dos sentidos


Quando há arquitectura?, admitindo Nelson Goodman, “quando há arte?”, um artefacto é apreendido como objecto de arte em função das disposições culturais de quem os apreende, tendo em conta que estas evoluem nos tempos e nas sociedades.
Esta posição subentende que não é do domínio filosófico determinar quais as “obras de arte” e quais as que o não são. À filosofia caberá agora estabelecer quais a proposições correctas em determinada ciência.
No que toca à arquitectura constatamos uma espécie de invisibilidade: quem não apenas, ela inscreve-se na neutralidade neutralidade impossível, na medida em que a nossa existência também se mede pelo nosso habitar - da passagem e paisagem quotidiana. “Quando há arquitectura?” Quais são os critérios que estruturam a visibilidade da arquitectura e a nossa percepção da arquitectura, a legitimidade da arquitectura?

A arquitectura balança-se entre o visível, o sensível, o que nos acompanha, o que acompanhamos, e o inteligível, o invisível, o que gera o nosso sentido e o sentido que produzimos.

[João Luís Carrilho da Graça, Centro Comercial, Leiria]

| João Amaro Correia | 30.11.07 |   |

a traição das palavras

vernáculo | adj. | s. m.

do Lat. vernaculu

adj.,
nacional;
próprio do país ou região a que pertence;
fig.,
genuíno, correcto e puro, no falar e no escrever;
diz-se da linguagem isenta de barbarismos;
s. m.,
o idioma próprio do país;
a linguagem correcta e pura.


A traição do que hoje será a arquitectura vernacular reside na intencionalidade do desenho. A intencionalidade estética, a acção deliberada de um arquitecto, é ausente das imagens que associamos ao vernáculo.
O vernáculo era antes uma pragmática vitruviana sem a tratadística e a partir das intuições e das contingências dos menos eruditos.
O máximo a que poderemos aspirar é a uma interpretação. A arquitectura está condenada a ser contemporânea.

[Rodrigo Azevedo, Casa Penedo, Rio de Janeiro, 2000]

| João Amaro Correia | |   | /

o grande auditório


Em menos de um século a Cova da Iria transforma-se de baldio inóspito e desabitado no sopé da Serra de Aire a cidade com projecção mundial. O sagrado é a distinção que lhe está na origem. Quer creiamos quer permaneçamos cépticos – ou cínicos – perante o fenómeno de Fátima é necessário tentar compreender a fé que ali tem lugar para melhor entender a génese e o dramático crescimento do outrora ermo que hoje é cidade “Altar do Mundo”. O lema “Altar do Mundo” elucida-nos sobre o que é hoje Fátima: lugar de peregrinação que acolhe anualmente milhões de pessoas de todas as proveniências.
Durante muitos anos as estrutura urbanas de Fátima foram insuficientes para dar resposta à pressão sazonal das peregrinações. A água faltava recorrentemente, os sistemas sanitários eram insuficientes. O Santuário de Fátima, naturalmente com uma palavra a dizer sobre o urbanismo, respondia com razoável qualidade às solicitações dos peregrinos, os agentes privados – o comércio religioso, a restauração e a hotelaria - cresceram e prosperaram e hoje adequam-se à procura cada vez menos sazonal e o Estado fez investimentos de vulto em estruturas viárias, saneamento e de redes de água. Mas antes, a cidade cresceu rapidamente e o planeamento e as arquitecturas erigidas não o foram condizentes com o espírito do lugar. Outras seriam – são ainda - as prioridades de uma terra, um povo, que desde 1917 vertiginosamente adquire meios de escapar ao infortúnio económico e social a que estaria sujeito se a História não se tivesse revelado. O carácter de Fátima joga-se num território entre o sagrado e o profano, consagrado até institucionalmente na acção da reitoria do Santuário de Fátima que dispõe de instrumentos que lhe permitem vetar ou anuir qualquer operação urbanística desde o Plano Director Municipal ao simples licenciamento do comércio. Mas nem este tipo de cuidados foram suficientes para travar o desleixo urbanístico e a fealdade da maior parte dos edifícios ali construídos – e foram-no todos após 1917.

