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estradas nacionais [virá a morte e terá os teus olhos]

A paisagem derrubada pelo fogo. O território queimado pela negligência dos homens.
Regenera-se, lenta, a natureza. Mais lenta e dolorosamente prescindimos de um país possível.




És como uma terra
que nunca ninguém disse.
Não esperas nada
a não ser a palavra
que jorrará do fundo
como um fruto entre os ramos.
Um vento vem ter contigo.
Coisas mortas e secas
abafam-te e vão no vento.
Membros e palavras antigas.
No Verão tremes.

[A Terra e a Morte, Cesare Pavese]

| João Amaro Correia | 7.8.08 |   |

boring afternoons & private views


Se as meta-narrativas se elidiram na ansiedade da libertação individual, restam-nos as micro-narrativas como fresta privilegiada de acesso à realidade. Ou a interpretações do real. Sabemos bem, arquitectos, do domínio a que a disciplina está sujeita e que a torna subserviente histórica do poder. E é por isso que a arquitectura, para o ser, será crítica. E o último reduto crítico será político.
A espectacularização do quotidiano, fragmentado e disperso nas suas próprias representações, implode numa espécie de fosforescência fugaz que redunda o real num transitório e, ao mesmo tempo, infinito momento de troca de imagens. É aqui que a arquitectura serve as pretensões dos poderes difusos. De auto-representação e de apelo estético a uma identidade que o comércio dessas imagens pretende confundir como real.
Partamos das brochuras e dos suportes mediáticos que promovem os empreendimentos imobiliários eivados de “contemporaneidade” e “sofisticação”. Partamos do Tróia Resort:

"Na Área de Praia foi projectado um caleidoscópio de sensações doces e
reconfortantes como são os raios de sol que aquecem a irresistível Península de
Tróia. Junto ao fino e extenso areal o Troiaresort reinventou uma nova forma de viver a vida. Reuniu alguns dos mais audaciosos gabinetes de arquitectura que por sua vez
projectaram moradias contemporâneas que lançam um olhar intenso sobre a praia e o
mar. Traços de modernidade que convivem lado a lado com a natureza no seu melhor."

"Os benefícios de um moderno resort, perfeitamente inserido numa paisagem de excepção, tornam o Troiaresort num local singular quer pelo conceito quer pela classe."

"Situados na parte ocidental da Área Central do Troiaresort, os Apartamentos Turísticos da Praia são a antecâmara do paraíso. O acesso ao dourado areal faz-se de forma privilegiada através de um caminho de descontracção e bem-estar. Veja e seja visto numa atmosfera de exclusividade."

Nada aqui é vida, ou arquitectura, se se quiser, mas tudo um pouco ruína.
Da frágil península onde os bulldozers inegociáveis atacam restará um “paraíso” fabricado e insensato, ou PIN, como lhe chama o Dr. Pinho; a já costumeira velhaca confusão entre espaço público e interesse público com a propriedade privada e interesses impenetráveis; o ressentimento enclausurado em condomínios de acesso restrito e revestido a glamour e plástico; o medo, arcaico leitmotiv demasiado humano, dissimulado em modernidade equivocada; um país, uma cultura, que se desorienta num aparente cosmopolitismo que não será mais que um provinciano desejo de ser “como os outros”.
A tudo isto a política recuou e a arquitectura demitiu-se.
Ou é isto ou é a ganância sem freios.

| João Amaro Correia | 25.5.08 |   | / / /

estrada nacional#16


Todos iguais. Todos diferentes.

[Alcochete, autor desconhecido]

| João Amaro Correia | 9.4.08 |   | /

estrada nacional#15

Mas eu amo este país mais do que todos os outros,
Tanto é que aqui estabeleci a minha morada.

Ovídio

La zonage, en tenant compte des fonctions clefs: habiter, travailler, se récréer, mettra de l’ordre dans le territoire urbain. La circulation, cette quatriéme fontion, ne doit avoir qu’un but: mettre les trois autres utilement en communication.

Carta de Atenas

O provincionamismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela – e segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação consciente e feliz.

