indivíduo escolhe lá experimentar. É representativa do tempo da sociedade: a praça é o lugar de democracia. A evidência disto reside na sua utilização simbólica pelo poder político. A consequência é a verificação das alterações sociais e culturais que se vão depositando em camadas de tempo e matéria.
Num lote entalado Um centro cultural, que releva das novas opções e preocupações do poder político face às cidades e aos indivíduos.
O arquitecto aproveita e marca esse novo lugar público com um gesto inusitado. A curva de betão, agora e aqui evidente, acolhe a chegada a um edifício que depois é, também ele, ligação e preenchimento do vazio urbano que se suspeita fosse a “vida anterior” daquele lugar. O vazio é preenchido por um pórtico de betão, escavado e atribuindo profundidade a um paramento exterior de vidro e caixilharia.
E naquela praça sabe-se agora onde fica o lugar de encontro.

[CVDB (Cristina Veríssimo + Diogo Burnay), Centro Cultural do Cartaxo, Cartaxo]

adenda: Ler mais n'O Arrumário.

| João Amaro Correia | |   | / /


A planificação dos elementos apropriados de uma “fachada” com propósitos expressivos de determinada ideia é uma ideia tão velha como a tratadística da arquitectura: ritmo, proporção, harmonia, factos que relevam do desenho.
A tradição empírica da construção vernácula, não abandonando – nem questionando – estes conceitos, não propõe um exercício crítico na medida de uma intencionalidade compositiva. O apropriado aqui é-o em relação aos lugares, à tecnologia disponível para o erigir arquitectónico e a necessidade programática.
A inclusão de Byrne e de Carrilho no mesmo parágrafo acintoso para o desenho excessivo tem apenas a ver justamente com o tratamento performativo do desenho: o desenho não é meio, mas fim. O alçado vale por si, como peça autónoma, como desenho de intenções estéticas e programáticas. O zelo agudo com que se manipulam os elementos arquitectónicos em projecção abstracta, seguramente fundados na tradição disciplinar contemporânea, é que resultam na desqualificação da arquitectura como um todo: como espaço, volume, textura, cheiro, cor, e acima de tudo, como experiência. A sobreexposição ao desenho gerará certamente imagens bonitas mas, pior que isso, um totalitarismo que tudo quer regular e dirigir – o bom gosto, da casa ao parafuso da sanita. Aqui o domínio da representação, que é o do alçado, da planta, do corte, torna-se proeminente no acto da projectação, não o da indução da própria experiência arquitectónica.
Há, depois, mecanismos mais ou menos cínicos que por meio de artificiosos jogos florais legitimam esse desenho retórica e culturalmente. O “bonito” tem pudor em ser assumido: é politicamente correcto ir buscar a herança modernista ou pós-modernista para afirmar o simples gostar de uma janela assim ou um buraco com uma entrada de luz assado. E aqui entramos no reino do puro delírio racionalista que, qual rolo compressor, pretende-se legitimador de todos os discursos e de mais alguma coisa por dizer. Esta é a nossa herança: tudo tem que ser explicado e explicado porque racionalizado e tornado intenção em desenho. Simplesmente é feio dizer que é bonito, apenas porque sim.
É neste cruzamento que a “composição” passa a valer como conceito autónomo e a arquitectura obscurecida.

[Piet Mondrian, Composition No.10, 1939-42]

| João Amaro Correia | |   | /

estrada nacional

Ainda são necessários alguns quilómetros para poder estacionar o carro e sair da viatura com espanto e /ou admiração. Fora os sulcos gravados no território da arquitectura popular, que, construídos com sageza antiga, perduram na irracional razão do pôr-em-obra com a sabedoria olvidada.
Quilómetros vastos sem nada que justifique, no futuro, uma arqueologia dos dias que correm. Caminhos municipais que confirmam que este tempo do construir é a-histórico. Ou só histórico na medida em que se esqueceu das contingências do construir no mundo e já só lembra o acaso fora de qualquer mundividência. Ou esta é a mundividência da economia política, social e cultural portuguesas.
São escassos os exemplos onde se revela que da adversa condição da produção industrial se pode trabalhar-com uma ideia, com sabedoria, que seja possibilidade de fissura da crueldade do nosso modesto recatado cadinho.


4 módulos, orientados pelo sol; vãos abertos sem o trejeito totalitário do desenho de alçado, tão carrilhiano ou byrniano – abre-se um muro onde for necessário abrir um muro sem contemplações por “composições de fachada” ou de um imaginário alçado que só tem correspondência com o real na capacidade de abstracção do arquitecto; o desprezo pela ditadura do pormenor e pelo desenho em pretensão a gesto magnânimo e redentor do território e da condição humana.
O banal é o esplendoroso.

[Habitação Multifamiliar, Alvaiázere]

p.s. Pede-se, a quem conheça, que revele o nome do autor.

| João Amaro Correia | 24.12.06 |   |