A nova Basílica da Santíssima Trindade pretende ser um espaço em que o sagrado se revele ao crescente número de peregrinos. Implantada no topo sul do recinto do Santuário, fecha-o, ainda que, dada a escala, tal não seja imediatamente perceptível. Esta intenção de fechamento e resguardo é vincada pela futura passagem da Avenida D. José Correia da Silva, desviada em túnel, de modo a que a superfície contígua à Basílica – eixo Basílica antiga, Basílica Nova - e que remata no Centro Paulo IV, se faça livre de trânsito automóvel.
Das intenções: [a nova Basílica] “não pode ser senão de harmoniosa complementaridade, dado que a Capelinha das Aparições, construída no local onde Nossa Senhora apareceu, constitui, juntamente com a imagem que na mesma se venera, o lugar frontal do Santuário, ou seja, aquele para que converge, onde chega, e donde parte, a totalidade dos peregrinos e visitantes. É necessário que as celebrações do GECA [Grande Espaço Coberto Para Assembleias ] não só não distraiam os peregrinos da Capelinha, como ajudem a encaminhá-los para lá. [...] Desde o princípio se procurou que a articulação e harmoniosa relação com o conjunto edificado (Capelinha, Basílica com colunatas, casas de Nossa Senhora do Carmo e Nª Sª das Dores, Centro Pastoral) e mesmo com a zona verde de ligação aos Valinhos «deve garantir-se por um processo de inserção a todos os níveis”.
A proposta vencedora, do arquitecto grego Alexandre Tombazis, se do ponto de vista urbanístico é eficaz, não responde ao que o concurso se propunha. A planta circular, com 125m de diâmetro, ergue-se a cerca 20m de altura. A planta é rasgada e o volume suportado por duas vigas monumentais que reforçam o eixo do recinto, curiosamente descentrado, do local das aparições. Talvez a primeira imprecisão da arquitectura, neste desvio. Fátima será a humildade da “Capelinha das Aparições”, nunca a opulência anacrónica da antiga Basílica. O eixo que é agora fortalecido, até pela continuidade que se prevê para recinto, é simbolicamente um afastamento ao que é, na sua essência a mensagem de Fátima. Teria sido obrigação do arquitecto reconhecê-lo. A porta principal é nesse eixo. Do pronaus, despido de carga simbólica, vulgar corte na planta circular, somos conduzidos não para a Entrada no espaço sagrado, onde a porta assinala a passagem, mas, oprimidos pela força do pórtico que sustenta todo edifício, somos atraídos na direcção da antiga Basílica. A porta principal, transição onde se revela o desejo humano de distinguir o sagrado do profano, é secundária em toda aquela cenografia monumental. O trabalho em bronze de Pedro Calapez é a única distinção deste momento.
A ordem geométrica circular da Basílica é paradoxal. Se o eixo tem um encontro, óbvio, no altar da Basílica, o centro do círculo desvanece e é omitido na vastidão daquele espaço. Se se prentendia com o círculo afirmar a distância com que Deus nos acolhe, igual para todos os humanos, reforçada com as 12 portas dos 12 apóstolos de Cristo, perde-se o princípio desse símbolo e a centralidade da presença divina é empurrada para sul, para o altar onde termina o pórtico monumental.
As alusões do branco do betão no pórtico à mensagem de Fátima - brancas são as vestes com que se representa Maria aparecida na Cova da Iria - podem também referir-se ao calcário com que se erguem a Batalha e Alcobaça que pouco distam, mas essa surpresa é esmagada pela impositiva escala desse pórtico.
A atmosfera interior são os revestimentos e a tecno-tela que “regula” a intensidade luminosa no espaço. Artifícios fúteis e acessórios à solenidade que o lugar impunha. O altar, tal como o pronaus que lhe é simétrico, aparece-nos como sobra, remanescente do grande esforço que seria erguer um espaço para 9.000 pessoas. Sem densidade nem extensão à dimensão sagrada, quase como mero palanque cerimonial só contrariado pelo ofuscante ouro do painel que lhe dá fundo, do esloveno Ivan Rupnik. Como escalas de representação, elide-se a profundidade do altar numa monumentalidade frívola.

O programa poderia ter o destino de um museu ou de uma biblioteca ou de qualquer finalidade que convidasse a algum recolhimento e reflexão. É agradável mas não é vivificante como será a relação do humano com o divino. Da pedra a partir da qual se deve erguer a comunidade dos crentes resta um metafórico e trivial revestimento exterior.
A monumentalidade da obra não se deveria manifestar apenas na extensão física da Basílica mas em primeiro lugar ser suportada na grandeza das manifestações de fé de que Fátima é expressão. Os aspectos práticos do erigir um espaço vasto conduziram o desenho e o projecto, mais que um vínculo do terreno com o sobrenatural. E se esse vínculo é frágil na sua expressão humana, resta-nos o consolo de confiarmos na omnipresença de Deus. Mesmo num grande auditório.


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| João Amaro Correia | 25.11.07 |   | /

post postmodern

O pós-modernismo tentou uma fuga filosófica, ética e formal ao diktat racionalista. Através de jogos formais, da citação, contaminação linguística, de um sentido de liberdade e de possibilidade e da recuperação histórica e arquitectónica.
Na Guild House, [1960], Venturi faz uso de alguns elementos decorativos e simbólicos - a simetria e a estereotomia do tijolo, a coluna enfática, o arco, a antena de televisão - declarando less is bore em contradição com Mies van der Rohe. A crítica de Venturi ao modernismo aparece em Learning from Las Vegas [1972] onde sublima o banal.
Segundo Charles Jenks o pós-modernismo seria qualquer coisa construído após 1972, ano em que Pruitt-Igoe em St. Louis – habitação para famílias de baixo rendimento – é declarado um falhanço e a experiência de construção massiva em altura implode. Assinala-se a dinamite o fim simbólico do modernismo.
Na lógica de Jenks, o pluralismo é uma das principais características do pós-modernismo, enfatizada pela necessidade do arquitecto experimentar diferentes “tendências” culturais na sua acção. A conclusão, de Jenks, é que o pós-modernismo, meio-moderno, meio-qualquer-outra-coisa, é uma tentativa de comunicação capaz de chegar tanto ao grande público como com à minoria iniciada.
Esta é uma das muitas definições do pós-modernismo – o pluralismo na própria tentação da sua definição – mas o tom de fundo é sempre a fuga à abstracção modernista. Quanto mais não fosse pelo quebrar do esgotado espartilho racionalista e pela proclamação das múltiplas possibilidades linguísticas da arquitectura.
Eventualmente esgotada a citação historicista em meados de 80, os arquitectos vêm-se obrigados, até por vaidade, a reencontrarem de novo o novo.