Fernando Pessoa


[Montijo]
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Perdoam-se os arquitectos, uns aos outros, entretidos com capas das revistas ou a fazer pela “vidinha”, perdoam-se os políticos, pelo viver habitual pátrio, perdoam-se os urbanistas, subtraídos à forma das cidades, perdoam-se os engenheiros, mais interessados em abrir as hiper-vias do futuro, perdoam-se os consumidores, que tudo devoram desde que tenha cachet, mas não se perdoam as cidades. E elas crescem pela corrente de qualquer coisa que não sabemos ainda entender bem. Não é da sociologia, nem da racionalidade pura da contagem dos minutos até ao centro da cidade, não é da arquitectura, porque já tudo é um pouco feio, não é da cultura, porque essa já é quase igual em todo o lado. Faltam-nos cidades civilizadas. Falta-nos a liberdade de poder dizer, aqui, e habitar aqui, sem razão aparente, apenas porque se gosta ou detesta e não porque nos condenamos a ser remediados e com a vida e as cidades adiadas.
Persistimos, técnicos e cidadãos, no total abandono, desleixo, com que desistimos das cidades. Reproduzem-se os mesmos "modelos", habituados, desadequados, envelhecidos, experimentados e negados, apenas porque há um “modelo”. Mas as cidades recusam um “modelo”. A história recorre ao sabor da irracionalidade do desejo e, o desejo de quem faz a cidade portuguesa, é pobre, infeliz e triste, e apresentado com o vigor com que o novo design de comunicação nos abraça em promessas de um futuro que faz esquecer o presente.
E a nossa modernidade, anacrónica e já fora da história, é um zonning obtuso, custeado por grandes pequenos médios promotores, complacentes arquitectos, passivos cidadãos, aos quais a política se submete. São as aspirações centrais e o jacuzzi e a hidromassagem sem tempo, mas com a esperança de que um dia, as novas acessibilidades restituam alguns minutos perdidos na ansiedade da viagem madrugadora – a 20 minutos de Lisboa, dizem. A nossa contemporaneidade é o abandono e o desamor da paisagem, o libidinal betão armado convertido rapidamente em ouro e em deserto.
Tudo a 5 minutos do centro da cidade – já só falta querer viver na cidade.

| João Amaro Correia | 18.3.08 |   | / /

estrada nacional#14

Afinal quem terá aprovado os "projectos de José Sócrates" na Câmara da Guarda? Terão sido os verdadeiros autores? E quem terá aprovado os projectos de José Sócrates na Câmara da Covilhã?


[Engenheiro Técnico José Sócrates]


O pano de fundo, a atmosfera do que se constrói, chegou ontem à capa do Público. Se há mérito na democracia é podermos eleger um igual para os mais altos cargos de representação. Sócrates, o seu carácter, tem essa virtualidade. É um de nós, dos esquemas, da pequena corrupção, da inocente trafulhice, que só queria “fazer pela vida”. Conseguiu o terceiro posto mais alto da nação. Conseguiu “safar-se”. E para além da espessa barreia da propaganda é humano. Como nós.

| João Amaro Correia | 2.2.08 |   | /

estrada nacional: galo de barcelos blues


O itinerário, em mosaico, da vida que resta, da que se exauriu, pela Estrada Nacional 2. O roteiro da democracia que tarda a chegar, justa, aos caminhos do interior.
Os operários da pequena e debilitada indústria ao fim da tarde no café da aldeia. Fatos-macaco manchados pelo óleo da auto-reparadora, atados à cintura, e a t-shirt encardida, patrocínio do restaurante Cova Funda, a mini, aberta com uma pancada seca na aresta já lascada da mesa café. Central na “tortuosa da rua direita”, onde, vem nas brochuras adjudicadas pela Câmara e que indicam ao fundo a igreja com o retábulo em talha dourada, as muralhas recuperadas, e depois, ainda mais ao fundo, diante do abismo, a paisagem natural, aqui e agora o paraíso time-sharing do civilizado oficial vá-para-fora-cá-dentro dirigido aos CEO Parque das Nações e às secretárias Cacém, de “fazer perder a respiração”.
São as cidades que se desmoronam nas escarpas do Douro. Os lugares da planície traficada pela miragem do milagre do progresso enfim. Nos centros comerciais de lojas de “lucro duvidoso”, na cave da lady’s night e do karaoke, emulação da província MTV. “Aqui não há muito para fazer.” O cineteatro às sextas, a filarmónica aos sábados, o rancho aos domingos, dia santo do consumo remediado pelas prateleiras do novo Jumbo que perde em favor da arrumação do antigo Intermarché. Somos pós-modernos sem que tenhamos passado pela modernidade.
Sair. Emigrar é o resgate. Sair. Largar a terra. “Rota do êxodo”. Os 50% da população que abandonaram o lugar da Picha nos últimos quarenta anos. Censos 2001. “Aqui não há emprego. O que eu queria era ir para uma cidade grande. Viseu, Coimbra, ou mesmo Lisboa, onde se ganham 1200 euros.” E os discos pe(r)didos na rádio local são o espaço público da solidão partilhada, dedicada à saudade dos que partiram.
A vida que ainda vai existindo, resistindo na nostalgia do que se perdeu e na melancolia do que poderia ter sido. Um país que vai definhando, desesperando pelo novo troço de ligação da EN2 com a Estrada da Beira, que cose o território retalhando um pouco mais a vida dos lugares – “se conhecerem alguém lá em Lisboa...”
Não é ficção, não é caricatura, a vida pelo teatro.
Mas a feira regressará outra vez no ano que vem para celebrar a Nossa Senhora dos Remédios. Chocaremos nos carrinhos enquanto, mais um pouco, se vai existindo. Num gerúndio resignado.


[EN2/PT, direcção de Ruben Tiago, com Andresa Soares, Nuno Lucas, Ruben Tiago, 29.1, 21.30h, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian]

| João Amaro Correia | 29.1.08 |   | /

estrada nacional#13

É o cepticismo, a atitude que se impõe.

