Ainda The Hurt Locker, interiores/exteriores. Interiores: A caserna provisória, que durará o tempo da guerra, estreita, austera, uma cama, uma mesa de cabeceira, o desejo do Sgt. James a fechar da luz com um contraplacado. o Humvee e a economia militar, o estrito equipamento para manutenção da vida, o espaço mínimo de sobrevivência ao exterior violento. Os planos claustrofóbicos do interior do capacete do equipamento anti-explosão: somos nós sempre enclausurados no interior do fato – sangue, suor, absurdo. A casa do professor iraquiano, fugaz trivialidade e quotidiano dentro da guerra - não por acaso se tornou insuportável ao Sgt. James.
Exteriores: Sempre mediado pelos dispositivos de guerra, pelas distorções telescópicas ou microscópicas do território. A câmara inquieta, ansiosa, aflita, atribulada, sempre atenta ao perigo iminente que surge de qualquer lado, espada de Dâmocles a desabar a qualquer instante.
Aprende-se a lidar com a bomba e não se pensa nisso enquanto se desarma o detonador. Embedded, nós, espectadores, enclausurados no fato anti-explosivos. Claustrofobia para além de qualquer juízo. primeiro vive-se e não se pensa em nada
Mãe e filho desfiam a memória no conhecimento mútuo da proximidade da morte. O lugar é o da memória, vagarosa e demorada, desencadeada pelo conhecimento do que se aproxima, pela paisagem sonora e visual fragmentada, pelas manifestação onírica do sonho partilhado e continuado que povoa a noite anterior. Somos convocados à memoria de nós próprios e à memória colectiva. Como um sistema de fractais, irrompe o inconsciente colectivo: os sons da infância que se confundem terrivelmente com os da morte; a coincidência, na casa, da alegria e da dor; passos; pássaros; vento, árvores; o assobio do combóio raro e distante; o assombro da morte; o peso da imperfeição do coração; Deus que perfura a consciência e abandona a alma. O filho contém a sua vida ao carregar a mãe à morte. Uma Pietà inversa que se detém cativa da consciência da mortalidade. Fragmentos da tristeza irreparável, do amor que se eleva, da contemplação e compreensão do outro próximo, indícios de geometria fractal que compõe a precariedade das coisas e a conexão misteriosa entre nós e as coisas do mundo. O paraíso perdido é o arquétipo desta paisagem. O espaço é fragmentado, pulverizado, como fracturas minúsculas do todo. Metafísico, como em Munch. A estrada que se bifurca como os caminhos que decidem a vida, as nuvens e a sua sombra errante como tristezas e alegrias que passam, a floresta densa e misteriosa e a ignorância humana sobre coisas, o esplendor do mar e o vento que sacode suavemente as ervas e que constituem a beleza de um mundo, consciente e inconsciente, que nos é dado e que não compreendemos. Que nos deixa espantados pela beleza. Que nos faz permanecer exilados do conhecimento. O mistério do amor e da morte que se atravessa entre nós e o nosso entorno. Infinitamente belo, infinitamente terrível.
- Reuni os pedaços que sobram. Que nada se perca. - Ia a passar e resolvi entrar. - Deus esteja contigo. - Não me conhece? - É o filho do lavrador? - Sou um pedreiro. Construo casas. Mas ninguém viverá nelas. As pessoas querem construí-las elas próprias. Querem fazê-lo, apesar de não saberem como se faz. É por isso que muitas vivem em cabanas semi-acabadas. Outras vivem em ruínas. A maioria vagueia, sem abrigo. És uma dessas pessoas que precisam de casa?
Já te contei como eu e a tua mãe descobrimos este lugar, não já? Viemos aqui num passeio. Nessa altura, ainda nem sequer estavas projectado. Foi a primeira vez que cá viemos. Não tínhamos mapa e esquecemo-nos de trazer um. Além disso, tínhamos ficado sem gasolina. Parámos algures aqui perto e continuámos a pé. Na verdade estávamos perdidos. Depois começou a chover, uma chuva fria, miudinha… Chegámos àquela curva ali, ao pé daquele pinheiro seco e nessa altura o sol apareceu. Parou de chover! Depois vimos a casa… De repente, tive pena de não… quer dizer, que eu e a tua mãe não vivêssemos naquela casa por baixo dos pinheiros, tão perto do mar. Que bela que era! Veio-me à ideia que se vivesse ali seria feliz até na morte.