A liberdade tem um preço. Pode ser uma boa gargalhada.


[Nazaré, autor desconhecido]

| João Amaro Correia | 23.11.07 |   | / / /

euro2004


Está ainda por fazer um levantamento exaustivo, e académico, do Euro2004 em Portugal. E por consequência, nas cidades.
Depois da euforia e da unanimidade demagógica em volta dos efeitos identitários do evento, inflacionados e manipulados ao sabor das conveniências conjunturais – sem contudo deixar de nos assustar o que de mais pernicioso tem a manipulação de um sentimento primário como é este patriotismo incivilizado – sobra muito que estudar e analisar sobre o que se passou, nas causas e nas consequências.
Mais que a Expo98, localizada num bairro da capital e com derivas furtuitas em alguma outras cidades, via Programa Polis, o Euro2004 afigura-se como paradigma da forma como nos vemos e como nos representamos. O tema é iminentemente político, porque as decisões foram, em primeira instância, políticas. Mas a amplitude do acontecimento extravasa o campo político e é matéria de interesse para outros domínios. Da sociologia à antropologia, da economia ao urbanismo, 2004 afigura-se como um genuíno case study bem no meio da nossa realidade. Ou como diria o outro senhor, do nosso viver habitualmente. Porque, exactamente, o alcance de um torneio de futebol que envolveu 16 equipas extravasou – extravasa – as quatro linhas do relvado. E este é logo o primeiro problema. O futebol hoje, como manifestação de massas, solicita uma interpretação do simbólico, a qual não poderei, naturalmente, empreender. Mas se é nos pequenos gestos do quotidiano que nos revelamos, é nos picos, de excitação ou depressão, que nos transformamos. Ou se cristalizam tendências. E ainda hoje, passados três anos, as tendências verificadas pelo Euro2004 se mantêm e reproduzem.
As marcas que restam nos tecidos urbanos das cidades que acolheram o Euro2004 são território próspero e natural para verificarmos a importância do que se passou - passa. Se no urbanismo do Estado Novo eram simbólicas as praças principais das cidades – Praça dos Três Poderes – como representação de uma ordem que se pretendia mansa e imutável, hoje o futebol, via estádios, e com todas as implicações culturais decorrentes, assume primazia na nossa auto-representação e preenche o vazio deixado pelas descredibilizadas instituições da ordem política. O Estádio é a concretização simbólica da descrença na coisa pública e paradoxalmente o corolário das nebulosas prioridades políticas.

Ilustrando o que afirmo, Leiria, cidade de pequena dimensão, teve a audácia de desejar um estádio novo. Com óbvio prejuízo para as contas públicas, foi uma decisão política, claramente extemporânea, numa cidade que nem a equipa de futebol local apoia, permanecendo um mistério o seu financiamento. Desta decisão decorrem encargos pesados para a cidade, qualquer que seja o ângulo em que a tomemos. E no plano urbanístico são evidentes à saciedade.
Fez-se um estádio novo, para 30.000 espectadores – e imaginemos que o estádio atinge a lotação máxima só com habitantes da cidade, cerca de metade da população da urbe estará concentrada no recinto – no sítio onde o antigo e modesto estádio municipal se encontrava. Chamou-se um arquitecto de “renome” e, sem qualquer pudor arquitectónico ou urbanístico, ergue-se uma estrutura que tem a virtualidade que esmagar o “acidente” que dava escala a toda a cidade “histórica”. O “acidente” é o monte onde pontifica o castelo - silhueta frágil que ainda hoje a câmara exibe orgulhosamente no seu site como imagética da cidade – e a “história” passa agora a ser representada com outros valores mais consentâneos com o rolo compressor desta nossa tacanha pós-modernidade. Ele próprio, o Estádio.
O Estádio é omnipresente. O Estádio é agora a “nova centralidade” que os urbanistas, e ainda mais a classe política, gostam de fabricar com laivos e aspirações de contemporaneidade. O Estádio é, acidental e simbolicamente, o ponto de fuga das ruas e avenidas daquele bocado da cidade. E o Estádio é uma ferida aberta, não direi no coração, mas talvez no rim, da cidade.
A norte da cidade, tudo é Estádio. Desce-se a Nacional 1 e em vez do castelo e toda a construção indentitária e histórica que lhe está associado, somos confrontados, ou melhor, oprimidos com a hiper-monumentaliade daquela estrutura que faz explodir a delicada pacatez da colina-memória-da-cidade. É a imagem da Nova Leiria [nome atribuído ao novel bairro contíguo].
Mas como o trabalho ficara a meio, o buraco remanescente da festa perdura a céu aberto. E como na origem desta operação urbanística não houve algum cuidado, orientação, ou programa, para além da exibição excêntrica de uma modernidade vazia, não se sabe muito bem o que fazer com o “vazio urbano”.
Propostas sucedem-se. Concurso aberto. Três grandes grupos promotores aparecem associados, mais uma vez, a “arquitectos de renome” que levarão a cabo a tarefa de polvilhar o baldio com estacionamentos automóveis massivos e o obrigatório pavilhão multi-usos [tuti-fruti] associado ao sequente centro comercial [para “rentabilizar”, para se “pagar a si próprio”] os quais a cidade, evidentemente, não carece. Mas mais uma vez, e no domínio do simbólico, algo de surpreendente sucede.
Como o “topo norte” do estádio permanece incompleto [Estádio Imperfeito], só com estrutura erguida, não se encontrou programa que o preencha. O monstro urbanístico, que é o próprio estádio, torna-se num monstro político que testemunha o total desgoverno das nossas cidades. Surgem agora propostas para albergar no dito “topo norte” os serviços camarários concentrados e uma loja do cidadão de “última geração”. Rendemo-nos à estupefacção. Confirmamos: depois das rústicas Praças dos Três Poderes - rústicas nas imagens mas urbanas em escala – é ela própria, a representação política, que acode ao Estádio.