George Steiner, No Castelo do Barba Azul



Revolver a superfície plana das imagens que a arquitectura também constrói e veicula, é trabalho ontológico da própria arquitectura. Como produtora de cultura, a arquitectura, estabelecerá relações com o tempo, os lugares, as memórias, a matéria. Será o elo concatenador do indivíduo com o seu espaço e tempo. O veio de transmissão, inicial e quotidiano, do homem com o mundo, com o passado, o presente e o futuro. Daí ser ela também objecto de desejo. E de consolo. Uma proposta de pensamento, “exterior às palavras”, originário tanto da razão como do coração, das ideias e da matéria.
Acontece curto-circuito, a arquitectura torna-se instrumento de representação. Uma casa são as aspirações do indivíduo moldadas pela matéria. O desejo é a vontade de um mundo. O mundo torna-se plural com a manifestação das diversas vontades. A arquitectura abre o(s) mundo(s). É o mister do arquitecto abrir o mundo.
A abertura é o devir de todas as possibilidades. O novo absolutamente novo e o antigo re-construído à luz contemporânea são os refúgios recorrentes. O espanto do original ou o reconhecimento do autenticado por gerações passadas, são os dois lados de um plano impaciente, como uma folha branca à espera das palavras, que nos deixa suspensos. Com a avidez nervosa das novas formas ou a pretensa unissonância do passado ordenado, eterno jardim, esforçamo-nos por alguma segurança reactiva com que confrontamos o abismo do tudo-possível.
O compromisso do arquitecto será ético. A radicalidade do ofício será a da inteligência com que se administrará os materiais que se dispõem sobre o estirador: memórias, desejos, técnicas, tecnologias, matérias, necessidades e possibilidades, adequação.
Não coabitando pacificamente com o presente, ou humilhamos o passado ou alimentamos a expectativa de resgate pelo futuro. Incapazes de (nos) entendermos (n)o hoje, ou sonhamos com as redentoras tecnologias do amanhã ou glorificamos o passado agora mítico. E elide-se qualquer possibilidade da arquitectura ser.


[Moradia Unifamiliar, Fontaínhas da Serra, Atouguia, Ourém, autor desconhecido]

| João Amaro Correia | 24.1.08 |   |

estrada nacional#12


Sabemos bem, desde Adolf Loos, que o ornamento não é crime. E com Venturi reaprendemos a comunicá-lo.

[EN113, Escandarão, Ourém]

| João Amaro Correia | 23.12.07 |   |

estrada naciona#11


A aterragem da volúpia industriosa da construção civil não está a ser suave. Depois de 15 ou 20 anos de juros bonificados, de proveitos às autarquias decorrentes da construção massiva nas nossas cidades, de insustentável pressão sobre o território, de investimentos impensáveis num bem escasso como a paisagem, de inflacionamento irreal dos preços do imobiliário, do imobiliário como fonte inesgotável de riqueza, eis-nos com a paisagem desfeada, um sector vital da economia quase estagnado, em que as soluções à vista não sugerem uma perspectiva optimista sobre o que está aqui em causa. E o que está em causa é a qualidade da democracia que também se mede pela democratização do território.
O território, bem único e escasso, tem sido esteio do progresso económico do país, e por paradoxo, atirado ao desleixo e maus tratos, em favor de uma pirâmide de interesses gananciosos. A confluência de interesses, legítimos uns, muitos a ultrapassar a legalidade, sobe dos pequenos empresários, que se viram subitamente diante do toque de Midas transfigurado em betão armado, às autarquias, que recolhem assinaláveis proveitos para melhor produzirem as afáveis rotundas com que qualquer cidade portuguesa nos acolhe. A rede dos pequenos e mesquinhos interesses sobrepôs-se a qualquer ideia de progresso, democracia e, mais doloroso, liberdade.
A actuação estatal sobre o território é casuística. É a ausência daquilo que é banal e cansativo reconhecer a cada ciclo eleitoral: uma ideia, uma estratégia de desenvolvimento sem que se destrua tudo à passagem das pesadas máquinas que terraplanam o território. Ao sabor daquilo que os privados legitimamente pressionam mas que são apenas isso, interesses privados, as nossas cidades crescem ao ritmo com que o Orçamento Geral do Estado é exaurido para a construção de auto-estradas e vias rápidas que cosam o território consumido pela cupidez. Aparentemente as soluções seriam simples. Regrar a construção, recuperar os núcleos antigos das cidades, densificar o seu interior, e assim por diante, numa estratégia habitar as cidades e estancar a mancha ruinosa de betão armado que se alarga em volta destas.
Numa perspectiva liberal, não querendo parecer os dogmáticos blogs políticos, é imperioso mexer no mercado agora, para que a própria liberdade esteja a salvo.
Como bem único, o território é de todos, não pode ser refém de interesses que resultam, regra geral, na “guetização” quer das cidades, quer da própria paisagem. As cidades são historicamente a mais elevada realização humana. É isso que hoje, em Portugal, ainda não compreendemos.