Que se passa? Não tenhas medo. A morte não existe. Não, existe o medo da morte e é um medo horrível. Por vezes até leva as pessoas a fazer coisas que não deviam fazer. Mas quão diferente seria se parássemos de ter medo da morte.
[…] Pois, como estava a dizer, eu e a tua mãe ficámos encantados quando nos apercebemos da sua beleza. Não nos conseguimos afastar. A paz, a quietude. Ficou claro que a casa tinha sido feita para nós. Afinal, até estava à venda. Que milagre! Tu nasceste nessa casa. Gostas? Gostas da nossa casa?
O homem sempre se defendeu. De outros homens, da Natureza da qual faz parte. Ele violou constantemente a Natureza. O resultado é uma civilização baseada na força, no poder, no medo e na dependência. Tudo o que o nosso chamado ‘progresso técnico’ nos deu é um tipo de conforto, uma espécie de padrão e instrumentos de violência para mantermos o nosso poder. Somos uns selvagens! Usamos o microscópio com se fosse um bastão. Não. É errado… os selvagens são mais espirituais que nós. De cada vez que fazemos uma descoberta científica, pomo-la logo ao serviço do mal. E quanto ao princípio, alguns homens sábios disseram uma vez que o pecado é desnecessário. Se assim é, então toda a nossa civilização está baseada no pecado do princípio ao fim. Conquistámos uma desarmonia terrível, um desequilíbrio, se quiseres, entre o nosso desenvolvimento material e espiritual. Há algo de errado com a nossa cultura, ou seja, com a nossa civilização.
[…] Mas meu Deus, que cansado estou desta conversa! ‘Words, words, words!’ Só agora percebo o que Hamlet queria dizer. Estava simplesmente rodeado de pessoas sem interesse. Também eu. Mas porque falo assim? Se alguém parasse de falar e fizesse finalmente algo, para variar. Ou pelo menos, tentasse.
Um homem oculta à mulher e aos filhos a sua nova condição de desempregado. Uma questão de honra numa sociedade de códigos rígidos e rigorosamente ordenada onde cada indivíduo assume o seu papel sem grandes questões existenciais. O tradicional, no comportamento, o moderno, que invade e desestabiliza a ordem aparente do quotidiano. A acção é o questionamento – implosão? - dos valores sociais da sociedade japonesa. A ordem, o espírito desta sociedade, é visível na curta duração da sequência do trânsito sobre os infinitos viadutos da cidade. Tóquio flui à cadência do disposição secular das regras. A vida programada confronta-se com o acidente contemporâneo. A crise económica, a guerra no Médio-Oriente, o mundo em volta da implosão familiar.
É Kenji, o filho mais novo e espírito independente, que persiste em tocar piano, Claire de Lune, da lua que na sequência imediatamente anterior ilumina num fugaz instantâneo a mãe, o ponto de fuga. Pelo amor à liberdade e ao desejo. Regressa-se a casa, depois da noite que todos passaram fora. E aquele abrigo na praia acidental?, não será o mesmo do Deserto Vermelho?
C'est l'Ennui!- l'œil chargé d'un pleur involontaire, Il rêve d'échafauds en fumant son houka. Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat, - Hypocrite lecteur, - mon semblable, - mon frère!
Beaudelaire
A ideia de evasão é central na obra de Antonioni. Solidão, abandono, alienação, desviam-nos da presença das coisas e enfatizam a sua ausência. A aparência dos objectos no mundo é rodeada de incerteza. O inefável como projecto e objecto de comunicação. A geografia da aparência, em Antonioni, sucede na paisagem modernista, da sociedade industrial e do bem-estar. E o cinema de Antonioni é um cinema de paisagem, exterior e interior, num desdobramento espacial quase abstracto – confirme-se na sequência final de O Eclipse [1962]. O Deserto Vermelho [1964] aprofunda o sentido abstracto da realidade: cor, objectos, focagem e desfocagem, enganos ao olhar, profundidade de campo à dimensão da espessura do olhar do espectador, num ajustamento estético à volta do indizível do mundo; a sórdida paisagem dos detritos industriais (quase) tão sublime como os olhos melancólicos de Mónica Vitti. Como uma metáfora do mal-estar civilizacional, O Deserto Vermelho, explora a desolação espiritual num mundo sobrexposto à tecnologia e à catástrofe ambiental, e a (in)capacidade de permanecermos imunes ao desconcerto do mundo. Construímos paisagens sépia, manchadas pelo amarelo dos fumos tóxicos; habitamos pré-fabricados, anódinos, invadidos, em rasgos aleatórios nos muros, por objectos quase monstruosos – a casa onde habita Giuliana e o petroleiro que a atravessa. Tudo é um pouco desolador mas nessa desolação Antonioni prossegue Adorno, na necessidade de contemplar as coisas pelos lado da sua redenção possível. Como na estória que Giuliana conta ao filho, uma ilha onde "todas as coisas cantam".