Este exemplo serve tanto como a inabilidade da Câmara Municipal de Lisboa para fazer frente ao ultimato do Sporting Clube de Portugal, para que lhe seja permitido densificar de forma absurda o final do Campo Grande. Obviamente, para “rentabilizar”. Ou o do Estádio da Luz a pressionar a Segunda Circular, que com o Centro Comercial Colombo no lado oposto da auto-estrada se erguem como as novas portas da cidade.

E servem estes exemplos para nos confrontarmos com a qualidade das decisões políticas tomadas nas últimas décadas, no que às cidades diz respeito. Ambição tornada cupidez, modernidade subjugada ao provincianismo. O “pensar em grande” tomado na sua literalidade e pressionando as cidades, os orçamentos, com mega-estruturas gananciosas, sem qualquer espécie de inteligência urbanística. As necessidades urgentes das cidades, a pequena escala da rua, do bairro, é elidida em favor das grandes realizações que em nada promovem a qualidade de vida dos indivíduos.
Mais grave que o árido urbanismo destes mega empreendimentos, é a corrosão da qualidade da nossa democracia.

| João Amaro Correia | |   | /

estrada nacional#7


Tanto mais eficaz é o processo do projecto quanto melhor se souber o que é que os clientes estão exactamente a pensar.

[EN242, Marinha Grande - Nazaré]

| João Amaro Correia | 22.11.07 |   |

hermenêutica de fim-de-semana#4

... é preciso ter um sentido muito económico dos meios. Não sou nada sensível a uma arquitectura que precise de grandes meios e seja perdulária na sua linguagem. A arquitectura mais forte é aquela que consegue atingir o máximo da expressividade com justeza de meios.

Gonçalo Byrne, Expresso, 10.11.2007


Espaços & Casas, Expresso, 17.11.2007

| João Amaro Correia | 18.11.07 |   | / /

construo, sou


[...] porque a arquitectura é sempre aquilo que queremos ser.

[Charles Correa, Fundação Champalimaud, Lisboa, Público, 16.11.2007, p.14]

| João Amaro Correia | 16.11.07 |   | /

intervalo[s]

In Greek, chora means 'place' in very different senses: place in general, the residence, the habitation, the place where we live, the country. It has to do with interval; it is what you open to 'give' place to things, or when you open something for things to take place. [...] Chora is the spacing which is the condition for everything to take place, for everything to be inscribed. The metaphor of impression or printing is very strong and recognizable in this text. It is the place where everything is received as an imprint. There have been many interpretations of chora, typically reducing chora or projecting into chora various systems, Kant's for example. Chora resists all these interpretations.

Jacques Derrida, 1987


Ainda Byrne, a entrevista e a exposição. Ainda a incidência numa definição que encontrei já diversas vezes pronunciada por Gonçalo Byrne. “A arquitectura é um contentor de vida.” Frase que encontrou errância nas minhas incipientes reflexões. Por cá ficou, ainda que com um travo de abandono e de enigma. Aparentemente inofensiva, trazida no ameno registo com que o arquitecto Byrne discursa, há qualquer coisa de incompleto, e ao mesmo tempo fechado, por paradoxo, nesta frase. Nesta palavra, “contentor”.
Contentor
é uma ideia fechada. É um cerco. Um utensílio, que pode ou não proporcionar a transitoriedade de um conteúdo. Mas é passivo, necessita da manipulação e de uma determinação que lhe é exterior. Cheio ou vazio, o contentor é contentor. É anódino. Está, e é essa a inexorabilidade do seu ser. Apenas estar. É essa implacabilidade da coisa, do ser contentor de um conteúdo que lhe é estranho, que sentenceia a proposição “contentor de vida” a um vazio ontológico.
Ora, a arquitectura, será tudo menos o “vazio”. Será mesmo o seu contrário, e como a natureza, tem-lhe horror. O trabalho essencial da arquitectura é invocar uma ordem para o mundo. Uma metáfora das penas de Adão e Eva expulsos do paraíso. Uma metáfora do fora-do-paraíso, onde o mundo, e o espaço, exigem naturalmente uma diferenciação. Um centro e um limite. Uma interioridade e uma exterioridade.
Ser “contentor de vida” lança a arquitectura para a cenografia. Contentor pode ser cenário. Suporte, como meio, media, da vida. Necessidade despida de uma dimensão estética, reduzida a um funcionalismo insignificante, por não produzir sentido. Nem é habitável, por ali apenas se está.
A tentação da arquitectura é ser reveladora do que está oculto. Das subtilezas do que se esconde para lá do jogo das aparências. A sua experiência é a da manifestação do invisível, a nomeação do que ainda não tem nome. E é aqui que ela começa a habitar-nos e nós a ela.
O ser contentor nega este caminho de duplo sentido. O ser contentor é condição que acusa uma quietude no mundo e uma situação na ordem das coisas sem que as fira ou sequer lhes toque. E a arquitectura é o intervalo entre nós e o mundo, produtora de outros mundos.