[Mafra, Quinta de Stª Bárbara]

| João Amaro Correia | 18.12.07 |   |

estrada nacional#10


O arquitecto é também um conciliador. Entre o passado e o presente e o futuro, entre o que é e o que não é, entre o mundo das ideias e o mundo da matéria. O mundo das ideias, a cultura, actua sobre a paisagem que é, strictu senso, o seu suporte. Em sentido estrito, pois a paisagem não é apenas “suporte” mas matéria de trabalho. É, portanto, a acção da arquitectura, uma acção cultural.
Na década de 80 Manuel Graça Dias elaborou sobre a “casa do emigrante”. Da genuinidade e da vitalidade dos desejos que lhes subjaziam. De uma certa psicologia que as ordenavam, da afirmação do sucesso individual alcançado em terras distantes, que se opunham ao desfasado e desconfortável vernáculo que os viu nascer. Era a importação não apenas dos modelos dos lugares de acolhimento mas também toda a ideia de conforto e ascensão social que lhes estariam associados. A casa do emigrante era, é, por assim dizer um curto-cirtuito, do desejo à matéria, do emigrante à obra, sem, na maior parte dos casos, a mediação do arquitecto. É uma construção genuína da própria individualidade.
A acção do arquitecto terá necessariamente ser uma acção do concerto dos desejos com o devir do desenho em obra. E tanto mais conseguido será o apaziguamento de um acto violento como o é a construção quanto maior for o seu entendimento do ser e do tempo e do modo. Da sua cultura. O desenho é a intenção representada da tentativa da organização de (um) mundo. E é no desenho que se organiza a constituição desse mundo, dessa verdade.
Mas humanos, demasiado humanos, os arquitectos tendem, muitas vezes, à organização do mundo a partir do umbigo. E é aí que reside a falência da arquitectura. E aquilo que era a vitalidade do exemplo casa do emigrante, de um desejo da individualidade afirmada no mundo, mesmo com a escassez cultural que porventura lhe estaria na origem, é no arquitecto a arrogância das certezas absolutas e do vazio das imagens reproduzidas sem entendimento das mesmas.
A inconsequência egotista tornada condenação das cidades.

[Caldas da Rainha, autor desconhecido]

| João Amaro Correia | 11.12.07 |   |

estrada nacional#9


Há qualquer coisa de fantasmagórico na Estrada Nacional 1. Um espectro, uma agonia interrompida esporadicamente pela actividade que se vai mantendo em lugares precisos.
A EN1 é uma viagem pelos “modelos de crescimento” da nossa economia, democracia. É uma viagem pelos cafés abandonados outrora paragem de camionistas, pelos anúncios caóticos de actividades que prosperaram e hoje muitas definham à beira da antiga principal via do país, pela luz néon que já brilhou em jornadas nocturnas e agora se funde irremediavelmente, pelos armazéns toscos que evoluíram como comboios à medida das necessidades, chapas de zinco provisórias que se foram sobrepondo umas às outras na expectativa de dias que as tornassem definitivas, exposições ao ar livre dos apliques ornamentais em gesso que decoravam as casas de gosto e que e que agora nos ofendem no nosso prazenteiro passeio burguês, parques a industriais de materiais de construção e decoração que vão sobrevivendo num gerúndio inadequado às importações das novelas TVI e à formatação do desejo monte-você-mesmo made in Sweden. O roteiro do gosto e do desgosto desviados do olhar que agora corre fugaz pelas A1 e A8 que competem pelos flancos.
O esvaziamento da EN1 é uma digressão pelas opções erráticas de um país que se densifica ao litoral, que é servido pelas auto-estradas e vias rápidas que seguem paralelas e que distam entre si pouco mais que 20km e que servem todos os lugarejos que distam menos de 50km da linha de costa. O abandono da EN1 é a escolha numa paisagem negligenciada, desfeada, que a aceleração nos perfis de auto-estrada esconde. O vazio da EN1 é o desabitar do interior do país numa directa proporção à fixação da população ao longo das vias acelerador de partículas que se vão chocar algures entre Setúbal e Braga. É a rota do progresso que torna anacrónicos os dálmatas em porcelana estilhaçados pela velocidade com que se acede à grande superfície mais próxima, e ela é cada vez mais próxima e a cada dia maior.
A geografia da EN1 é o compêndio do nosso desprezo pela paisagem num comércio demagógico pelo progresso.

| João Amaro Correia | 6.12.07 |   | /

estrada nacional#8


Despois de Raúl Lino e a questão identitária, a partir do conhecimento do lugar, da adequação dos materiais, de uma sensibilidade local mas cosmopolita no gosto, Fernando Távora desenvolve uma aproximação crítica ao “regionalismo”. Este exercício crítico retoma o tema da identidade da arquitectura portuguesa e da sua articulação com o cânone modernista, à época no seu paroxismo, naquilo que se poderá considerar uma ética do construir. Data de 1947 O Problema da Casa Portuguesa. É também uma tentativa de resistência ideológica e cultural que abre caminho para um regionalismo crítico avant la lettre.
A sugestão da re-leitura do catálogo modernista à luz daquilo que seriam as especificidades dos lugares, gerou arquitecturas que recorriam sem pudor às capacidades expressivas dos materiais do tempo. Do betão armado à crença ainda viva da capacidade da arquitectura concorrer para a transformação social.
Ainda que tímidos, mais ou menos complexados, vamos encontrando pela paisagem alguns exemplos dessa tentativa de reacção cultural ao oficioso discurso arquitectónico erguido da tresleitura de Raul Lino e que propunha um modelo “universal” do que seria a casa portuguesa.
E ao contrário de hoje, onde se reproduzem os exemplos de um arcaísmo transmutado em modernidade, de plástico, de “volumetrias puras”, brancas, e da respectiva pala sobre o vão – que de repente se tornou a citação mais banalizada da nossa produção corrente recente, mas isso será todo um outro post – destituídos de qualquer reflexão e crítica culturais, mergulhados numa espécie de pragmática industrial do que é ser moderno ou contemporâneo.
Retomemos Fernando Távora, recuperemos a arquitectura como um “um trabalho feito pelo homem para o homem”.