Poder, controlo, corpo. O corpo como território último da luta política, limite da própria humanidade. Hunger é a experiência física: do corpo sacrificial no espaço do encarceramento; da tensão entre o corpo torturado e o último lastro de humanidade que encarna. Da arte povera – as paredes do cárcere revestidas com os excrementos de quem se recusa à higiene básica por uma causa política – à body art – que, pela mesma causa, se deixa o corpo abandonado à lentidão exasperante da fome, à morte – Hunger é a experiência da resiliência ao encarceramento, e do corpo como fronteira última da resistência à tortura. O espaço da reclusão é o lugar do desdobramento moral. Carrasco e torturado, corpo a corpo, numa batalha claustrofóbica. As mãos lavadas do polícia não limpam, o polícia despido do capacete e do cacetete que chora ao canto, escondido, despercebido do pelotão de tortura ocupado com o terror, o polícia, morto a sangue frio, caído nos braços da mãe “ausente” como uma Pietá desossada, descarnada, o corpo do condenado, quase crístico, trespassado das chagas voluntárias, silencioso, exaurido das palavras que já não têm força. A austeridade visual, quase abstracta, táctil, a adesão à realidade crua e cruel, coloca-nos, ao nosso corpo, no corredor da morte.
Mais de metade da humanidade vive agora em cidades. É um facto novo no planeta, radical e simbólico, pois a humanidade foi até agora maioritariamente rural e preocupada com a dura sobrevivência. A cidade, e o seu poder de emancipação e autonomia individuais, é o centro difusor das ideias e da criatividade. A riqueza da cidade exprime-se no capital de conhecimento que dela dimana. A expressão das interdependências urbanas é hoje a rede global das cidades. As cidades são a “riqueza das nações”. Mas é necessário reencontrar a cidade. Abandonar o subúrbio. Abandonar qualquer pré-conceito suburbano que domina muito do pensamento urbanístico desde o modernismo.A renovação urbana alimentou-se, ao longo do séc.XX, de construção massiva, nova, com impacto devastador sobre o território, a paisagem, as comunidades, as relações de vizinhança e de proximidade. A matriz modernista, o desejo de normalização, harmonia, “funcionalidade”, alimentou o processo, convencido pelas concepções puritanas e moralistas de como as pessoas devem utilizar o seu tempo. Écontra esta utopia higienista, fundada na Cidade-Jardim do séc.XIX, que se ergue o monumento “The Death and Life of Great American Cities” (1961), de Jane Jacobs. Ainda hoje a pertinência do texto é aguda. Mais que uma elegia à cidade, Jane Jacobs procura chegar ao coração da cidade através da experiência do quotidiano. Diversidade, densidade, multiplicidade, pluralismo, são a essência da cidade democrática, livre, e rica. E a substância da cidade é a possibilidade de liberdade. As condições de florescimento da liberdade passam pela segurança. E a segurança decorre da desordem das actividades diárias das multidões que se cruzam e que se vigiam mutuamente. “The eyes of the street” são as ruas movimentadas da nossa experiência quotidiana. A “ordem espontânea” que se gera ao cruzarmo-nos com desconhecidos. Sem falsos moralismos nem indulgentes “áreas verdes”, essa panaceia universal para o problema das cidades, Jacobs contraria, com a inteligência da escrita fina, a condenação que nos reserva a suburbanização infinita do território e dos espíritos. Refuta o automóvel como leitmotiv do crescimento das cidades – e não conhecemos bem, nós, portugueses, o efeito do delírio dos peritos em transportes e acessibilidades, ao rasgarem as nossas cidades com auto-estradas? O argumento é simples: o urbanismo modernista rejeita a cidade porque rejeita o conceito de comunidade e dos indivíduos que a compõem e que nela vivem, e que se caracteriza pela complexidade das múltiplas experiências dos milhões de indivíduos que se cruzam todos os dias na cidade. À eficiência e ordem das utopias higienistas Jane Jacobs opõe uma estética da vibração, excitação, da redundância, da desordem natural da vida quotidiana.