| João Amaro Correia | |   |

estrada nacional#6


À inteligência do arquitecto não deverá escapar, nunca, a responsabilidade da sua acção como produtora de cultura. Com consequências que ultrapassam o próprio tempo de vida do arquitecto. Para além da acção directa sobre o bem escasso que é o espaço público, um edifício vive mais tempo que um homem. Dois dos mais imediatos e materiais efeitos da violência do construir – arte pública. Mas há consequências imateriais, não contabilizáveis em duração nem em peso, sobre o território. O poder gerador de mundo(s) e de realidade(s), a capacidade de re-pensar a banalidade quotidiana, a re-significação dos gestos mais frívolos, das rotinas mais irreflectidas, podem ser também uma dessas consequências, e que aproximam a arquitectura dos alvoroços ciência ou dos murmúrios da arte.
Esta noção – de transformação – é um encargo com que o arquitecto terá que contar. Mas a ponderação desta realidade poderá ser um pretexto para o próprio projecto. E ser mais lúdico ou mais eloquente, mais tímido, chão ou retraído – linguagens? – não refuta nem reforça a gravitas deste acto. A cada contexto o seu pretexto, cabe ao arquitecto evidenciar a inteligência que subjaz ao acto de construir. O consolo da arquitectura é essa inteligência que nos emociona. Mesmo quando, necessariamente, temos de ir à casa-de-banho. É, literalmente, a inteligência de um mundo.
Entre a dimensão local e um desejo mais cosmopolita, da informação de que dispomos no estirador – que não conhecimento - corremos o risco de mergulhar em simulacros e trejeitos mais ou menos fúteis, mais ou menos frouxos, mais ou menos inúteis, se não existir no acto do projecto um esforço crítico que se comprometa com as contingências e essencialidade do projecto. Ignorar o empenho analítico, à luz de alguma indolência pretensiosa, redunda na dissimulação da realidade em assemblages burlescas. Piadas involuntárias que se tornam caricaturas de si mesmas.
Cantarias, em pedra, à antiga, molduras de caixilhos em pvc; Rietveld en passant, purismo redentor e higiénico, pintado a branco, guardas aço-inox horizontais em fundo de sexta-feira santa, seriedade perturbada pela insolente curva remanescente da varanda. E um buraquinho, na palinha, provavelmente, para o arquitecto enfiar a pilinha.

[Quinta do Seixo, Leiria]

| João Amaro Correia | 15.11.07 |   |

a educação do arquitecto

Não me parece, Lourenço, que Gonçalo Byrne, no parágrafo citado, se refira ao “divórcio entre a arquitectura que é pensada” e à vox populi. Julgo mais plausível que o arquitecto estivesse, justamente, a entrar no jogo e se referisse aos “universos formais dos arquitectos que se habituaram à excepção e à excentricidade”. Vamos pôr mesmo a hipótese que estava a confrontar a sua produção, com carácter mais reservado e circunspecto, com as arquitecturas que pontificam habitualmente nas publicações mais na moda, mais performativas e estridentes. Mas esse é um campeonato que Gonçalo Byrne também joga, a despeito das suas próprias afirmações.
A necessidade de repensar o banal e o quotidiano, que num discurso arquitectónico pode tomar o nome de acompanhamento, é de facto, imperiosa, nas práticas contemporâneas - e sobretudo na produção portuguesa, com o nosso território atravessado por arquitecturas impensadas e impensáveis que o desfearam como uma catástrofe que sobre ele se abateu. Mas esse é um jogo que Byrne não joga. Talvez porque tenha acedido a um estatuto que lhe permita trabalhar quase exclusivamente na excepção. Uma passagem pelo site do arquitecto, pela lista de projectos, elucida-nos a esse propósito, quer programaticamente, quer tipologicamente. A análise mais detalhada das suas obras confirma, também contrariamente ao discurso, a exuberância nos acabamentos e nos materiais, disfarçada regionalismo e de minimalismo e de adaptação e apropriação do genius loci. Há, aparentemente, qualquer disfuncionalidade entre o discurso e a prática. Não vemos Byrne a “sujar as mãos”, numa expressão roubada ao Mestre Manuel Vicente. E “sujar as mãos”, para o arquitecto, passa por um compromisso com as contingências do real, que num projecto de acompanhamento são muito mais pertinentes e impositivas e evidentes, do que numa obra de excepção.