[Mira d'Aire, autor desconhecido]

| João Amaro Correia | 5.12.07 |   | /

post postmodern

O pós-modernismo tentou uma fuga filosófica, ética e formal ao diktat racionalista. Através de jogos formais, da citação, contaminação linguística, de um sentido de liberdade e de possibilidade e da recuperação histórica e arquitectónica.
Na Guild House, [1960], Venturi faz uso de alguns elementos decorativos e simbólicos - a simetria e a estereotomia do tijolo, a coluna enfática, o arco, a antena de televisão - declarando less is bore em contradição com Mies van der Rohe. A crítica de Venturi ao modernismo aparece em Learning from Las Vegas [1972] onde sublima o banal.
Segundo Charles Jenks o pós-modernismo seria qualquer coisa construído após 1972, ano em que Pruitt-Igoe em St. Louis – habitação para famílias de baixo rendimento – é declarado um falhanço e a experiência de construção massiva em altura implode. Assinala-se a dinamite o fim simbólico do modernismo.
Na lógica de Jenks, o pluralismo é uma das principais características do pós-modernismo, enfatizada pela necessidade do arquitecto experimentar diferentes “tendências” culturais na sua acção. A conclusão, de Jenks, é que o pós-modernismo, meio-moderno, meio-qualquer-outra-coisa, é uma tentativa de comunicação capaz de chegar tanto ao grande público como com à minoria iniciada.
Esta é uma das muitas definições do pós-modernismo – o pluralismo na própria tentação da sua definição – mas o tom de fundo é sempre a fuga à abstracção modernista. Quanto mais não fosse pelo quebrar do esgotado espartilho racionalista e pela proclamação das múltiplas possibilidades linguísticas da arquitectura.
Eventualmente esgotada a citação historicista em meados de 80, os arquitectos vêm-se obrigados, até por vaidade, a reencontrarem de novo o novo.

A liberdade tem um preço. Pode ser uma boa gargalhada.


[Nazaré, autor desconhecido]

| João Amaro Correia | 23.11.07 |   | / / /

estrada nacional#7


Tanto mais eficaz é o processo do projecto quanto melhor se souber o que é que os clientes estão exactamente a pensar.

[EN242, Marinha Grande - Nazaré]

| João Amaro Correia | 22.11.07 |   |

estrada nacional#6


À inteligência do arquitecto não deverá escapar, nunca, a responsabilidade da sua acção como produtora de cultura. Com consequências que ultrapassam o próprio tempo de vida do arquitecto. Para além da acção directa sobre o bem escasso que é o espaço público, um edifício vive mais tempo que um homem. Dois dos mais imediatos e materiais efeitos da violência do construir – arte pública. Mas há consequências imateriais, não contabilizáveis em duração nem em peso, sobre o território. O poder gerador de mundo(s) e de realidade(s), a capacidade de re-pensar a banalidade quotidiana, a re-significação dos gestos mais frívolos, das rotinas mais irreflectidas, podem ser também uma dessas consequências, e que aproximam a arquitectura dos alvoroços ciência ou dos murmúrios da arte.
Esta noção – de transformação – é um encargo com que o arquitecto terá que contar. Mas a ponderação desta realidade poderá ser um pretexto para o próprio projecto. E ser mais lúdico ou mais eloquente, mais tímido, chão ou retraído – linguagens? – não refuta nem reforça a gravitas deste acto. A cada contexto o seu pretexto, cabe ao arquitecto evidenciar a inteligência que subjaz ao acto de construir. O consolo da arquitectura é essa inteligência que nos emociona. Mesmo quando, necessariamente, temos de ir à casa-de-banho. É, literalmente, a inteligência de um mundo.
Entre a dimensão local e um desejo mais cosmopolita, da informação de que dispomos no estirador – que não conhecimento - corremos o risco de mergulhar em simulacros e trejeitos mais ou menos fúteis, mais ou menos frouxos, mais ou menos inúteis, se não existir no acto do projecto um esforço crítico que se comprometa com as contingências e essencialidade do projecto. Ignorar o empenho analítico, à luz de alguma indolência pretensiosa, redunda na dissimulação da realidade em assemblages burlescas. Piadas involuntárias que se tornam caricaturas de si mesmas.
Cantarias, em pedra, à antiga, molduras de caixilhos em pvc; Rietveld en passant, purismo redentor e higiénico, pintado a branco, guardas aço-inox horizontais em fundo de sexta-feira santa, seriedade perturbada pela insolente curva remanescente da varanda. E um buraquinho, na palinha, provavelmente, para o arquitecto enfiar a pilinha.