[The Death and Life of Great American Cities, Jane Jacobs, 1961]
ii. street
Como desejo de construir a cidade, a arquitectura torna-se em coisa pública, directamente relacionada com o contexto cultural e político, e é por isso, também, que a arquitectura serve de ensaio para novas visões da sociedade. Vele à Scampia, Nápoles, é Gomorra. A destruição, das estátuas de sal quando se olha para trás. A arquitectura é a de um cárcere. A perspectiva quase piranesiana. A ordem é a da utopia: moral e higiene, homem novo. Mundo metodicamente organizado. Incluindo a vida. Que, evidentemente, extravasa as paredes de Scampia. Mesmo que apenas na morte. Mas citando o realizador, “blaming the architecture is too easy”.
[Gomorra, Matteo Garrone, 2008]
iii. block
12 Storeys é a vida e alienação nas megalópoles que devidamente incorporaram as mitologias urbanas modernistas. E um óptimo argumento para quem, odiando as cidades, anseia pelo “idílio” da natureza. Espaços verdes, zonning, ordem, mais uma vez. Deseconhecendo o contexto político e social de Singapura, não será difícil de identificar um regime que tudo quer separar para tudo poder vigiar. E controlar.
[12 Storeys, Eric Khoo, 1997]
iv. “o campo é um sítio onde eu paro para mijar entre duas cidade”*
E é de geografia que trata o filme de Miguel Gomes. Da contemplação dos rostos e das vozes dos habitantes do interior – abandonado? A câmara sem arrogância nem indulgência deixa, apenas – e este apenas faz toda a diferença – correr a vida naquele lugar. Há festa na aldeia. Por cima dos pequenos dramas existenciais de que se ocupam as horas em que nos dedicamos à sobrevivência.
[Aquele Querido Mês de Agosto, Miguel Gomes, 2008] *Manuel Vicente
O templo, no seu estar-aí [Dastehen] concede às coisas o seu rosto e aos homens a vista de si mesmos.
Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte
O filme leva-nos a Mopu. O filme é sobre Mopu. O filme é Mopu. Cidade remota, na base dos Himalaias, onde “as crianças são como as crianças doutros lugares, as mulheres são como as mulheres doutros lugares e os homens são como os homens doutros lugares”. O que é diferente é Mopu. As privações de um lugar a 2700m de altitude que resgata o que de mais humano existe em cada homem. É o lugar que habita os habitantes. As mãos e as faces maceradas pela carência do mundo onde este é mais vasto. E nós, homens, mais pequenos. Onde melhor o homem e as coisas se revelam.
Da(s) memória(s) das coisas. A História, a viajem, os vestígios do tempo e do espaço que as coisas transportam. Como o ukulele, do Minho à dança hula, (Tiago Hespanha), o pão-de-ló, de Aveiro a Tóquio, (André Godinho), do quotidiano de que lhe não reconhecemos o princípio. Talvez aqui tão perto.
Creio que o erro possa ser o derradeiro antídoto ante qualquer deriva totalitária. Capitalista ou socialista, haverá provavelmente sempre uma tentação de poder, aniquiladora das diferenças e divergências individuais e sociais. Ou o mercado que propõe a homogeneização dos comportamentos, tendo em vista o lucro maior; ou o Estado, paternalista e autoritário, que pretende o nosso bem-estar a partir de qualquer uma utopia colectiva. A falha humana será talvez o último território que contrarie estas lógicas destrutivas e que nos privam da liberdade plena. A partir da falha, do desvio, do erro, cada homem constrói-se à margem de qualquer autoridade exterior. De qualquer moral imposta a ferros que tenha como fim o controlo de qualquer obstáculo que impeça esse obscuro masterplan. É dessa fresta, entre o certo e o errado, entre o conhecimento e a ignorância de si próprio, que deriva o desejo, a vontade, a mais insondável aspiração de cada um de nós. É a zona interdita à observação microscópica e que refuta qualquer veleidade intransigentemente positivista.
