As notícias de Teerão disseminam-se através Facebook, Twitter, blogs, sms. A organização da resistência, virtual, expande e convoca e provoca a luta, real, pelo espaço público da cidade iraniana. O confronto violento entre as milícias Basij e os manifestantes da oposição ocorre no domínio físico da polis depois de disseminada no reduto da internet. O espaço público, da democracia e do confronto livre, manifesta-se, experimenta-se e atravessa o Facebook e a Praça Enghelab num trânsito de difícil controlo. Entre a rede e a arquitectura, entre a ininterrupta ligação e o espaço físico dividido – a arquitectura na sua ontologia é a compartimentação e hierarquização - a cadeia dos acontecimentos cede dos ecrans vertiginosos à luta corpo-a-corpo da e na rua. A arquitectura, como escolha, decisão, é o vínculo ideológico com o espaço. Um modo político de o nomear.
O carácter representativo da arquitectura é (sempre) manipulado ao serviço das ideologias: o Reich e a trágica fantasia da Welthauptstadt Germania perpétua, num discurso imutável e facilmente reconhecível pelas gerações; Stalin e a ostentação dos feitos heróicos soviéticos – em reacção à utopia imediatamente anterior da modernidade inapelável do Palácio dos Sovietes e da antropologia optimista do construtivismo; Wright e a quimera do automóvel que transportaria em si a liberdade individual; Le Corbusier e o homem novo na cidade radiosa, asséptica e monstruosa; Mies Van der Rohe e o encanto pela ‘transparência’ das grandes corporações capitalistas; o paroxismo whore de Philip Johnson no frontão furado do AT&T, Rem Koolhaas e a mala de truques do marketing e do bombardeamento imagético; da Cidade Universitária ao Portugal dos Pequeninos; de Raul Lino ao Bairro das Estacas. Uma lata de sopa de tomate, uma revolução. A moral é a amoral. Mas é da essência da arquitectura não ser neutra e ter com a realidade relação expressiva e comunicativa. E transformadora.
Recém inaugurado, o Campus da Justiça, é o nosso mais recente equívoco arquitectónico, político e simbólico. A começar pelo nome, Campus da Justiça, que nos transporta a um ágora específico onde é concentrada a administração da justiça democrática que o deveria ser por todo o território servido pelas leis do estado democrático. Não será preciosismo, o nome. Como o não é a referência à apressada reconversão programática de um complexo estruturado para receber escritórios e serviços num lugar que deveria revestir-se de alguma gravitas –aludir exclusivamente as especifidades programáticas, esse diktat muito moderno, não será o melhor trilho crítico - , ou o fervor, quase libidinal, da ‘eficácia’ concentracionária dos serviços judiciais que revela a profundidade extensa da ideologia da ‘técnica’ que devora qualquer hipótese de uma ideologia de Cidade aberta.
Plantado na monocultura de serviços do Parque das Nações, num território adormecido e instrumentalizado pelo zoning negligente do nosso urbanismo tardo-moderno, afastado do núcleo denso da cidade – e a cidade é densidade, multiplicidade e diversidade – cresce, longe da cidade e dos homens que supõe servir.
A arquitectura segue a rota do ‘tardo-capitalismo’ nacional e desta maneira impensada de construir as cidades. Umas mediocridade em ‘volumetrias’ ‘puras’, ‘transparentes’ – como os escritórios?, como a justiça de uma sociedade aberta? - ‘áreas generosas’, ‘open-spaces’, ‘arranjos exteriores’ de uma austeridade vulgar e comezinha.
O boicote de um grupo de juízes à inauguração do Campus da Justiça foi, antes de tudo, uma crítica à arquitectura e à polis que nela tem lugar e que reciprocamente a ergue. (Foi ao mesmo tempo comovente e confrangedor assistir ao depoimento de um juiz que trouxe consigo umas cadeiras antigas do Tribunal da Boa Hora na tentativa de acertar com o ‘espírito do lugar’.)
Poder-se-ia chamar aqui Habermas ou Bauman ou Jameson ou Vidler ou qualquer outro pensamento contemporâneo do espaço público e das relações essenciais entre o espaço, na sua conformação, e a qualidade da democracia, mas não se exagere. O Campus da Justiça é capaz de ser apenas mais um sintoma do deslumbramento tecno-provinciano do Primeiro-Ministro. Que nos representa exemplarmente.
para o Domingos Miguel