[Quinta do Seixo, Leiria]

| João Amaro Correia | 15.11.07 |   |

estrada nacional#5


Uma casa é um sinal de cultura, a projecção do homem no meio e ponto de referência na paisagem. Qualquer obra de arquitectura ou cidade são no espaço. São acontecimentos que têm lugar no espaço, que estabelecem relações com o lugar onde se situam. E o lugar é a síntese dessa incidência humana sobre a natureza e a própria natureza, com a qual o homem trava uma luta para a poder habitar.
À imagem arquitectónica importa ir além da mera representação técnica. As imagens, como fim-em-si, como fantasmas, contradizem os propósitos da arquitectura e da sua materialização. São espectros que ensombram o imaginário dos arquitectos, sem qualquer propósito que não o da mera especulação – ainda que necessária. Genuinamente a muitas delas subjaz intencionalidade reflexiva, mas da hiper-reprodução electrónica das imagens resultam quase sempre simulacros ou fortuitos e frívolos gestos egotistas dificilmente mais que vazios. Sobra algum optimismo, resultante do acesso à arquitectura
gerado pela dinâmica comunicacional, de um público mais alargado e menos ilustrado no discurso disciplinar.
Seguindo a pista de Foucault, a história é, também, uma forma de controlo e domesticação do passado. Os edifícios – e as cidades – são susceptíveis do mesmo revisionismo interpretativo e de uma contínua reinvenção e reinterpretação. Construímos o que vemos e experimentamos e construir é materializar o nosso entendimento do mundo. Ou a tentativa de lhe encontrar uma ordem e dar sentido.
A voz comum do tempo e do ser, que se re-constitui em símbolos inaugurais, aquém da racionalidade, numa representação para além do seu significado imediato, determina uma sintaxe que se expressa inconscientemente. O Partenon, as Ordens Clássicas, a necessidade de estruturar coerentemente os elementos, respondem ao desejo de conformidade com o mundo – harmonia, proporção, ritmo, unidade -, justificam o nosso desejo de que essa coerência seja bonita. E implicam que o significado experimentado seja “traduzido” para um outro suporte, a materialidade da arquitectura.
O pastiche irrisório, a colagem vernacular tosca, a citação incongruente, a repetição irreflectida, negligenciam o mister arquitectónico. Ao invés de se libertar o significado imediato da coisa, tornando-a num objecto cultural passível de novas leituras significantes, aprisiona-se, pobre, deslocada, descontextualizada, e pantomina. Comédia, ainda assim, vital.

[Vilar dos Prazeres, Ourém]

| João Amaro Correia | 10.11.07 |   |

estrada nacional#4


O compromisso da arquitectura com o real torna-se operativo como “arte do possível”. Nem só do labor no erro, que é a cópia infinitamente [mal] reproduzida, vive o construir português contemporâneo.
A pragmática da construção é matéria prima do trabalho do arquitecto. E tanto mais os constrangimentos se dispuserem no estirador, menos branco permanece o papel, ainda que não se alivie a angústia. O processo torna-se mais complexo, mais denso, porventura mais moroso, mas mais consciente e consistente.

Dois volumes, repousam sobre a colina, contradizem o congestionamento da Estrada Nacional 1 para onde se voltam. Sóbrios, convincentes e seguros, afirmam-se pela abstracção rigorosa com que se erguem e com que são rasgados. Pragmáticos, filtram a luz de poente que incide num duplo pé-direito com painéis ripados de madeira, que se repetem nas portadas exteriores dos necessários vãos – apenas e só os indispensáveis. Alheio aos vizinhos, aspirantes a modernos, pós-modernos, pós-rurais, assenta num embasamento de betão cru, nu.

A quem tenha conhecimento, solicita-se que revele a autoria do projecto.

[Quinta do Seixo, Leiria]

| João Amaro Correia | 8.11.07 |   |

estrada nacional#3


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Depois do advento, da prosperidade e do apogeu do neo-rural que pontuou a paisagem construtiva arquitectónica corrente, com zénite na segunda parte dos anos 90, o novo-riquismo arrivista vai adaptando o seu cânone arquitectónico a linguagens mais consentâneas com uma qualquer ideia de sofisticação e de modernidade. Privados e anónimos, que desejam aceder a imagens e a vivências contemporâneas e que querem uma casa de acordo com essa aspiração de status. Promotores, que já aí encontraram um nicho de mercado, filão por explorar e, em tempos de abrandamento da actividade imobiliária, modo de se destacarem das linguagens mais “tradicionais”. Arquitectos, que começam a ver no terreno o resultado do aumento exponencial de profissionais, que tentam assegurar a abertura a novas gramáticas arquitectónicas, apadrinhadas pelo mercado e mais de acordo com a “erudição” em que foram formados.
Não importa para aqui fazer uma sociologia desta apetência por uma “nova arquitectura”, importa, de facto, é o desejo de novas formas do habitar. E o sentimento de que a arquitectura lentamente adquire uma importância que antes não se sentia na paisagem. Mas corre-se o risco de substituir um arquétipo, rústico, na sua génese e forma e imagem, por um outro, pseudo-sofisticado, na sua forma e imagem, e ainda rústico, no seu habitar. É decisivo aqui o elemento crítico da arquitectura. E se a pobreza cultural que o neo-rústico encerra é por si só evidente, as aparências de modernidade que se disseminam pelo território obrigam-nos a uma leitura mais atenta. Leitura, diria, dos mesmos sinais de atraso cultural, embora dissimulado em modernidade.