É aqui THX1138.
A especulação de THX1138 manifesta-se na hipótese extrema de uma sociedade onde os nomes sejam substituídos por catálogos, os afectos dissolvidos em pílulas que os contrariam como se fossem vírus mortais em colisão com a ordem, onde a ausência de paixões e inclinações não contamine a concentração máxima exigida para que o indivíduo seja não mais que uma peça do dispositivo da produtividade total – ainda não máquinas, esses são aqui os polícias dos comportamentos morais e socias - onde o desejo, o sexo, seja ausente, nem como forma de propagação da espécie - o Estado encarregar-se-á de velar pelo número de nascituros necessários à manutenção do status quo, os cabelos rapados, a indumentária única – de um branco doentio. Infinito Big Brother que vasculha no mais precioso da nossa intimidade, que vigia a capacidade moral do indivíduo - encapsulado na unichapel que o Estado vigia e domina. Obsceno admirável mundo novo.
Assombrosa é a representação do lugar desta sociedade. O branco asséptico das habitações, despojadas de qualquer traço de individualidade e do habitar do sujeito, os espaços públicos de um cinzento neutro, pano de fundo onde se dissolve qualquer desvio que ponha em causa a ordem. A exploração e a investigação sobre as formas do habitar que culminam na prisão. Onde o ser não é autorizado a ser permitindo-se-lhe um submisso e insano estar. O branco infinito, homogéneo, sem limites, sem muros, sem paredes e sem divisões, sem qualquer murmúrio de arquitectura a partir da qual seja possível uma existência construída por cada um. Apenas o desamparo de cada um entregue a si próprio no nada.
Mas a fuga é possível. Pela recusa do comprimido obrigatório, pelo irromper violento do amor e do sexo, que conduzem o indivíduo, THX1138, ao desespero e à destruição daquilo que a partir daí se tornou o motivo de perplexidade no que resta de humanidade, a sua companheira LUH3417.
Há a fuga. Mas não é mais possível a redenção.
-
[THX1138, George Lucas, 1971]
Art is not a mirror, but a hammer. It is a weapon in our hands to see and say what is good and right and beautiful.
John Grierson
À distância de um século das visões progressistas, já elidimos o bem e o verdadeiro. Já só resta o belo. Já só resta. E quando acontece é um milagre. O milagre. E é bom e é verdadeiro. Moral da história, sobra-nos o quotidiano. Uma moral do dia-a-dia. Não será pouco.
[Drifters, John Grierson, 1929]
Tributar um post a um homem, que se não conhece, é um pedaço menina, ainda que este blog manifeste uma virilidade melancólica. Em todo o caso remeto-o, o post, para Nova Iorque.
Seis católicos, austríacos, falam para a câmara como se se dirigissem a Deus. Ou falam com Deus divididos pela câmara. Um a um, os crentes percorrem o caminho até ao altar - o lugar de Deus ou da câmara? - e rezam. De fora da igreja apenas breves takes da vida exterior de cada um deles. Dentro da igreja, Jesus é o confessor, o amante, o psicólogo. Que não se vê. A câmara minimalista é omnipresente e revela a angústia emocional das seis vidas. Não sem algum incómodo para o espectador, que permanece na dúvida: “Ninguém sabe das minhas angústias como Tu”, diz a mulher de meia idade em confidência assombrada pela presença da câmara. Nas igrejas vazias, mais vazias que nunca, resta o indivíduo, sozinho, no desespero da busca de uma maior realização nas suas próprias experiências humanas. Imperceptivelmente, no espaço vasto e vazio frente ao altar, cada um dos seis é quase como uma peça no décor que é a igreja. Através de uma visível correspondência entre o modo como cada um se dirige a Jesus – à câmara? - e a qualidade espacial de cada uma das igrejas.
No fim volta-se ao início e permanece a dúvida, debaixo da severidade da câmara e da densidade íntima e confessional do que se ouve e se vê, se tudo não passou de um entretenimento cínico do realizador, na ambiguidade entre a câmara e Deus e o que se diz pelo meio.