o entusiasmo dramático do ofício*


je ne separe plus l’idée d’un temple de celle de son edification

Or, de tous les actes, le plus complet est celui de construire. Une oeuvre demande l’amour, la méditation, l’obéissance à ta plus belle pensée, l’invention de lois par ton ame, et bien d’autres choses qu’ellle tire merveilleusement de toi-même, qui ne soupçonnais pás de les posséder.


Fixo, verdadeiro, imutável, o mundo das ideias é o refúgio de Platão à instabilidade do real. O sensível e o belo são as pistas pelas quais poderemos aceder à transcendência da verdade. E o conhecimento verdadeiro é o passaporte que nos liberta da caverna de sombras em que o nosso corpo nos aprisiona.
Eupalinos, o arquitecto de Paul Valéry a partir do mítico Eupalinos de Megara, ergue-se a partir do encontro do mundo das formas e da matéria em negociação com o mundo do real. Eupalinos desafia o pensamento socrático num cenário ático, belo e melancólico, em que decorre o diálogo entre os espectros de Sócrates e Fedro.
Eupalinos, o arquitecto, não mais distingue a ideia do templo da sua edificação. O belo não está na Ideia, mas no encontro desta com o mundo através da realização humana. O belo é a ideia e a sua execução. É neste encontro que se legitima a arquitectura como pensamento, é a partir daqui que se suspeita do contentamento platónico no simples trânsito pelo mundo das ideias que não se revela na acção. Ideia – projecto, matéria – edificação, indissociados, como tropo do pôr-em-obra. Palavra e acção, formas inteligíveis e formas sensíveis, às mãos do arquitecto como artesão de um ofício intelectual e, ao mesmo tempo, edificador, numa actividade que exige a presença e permuta recíproca do corpo e da alma.

Phèdre, me disait-il, plus je médite sur mon art, plus je l’exerce; plus je pense et agis, plus je souffre et me réjouis en architecte; - et plus je me ressens moi-même, avec une volupté et une claret toujours plus certaines.

O ofício do arquitecto faz-se desta inseparabilidade do pensar e do agir. O arquitecto é o que se constrói a si mesmo ao construir um edifício. O arquitecto conhece-se porque se lança ao mundo, à exterioridade da matéria, nos seus gestos: je m’avance dans ma propre édification; et j’approche d’une si exacte correspondance entre mes voeux et mes puissances, qu’il me semble d’avoir fait de l’existence qui me fut donnée, une sorte d’ouvrage humain. A force de construire, je crois bien que je me suis construit moi-même. O arquitecto, e a arquitectura, são-no na matéria feita tempo presente. A obra, como mediador, é o movimento a partir do qual nos reconhecemos e que se ergue do desenho – cosa mentale – e da matéria. Construir, habitar, pensar, como em Heidegger, exigem-se mutuamente.
Assim o é também na polis, no colectivo cívico e político que se edifica na urb física. Por isso uma civilização, uma cultura, uma sociedade, reconhece-se mediante as suas obras e coloca-se diante de si própria a partir das suas obras. A cidade e a arquitectura, sedimento do mundo que somos e que nos tornam presentes diante de nós mesmos, numa relevação da physis oculta, que através dela se revela. Por isso são as cidades e a arquitectura e o ornamento instrumentos de acesso ao conhecimento, no encontro de nós próprios com a história e valores individuais e sociais. Não se constituem como belo extrínseco mas constituem-nos a nós mesmos. Constroem-nos na simultaneidade do nosso acto do construir.

O conteúdo exige-se em forma. Torna-se forma, tal como a forma só o é a partir do conteúdo, na supressão da distinção binária do que é da ordem do sensível e da forma e o que é da ordem do inteligível e do conteúdo. O conceber é o executar, o ser é o agir. É esta mutualidade que torna intrínseco o habitar. É o construir da forma que exige o pensamento, porquanto, é mister do arquitecto inventar como se executasse. A arquitectura é o desejo tornado exequível, lugar da não-utopia, é o pensamento do factível e o actuar do inteligível.
O corpo é o lugar do entendimento. E por isso são Sócrates e Fedro espectros. É do corpo que o inteligível se torna sensível. É no corpo que os limites da obra são verificáveis. A geometria é a extensão do corpo no real. A geometria é o nó, nomear, do espírito com a matéria, a partir do corpo. Ceci, cher PHÈDRE, est le plus important : Pas de géométrie sans la parole. Sans elle, les figures sont des accidents ; et ne manifestent, ni ne servent, la puissance de l’esprit. Par elle, les mouvements qui les engendrent étant réduits à des actes nettement désignés par des mots, chaque figure est une proposition qui peut se composer avec d’autres ; et nous savons ainsi, sans plus d’égards à la vue ni au mouvement, reconnaître les propriétés des combinaisons que nous avons faites ; et comme construire ou enrichir l’étendue, au moyen de discours bien enchaînés.