A reprodução do cânone neo-moderno, sem a necessária reflexão estética e ética, multiplica-se pela paisagem. O excesso de consumo de modelos próximos – as casas de Souto Moura, as massificação das palas Siza Vieira, a arquitectura “chã” e “silenciosa” que um paralelepípedo pintado a branco supostamente propicia, caixilharias mínimas, vãos máximos – num afã a-crítico, origina equívocos tanto de natureza ética como construtiva e estética. O erro é claro a partir daqui: fundem-se e confundem-se imagens sem a densidade, por exemplo, das arquitecturas acima mencionadas; manipula-se o saber construtivo, como se estivesse ao alcance de qualquer um utilizar o tipo de acabamentos que Souto Moura utiliza, e que são, até certo ponto, centrais no seu pensamento; “inventam-se” pastiches sem qualquer significado, espessura e densidade cultural e arquitectónica que não apenas a tradução exacta em tectónica desse mesmo provincianismo cultural. Porque tudo aqui soa a falso e postiço como no neo-rural anacrónico: a suposta instabilidade dos tempos é um mero jogo de intersecções de formas “puras”, o contextualismo e pretenso regionalismo é a forra de viroc “a imitar madeira” e o revestimento em pedra a imitar pedra. Mero jogo de aparências sem qualquer conteúdo, sem a produção de qualquer sentido, despido de intencionalidade crítica. Nem sequer a um passeio pela história e por imagens da arquitectura somos conduzidos. Apenas à evidência da preguiça, insegurança, desamor com muitos de nós, arquitectos, afirmamos a profissão.
A nova obsessão é ser-se moderno – modernaço -, sofisticado. Numa caixa branca, com Deus ausente dos detalhes.


[Estrada Nacional 113, Cardosos, Leiria]

| João Amaro Correia | 7.11.07 |   |

estrada nacional#3


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Depois do advento, da prosperidade e do apogeu do neo-rural que pontuou a paisagem construtiva arquitectónica corrente, com zénite na segunda parte dos anos 90, o novo-riquismo arrivista vai adaptando o seu cânone arquitectónico a linguagens mais consentâneas com uma qualquer ideia de sofisticação e de modernidade. Privados e anónimos, que desejam aceder a imagens e a vivências contemporâneas e que querem uma casa de acordo com essa aspiração de status. Promotores, que já aí encontraram um nicho de mercado, filão por explorar e, em tempos de abrandamento da actividade imobiliária, modo de se destacarem das linguagens mais “tradicionais”. Arquitectos, que começam a ver no terreno o resultado do aumento exponencial de profissionais, que tentam assegurar a abertura a novas gramáticas arquitectónicas, apadrinhadas pelo mercado e mais de acordo com a “erudição” em que foram formados.
Não importa para aqui fazer uma sociologia desta apetência por uma “nova arquitectura”, importa, de facto, é o desejo de novas formas do habitar. E o sentimento de que a arquitectura lentamente adquire uma importância que antes não se sentia na paisagem. Mas corre-se o risco de substituir um arquétipo, rústico, na sua génese e forma e imagem, por um outro, pseudo-sofisticado, na sua forma e imagem, e ainda rústico, no seu habitar. É decisivo aqui o elemento crítico da arquitectura. E se a pobreza cultural que o neo-rústico encerra é por si só evidente, as aparências de modernidade que se disseminam pelo território obrigam-nos a uma leitura mais atenta. Leitura, diria, dos mesmos sinais de atraso cultural, embora dissimulado em modernidade.

A reprodução do cânone neo-moderno, sem a necessária reflexão estética e ética, multiplica-se pela paisagem. O excesso de consumo de modelos próximos – as casas de Souto Moura, as massificação das palas Siza Vieira, a arquitectura “chã” e “silenciosa” que um paralelepípedo pintado a branco supostamente propicia, caixilharias mínimas, vãos máximos – num afã a-crítico, origina equívocos tanto de natureza ética como construtiva e estética. O erro é claro a partir daqui: fundem-se e confundem-se imagens sem a densidade, por exemplo, das arquitecturas acima mencionadas; manipula-se o saber construtivo, como se estivesse ao alcance de qualquer um utilizar o tipo de acabamentos que Souto Moura utiliza, e que são, até certo ponto, centrais no seu pensamento; “inventam-se” pastiches sem qualquer significado, espessura e densidade cultural e arquitectónica que não apenas a tradução exacta em tectónica desse mesmo provincianismo cultural. Porque tudo aqui soa a falso e postiço como no neo-rural anacrónico: a suposta instabilidade dos tempos é um mero jogo de intersecções de formas “puras”, o contextualismo e pretenso regionalismo é a forra de viroc “a imitar madeira” e o revestimento em pedra a imitar pedra. Mero jogo de aparências sem qualquer conteúdo, sem a produção de qualquer sentido, despido de intencionalidade crítica. Nem sequer a um passeio pela história e por imagens da arquitectura somos conduzidos. Apenas à evidência da preguiça, insegurança, desamor com muitos de nós, arquitectos, afirmamos a profissão.
A nova obsessão é ser-se moderno – modernaço -, sofisticado. Numa caixa branca, com Deus ausente dos detalhes.