Mas a educação do arquitecto também terá muito a ver com esta atitude cultural. Desde o dia em que entramos numa escola de arquitectura somos bombardeados com a reverência submissa à excepcionalidade de alguns cumes históricos. E muitas vezes, sem qualquer amparo teórico e histórico, deleitamo-nos, a reboque de muito professor-arquitecto, com as façanhas arquitectónicas, num sortido tão arbitrário como a meteorologia ou as inclinações sentimentais do professor. Sem qualquer fio condutor, cirandamos de excepção em excepção, sem “sujarmos as mãos”.
Talvez esta educação pela excepção explique muita da arrogância dos arquitectos, de que nos chegam ecos doloridos, e com razão.

| João Amaro Correia | |   | / /

hermenêutica de fim-de-semana#3

... é preciso ter um sentido muito económico dos meios. Não sou nada sensível a uma arquitectura que precise de grandes meios e seja perdulária na sua linguagem. A arquitectura mais forte é aquela que consegue atingir o máximo da expressividade com justeza de meios.

Gonçalo Byrne, Expresso, 10.11.2007

Justamente, António, referi que me importa mais o que diz Gonçalo Byrne do que aquilo que faz. Porque este discurso da justeza é, em certa medida, contraditório com a sua própria produção. Reconhece-se essa contradição logo a partir do conceito de justeza, que Gonçalo Byrne afirma, ao mesmo tempo que discorremos mentalmente pelas suas obras, e da subsequente crítica a linguagens mais loquazes, porventura histriónicas. Temo que esta amena justeza, conservadora na sua natureza, dividida o mundo em dois: os “puros” e a proposta de regeneração social; os canibais hedonistas que tudo colam, tudo citam, tudo pilham, com o propósito único da auto-satisfação como princípio e fim moral. E o conservadorismo desta proposta decorre deste maniqueísmo – e admito que uma entrevista ao suplemento de fim-de-semana do mais pacato semanário da paróquia não proporcione mais alto trabalho conceptual.
Kubler e o Chão, o inquérito, o Moderno, a tentativa da máxima expressão, mínima nos meios, coisas de uma geração, mas nem por isso desprezíveis. E como as coisas são, como tento lembrar todos os dias ao acordar, mais complexas e contraditórias do que parecem, dessas referências conceptuais do arquitecto Byrne, na sua prática parecem restar apenas as imagens desse, digamos, minimalismo-vernacular. É uma linguagem dócil, sincera e ponderada, de “composição de alçado”, a qual corre o risco de se submeter ao jogo das formas em desprimor da experiência da própria arquitectura.

O interessante da entrevista - e de algumas obras de Byrne - reside na observação da capacidade transformadora da arquitectura. E aí Byrne ensina-nos alguma coisa. A afirmação do lugar como, também mas não só, pretexto ao acto da projectação e que o lugar resulta, ele próprio, da acção da arquitectura nesse determinado contexto. É essa, chamemos-lhe, fenomenologia do lugar, que interessa.


p.s. O rei de copas [Charles Correa, Kanchanjunga, 1970/1983]. Passo a cartada ao Lourenço.

| João Amaro Correia | 14.11.07 |   |

i saw, i am


[Martha Rosler, Bection (Lynndie), 2004]

| João Amaro Correia | 13.11.07 |   | / /

hermenêutica de fim-de-semana#2

Mais que as múltiplas publicações da especialidade, regra geral ou acessíveis apenas aos iniciados, ou esvaziadas de qualquer motivação crítica, a prática arquitectónica colhe em maior divulgação se difundida nos canais ao alcance da média burguesia – que tem a capacidade, via procura, de poder alterar o panorama construtivo. E é a quem dispõe desta capacidade, inconsciente, que os arquitectos se devem dirigir, na produção de imaginários modernos e cosmopolitas. Ainda que um certo elitismo bafiento da classe despreze as aspirações da classe média, é com ela que a arquitectura poderá pretender transformar alguma coisa. Se é que pretende.
O Expresso deste fim-de-semana ilustra o que afirmo.

Eduardo Souto Moura não precisa de recorrer ao powerpoint para erguer um discurso denso e consistente sobre a prática da arquitectura. Também não lhe reconhecemos a veia pirotécnico-performativa, usual noutras latitudes, quadrantes e gerações, na exposição de um qualquer dos seus trabalhos. A justeza dos meios, a economia das palavras, o idioma de obra, resultam numa linguagem acessível e culturalmente rica. Interessa-nos tanto o que diz como o que faz, numa reprise de observações históricas feitas à acção de tantos mestres-arquitectos. Um discurso assim estruturado, e estruturante, terá a enorme vantagem de aproximar a prática disciplinar dos indivíduos mais cépticos à actuação dos arquitectos e da arquitectura. Não brilhará, como o sol na televisão, nos circuitos mais trend do coloquialismo arquitectónico. Deixa o rasto de um certo anacronismo comunicacional, mas não cede na complexidade cultural e crítica. É arquitectura pura e dura. Que alcançou a visibilidade que tem por valor próprio. A entrevista ao suplemento Espaços & Casas - haverá cabeçalho mais classe-média que este? - do jornal Expresso, é um abundante terreno de inspiração.