Dis-moi (puisque tu es si sensible aux effets de l’architecture), n’as-tu pas observé, en te promenant dans cette ville, que d’entre les édifices dont elle est peuplée, les uns sont muets ; les autres parlent ; et d’autres enfin, qui sont les plus rares, chantent? Os edifícios cantam, e a música distingue-os de simples construções. A arquitectura muda - paradoxo? - nada nos diz de nós mesmos. Não nos convoca ao presente de nós mesmos. O silêncio é a ausência do corpo e da alma, do humano, que se perde e não emerge da obra. Este silêncio é o ruído das pedras afastadas da humanidade, como na natureza primeira sem a obra humana. Mais la Musique et l’Architecture nous font penser à tout autre chose qu’elles-mêmes ; elles sont au milieu de ce monde, comme les monuments d’un autre monde ; ou bien comme les exemples, çà et là disséminés, d’une structure et d’une durée qui ne sont pas celles des êtres, mais celles des formes et des lois. Elles semblent vouées à nous rappeler directement, — l’une, la formation de l’univers, l’autre, son ordre et sa stabilité ; elles invoquent les constructions de l’esprit, et sa liberté, qui recherche cet ordre et le reconstitue de mille façons ; elles négligent donc les apparences particulières dont le monde et l’esprit sont occupés ordinairement : plantes, bêtes et gens... A voz dos edifícios é a tradução das instituições humanas. É a imposição da cultura que nos torna melhores que nós mesmos. E é aqui a tirania da arquitectura. Ce qu’il y a de plus beau est nécessairement tyrannique...
— Mais je dis à Eupalinos que je ne voyais pas pourquoi il en doit être ainsi. Il me répondit que la véritable beauté était précisément aussi rare que l’est, entre les hommes, l’homme capable de faire effort contre soi-même, c’est-à-dire de choisir un certain soi-même, et de se l’imposer.
O edifício é a liberdade da escolha, no encontro do homem consigo mesmo. É mais o desejo e menos a ciência, a technè do espaço, a ordenação dos tektones pelo acto construtivo. Ao contrário do filósofo, que se exalta na contemplação quer do verdadeiro quer do falso, o arquitecto difere o pensamento, adia-o, para que o que seja, irá-ser, se reencontre nas exigências do que foi. Passado e futuro não são duas distintas direcções mas apenas um movimento de encontro. Encontro entre o que fomos, o que somos e o queremos ser.

A natureza no seu movimento lega-nos o acaso, que o arquitecto viola. A arquitectura é a violência contra a ordem natural das coisas. É a criação humana que se impõe à matéria informe. São actos de pensamento que geram a arquitectura, de acordo com o mundo humano.
De la même matière que sa forme : matière à doutes. C’était peutêtre un ossement de poisson bizarrement usé par le frottement du sable fin sous les eaux ? Ou de l’ivoire taillé pour je ne sais quel usage, par un artisan d’au delà les mers ? Qui sait ?... Divinité, peut-être, périe avec le même vaisseau qu’elle était faite pour préserver de sa perte ? Mais qui donc était l’auteur de ceci ? Futce le mortel obéissant à une idée, qui, de ses propres mains poursuivant un but étranger à la matière qu’il attaque, gratte, retranche, ou rejoint ; s’arrête et juge ; et se sépare enfin de son ouvrage, — quelque chose lui disant que l’ouvrage est achevé ?... Ou bien, n’était-ce pas l’œuvre d’un corps vivant, qui, sans le savoir, travaille de sa propre substance, et se forme aveuglément ses organes et ses armures, sa coque, ses os, ses défenses ; faisant participer sa nourriture, puisée autour de lui, à la construction mystérieuse qui lui assure quelque durée?
A arquitectura obedece à necessidade de resistência, a exceder os limites da mortalidade humana. A beleza da duração. A duração.
Como em Vitrúvio: firmitas, solidez, a construção; utilitas, as necessidades humanas; venustas, o belo. Como em Alberti, o nosso corpo, a nossa alma, o nosso tempo. O que apenas a nós, humanos, nos pertence. É desta simultaneidade que vive a arquitectura, na tentativa e na tentação da eternidade, condenados que estamos à transitoriedade e ao efémero. No encontro que estabelecemos com o que foi e o que será.
O arquitecto é o anti-Sócrates, o construtor que vai mais além dos nomes e das palavras. O que os põe-em-obra, em acção. Pôr-em-obra é o devir do arquitecto.
Construir é a prova de vida. O esforço amoroso, a reorganização da matéria e do mundo à medida do rigor do corpo, que lhe impõe uma ordem perene.


[Paul Valéry, Eupalinos ou l’Architecte, 1921]



*re-publicação de post editado a 12.9.2007 a propósito da recente tradução para português, de Maria João Mayer Branco, editada pela Fenda.

| João Amaro Correia | 26.5.09 |   | / /

red house painters


[Casa Vermelha, Pancho Guedes, 1969]

| João Amaro Correia | 25.5.09 |   |

Devir/To Become


[Devir/To Become, Marta Alvim, Silver Award no WorldFest-Houston International Film Festival]

| João Amaro Correia | 15.5.09 |   | / /

através das muralhas e das torres destinadas a ruir*

Importa mais a realidade que a verdade. A realidade, ela própria construção, é o resíduo humano que habita a verdade. A humildade humana cumpre-se na realidade, ergue-a na sua ignorância.
Ainda que ocorra um sopro da verdade nos negócios humanos, ainda que apenas um minúsculo infinito de luz arrebate a realidade, consola-nos essa experiência, sempre falhada, do real.
É a invenção, memória, esquecimento, o território fértil onde floresce a realidade.
Caminha-se tanto pelo desejo.



*Italo Calvino, As Cidades Invisíveis.

| João Amaro Correia | 12.5.09 |   |