[Estrada Nacional 113, Cardosos, Leiria]

| João Amaro Correia | |   |

estrada nacional#Café Central


Há mesas isoladas, como ilhas, e mesas juntas em arquipélago, por conveniências maleáveis que podem durar um quarto de hora ou anos. Há penínsulas de políticos, uns são caciques eternos, ancorados ao oceano público com favores domésticos e dinheiros europeus, outros não passam de aspirantes a boiar no tachinho regional.
Há botas caneleiras com pregos na sola que contam que dantes se ia tomar o café a Lisboa, um só café e voltava-se para casa, 200 para lá, 200 para cá, 400 quilómetros pelo prazer da bica na Baixa, e sem auto-estrada, isso é que era ser rico. E que ainda antes desse tempo, um homem ia a Lisboa com a mulher às compras no Natal e a viagem dava destaque no jornal da terra, “o nosso periódico deseja, em nome de todos os seus amigos e conterrâneos, boas compras pelo Natal e muita saúde ao excelentíssimo senhor doutor e elegante esposa, no regresso de Lisboa”.
Há jovens agricultores, empresários de dois jipes, dados pelos fundos perdidos da União Europeia, e que os sujam, em passeios todo-o-terreno, nas lavas latifundiárias que não chegam a semear.
Há os que chegam de directa da Boîte Dancing Colmeia, na Estrada da Burra, onde se deitam com brasileiras num tanque de silicone e whisky marado, debaixo da intensa luz negra, a lâmpada roxa que destaca as dentaduras. Um desaparece num cubículo mas regressa como um tonto, de calças em baixo, aos pulinhos, de preservativo mal colocado na pila, branquíssimo.
- Por favor, alguém sabe como é que isto se mete às escuras, eh, eh? e a brasileira atrás, humilhada e divertida, reencaminha o bêbado para o quarto e diz-lhe, quase cantando, como brilha nessa luiz negra, como é branca tua camisinha murcha, oi minino não se enerva não, tava brincado quirido, me deixa ligar tua lâmpada amorr, deixa comigo, quer beijinho molhado não quer?, pronto, eu faço, teu fantasminha careca já me vai assustar...
E outras figuras tristes que dão para rir a semana inteira, a não ser que alguém fale de sida, foda-se, prò caralho mais essa conversa!
- Que grande arraia.
O Sol nasce e saem a tropeçar para o ar do campo, chocalhando as últimas moedas no casacão de vitela, à procura da chave do carro, porque na Boîte Dancing Colmeia a música faz muito barulho para telefonar a mentir à mulher, eh pá estive até agora com o coiso a conversar, e o café não é tão bom como o do Cortiça.
Há quem um dia experimente falar de pintura, poesia e tendências contemporâneas da Arte
- A arte da seca, eh pá cala-te!
Há espectros que estampam o carro três vezes na curva do Sanatório, e preparam cuidadosamente a quarta, falta-lhes quebrar o osso da bacia e o pescoço, são esqueletos remendados que andam, duplos do seu próprio filme.
Há mulheres que se divorciam porque, subitamente, queriam ser elas próprias.
Há barões com dinheiro, dinheiro sem barões. Há nomes de nobre que vendem carros a tipos sem nome nenhum.
Há amigos verdadeiros, amigos leais como não se encontra em qualquer outro canto do mundo, e há gente que se odeia e cruza dez anos sem se falar.
- Boa tarde a todos menos a um.
Há homens que estão sentados há 40 anos a lutar pelo desenvolvimento da terra.
Há raparigas com acne, a cara em obras, que fumam 35 cigarros e estão a reduzir. Há as que mantêm diálogos por sms de uma mesa para outra, conversas de tardes inteiras, e também mms, fotografam-se para ficar melhor na fotografia do que na verdade.
Às vezes trazem a pila do namorado guardada na galeria de imagens secretas, um pénis digitalizado com carinho, vamos lá ver se não me engano e envio esta ao meu pai por engano, ih, ih, e, sempre que necessário, pedem o multibanco à mãe para recarregar o telemóvel.
Há política e futebol e mesas de homens e mesas de mulheres, separadas como nas missas antigas, mas o que mais interessa é o romance, universal em todos os cantos do mundo. O [café] Cortiça é um rumor de vozes amplificado, ondas descoordenadas de som, uma tagarelice lenta com lava ao rubro, chávenas a bater, silvo da máquina do café, o mini-berbequim das moscas furando o fumo azul do tabaco.


Rui Cardoso Martins, E Se Eu Gostasse Muito de Morrer, 2006

| João Amaro Correia | 24.6.07 |   | / /