A primeira pergunta da entrevista alude prontamente a projectos imediatamente reconhecíveis pelo público. Obras públicas e museus, mas mais interessante que isso – Espaços & Casas – a entrevistadora Marisa Antunes recorre aos muito mediáticos empreendimentos Bom Sucesso e Vila Utopia. Para o bem e para o mal, facilmente se reconhecerá a pertinência destas empresas na transição para o mainstream de nomes importantes do reduto arquitectónico. Pese embora todas as contradições, decorrentes da situação do mercado e da sociedade, a que projectos deste tipo estejam sujeitos. Mas ao nomear o Bom Sucesso e a Vila Utopia a intenção será talvez situar o leitor no patamar de “excelência” da arquitectura de Souto Moura e legitima-la através de símbolos reconhecidos de qualidade. Perversa inversão dos termos a que o marketing nos conduz.
A franqueza de Souto Moura desconcerta o transcendentalismo com que os termos “criar”, “processo criativo”, “momentos de inspiração”, e outras "poéticas", são rezados – tanto por arquitectos como por críticos. Para Souto Moura a arquitectura “tem a ver com a vontade de resolver um problema”. Abrupta descida à terra, corte epistemológico, para quem espera da arquitectura e dos arquitectos – da arte e dos artistas – respostas definitivas sobre a condição disciplinar e o rumo da história. O pragmatismo, ainda que idealista, o realismo objectivo, solicita ainda os arquitectos a reflectirem sobre o óbvio: que a arquitectura, despida de todos dispositivos mediáticos tem de valer por ela mesma. É redundante apelar a uma “arquitectura sustentável” ou a um “edifício inteligente”. Ser sustentável, inteligente, e bonito, é, desde Vitrúvio, justamente, o propósito da arquitectura.

Uma certa objectividade entende-se também da entrevista de Gonçalo Byrne ao Expresso. Mereçe aqui mais atenção o que diz do que o que faz: Gonçalo Byrne reforça o vínculo da arquitectura com o real. Seja através da defesa da economia de meios e justeza das soluções, seja pela convocação da capacidade transformadora da arquitectura. Embora numa prosa mais “poética” e de acordo com termos – perniciosos - que aproximam o arquitecto mais do demiurgo do que do técnico capaz de resolver problemas de uma forma bela. Interessam-lhe a paisagem, e a interacção da arquitectura sobre o território – conceito amplo de realidades culturais, sociais, económicas, naturais - e a arquitectura como experiência existencial de contextualização – situação – do homem no mundo. Assume o risco e assume que, por vezes, a acção da arquitectura e transformação consequente do mundo, pode passar pela violência e pela ruptura. O compromisso da arquitectura com o mundo é também confronto, quer com a realidade, quer de realidades diversas.
Só depois deste confronto poderá aspirar a arquitectura transformar o ser. E essa experiência é já estética.

| João Amaro Correia | 11.11.07 |   | /

estrada nacional#5


Uma casa é um sinal de cultura, a projecção do homem no meio e ponto de referência na paisagem. Qualquer obra de arquitectura ou cidade são no espaço. São acontecimentos que têm lugar no espaço, que estabelecem relações com o lugar onde se situam. E o lugar é a síntese dessa incidência humana sobre a natureza e a própria natureza, com a qual o homem trava uma luta para a poder habitar.
À imagem arquitectónica importa ir além da mera representação técnica. As imagens, como fim-em-si, como fantasmas, contradizem os propósitos da arquitectura e da sua materialização. São espectros que ensombram o imaginário dos arquitectos, sem qualquer propósito que não o da mera especulação – ainda que necessária. Genuinamente a muitas delas subjaz intencionalidade reflexiva, mas da hiper-reprodução electrónica das imagens resultam quase sempre simulacros ou fortuitos e frívolos gestos egotistas dificilmente mais que vazios. Sobra algum optimismo, resultante do acesso à arquitectura
gerado pela dinâmica comunicacional, de um público mais alargado e menos ilustrado no discurso disciplinar.
Seguindo a pista de Foucault, a história é, também, uma forma de controlo e domesticação do passado. Os edifícios – e as cidades – são susceptíveis do mesmo revisionismo interpretativo e de uma contínua reinvenção e reinterpretação. Construímos o que vemos e experimentamos e construir é materializar o nosso entendimento do mundo. Ou a tentativa de lhe encontrar uma ordem e dar sentido.
A voz comum do tempo e do ser, que se re-constitui em símbolos inaugurais, aquém da racionalidade, numa representação para além do seu significado imediato, determina uma sintaxe que se expressa inconscientemente. O Partenon, as Ordens Clássicas, a necessidade de estruturar coerentemente os elementos, respondem ao desejo de conformidade com o mundo – harmonia, proporção, ritmo, unidade -, justificam o nosso desejo de que essa coerência seja bonita. E implicam que o significado experimentado seja “traduzido” para um outro suporte, a materialidade da arquitectura.
O pastiche irrisório, a colagem vernacular tosca, a citação incongruente, a repetição irreflectida, negligenciam o mister arquitectónico. Ao invés de se libertar o significado imediato da coisa, tornando-a num objecto cultural passível de novas leituras significantes, aprisiona-se, pobre, deslocada, descontextualizada, e pantomina. Comédia, ainda assim, vital.

[Vilar dos Prazeres, Ourém]

| João Amaro Correia | 10.11.07 |   |

aldeia global


[Estrada Nacional 113, Escandarão, Ourém]

| João Amaro Correia | 9.11.07 |   |

estrada nacional#4


O compromisso da arquitectura com o real torna-se operativo como “arte do possível”. Nem só do labor no erro, que é a cópia infinitamente [mal] reproduzida, vive o construir português contemporâneo.
A pragmática da construção é matéria prima do trabalho do arquitecto. E tanto mais os constrangimentos se dispuserem no estirador, menos branco permanece o papel, ainda que não se alivie a angústia. O processo torna-se mais complexo, mais denso, porventura mais moroso, mas mais consciente e consistente.

Dois volumes, repousam sobre a colina, contradizem o congestionamento da Estrada Nacional 1 para onde se voltam. Sóbrios, convincentes e seguros, afirmam-se pela abstracção rigorosa com que se erguem e com que são rasgados. Pragmáticos, filtram a luz de poente que incide num duplo pé-direito com painéis ripados de madeira, que se repetem nas portadas exteriores dos necessários vãos – apenas e só os indispensáveis. Alheio aos vizinhos, aspirantes a modernos, pós-modernos, pós-rurais, assenta num embasamento de betão cru, nu.

A quem tenha conhecimento, solicita-se que revele a autoria do projecto.

[Quinta do Seixo, Leiria]

| João Amaro Correia | 8.11.07 |   |

estrada nacional#3


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Depois do advento, da prosperidade e do apogeu do neo-rural que pontuou a paisagem construtiva arquitectónica corrente, com zénite na segunda parte dos anos 90, o novo-riquismo arrivista vai adaptando o seu cânone arquitectónico a linguagens mais consentâneas com uma qualquer ideia de sofisticação e de modernidade. Privados e anónimos, que desejam aceder a imagens e a vivências contemporâneas e que querem uma casa de acordo com essa aspiração de status. Promotores, que já aí encontraram um nicho de mercado, filão por explorar e, em tempos de abrandamento da actividade imobiliária, modo de se destacarem das linguagens mais “tradicionais”. Arquitectos, que começam a ver no terreno o resultado do aumento exponencial de profissionais, que tentam assegurar a abertura a novas gramáticas arquitectónicas, apadrinhadas pelo mercado e mais de acordo com a “erudição” em que foram formados.
Não importa para aqui fazer uma sociologia desta apetência por uma “nova arquitectura”, importa, de facto, é o desejo de novas formas do habitar. E o sentimento de que a arquitectura lentamente adquire uma importância que antes não se sentia na paisagem. Mas corre-se o risco de substituir um arquétipo, rústico, na sua génese e forma e imagem, por um outro, pseudo-sofisticado, na sua forma e imagem, e ainda rústico, no seu habitar. É decisivo aqui o elemento crítico da arquitectura. E se a pobreza cultural que o neo-rústico encerra é por si só evidente, as aparências de modernidade que se disseminam pelo território obrigam-nos a uma leitura mais atenta. Leitura, diria, dos mesmos sinais de atraso cultural, embora dissimulado em modernidade.

A reprodução do cânone neo-moderno, sem a necessária reflexão estética e ética, multiplica-se pela paisagem. O excesso de consumo de modelos próximos – as casas de Souto Moura, as massificação das palas Siza Vieira, a arquitectura “chã” e “silenciosa” que um paralelepípedo pintado a branco supostamente propicia, caixilharias mínimas, vãos máximos – num afã a-crítico, origina equívocos tanto de natureza ética como construtiva e estética. O erro é claro a partir daqui: fundem-se e confundem-se imagens sem a densidade, por exemplo, das arquitecturas acima mencionadas; manipula-se o saber construtivo, como se estivesse ao alcance de qualquer um utilizar o tipo de acabamentos que Souto Moura utiliza, e que são, até certo ponto, centrais no seu pensamento; “inventam-se” pastiches sem qualquer significado, espessura e densidade cultural e arquitectónica que não apenas a tradução exacta em tectónica desse mesmo provincianismo cultural. Porque tudo aqui soa a falso e postiço como no neo-rural anacrónico: a suposta instabilidade dos tempos é um mero jogo de intersecções de formas “puras”, o contextualismo e pretenso regionalismo é a forra de viroc “a imitar madeira” e o revestimento em pedra a imitar pedra. Mero jogo de aparências sem qualquer conteúdo, sem a produção de qualquer sentido, despido de intencionalidade crítica. Nem sequer a um passeio pela história e por imagens da arquitectura somos conduzidos. Apenas à evidência da preguiça, insegurança, desamor com muitos de nós, arquitectos, afirmamos a profissão.
A nova obsessão é ser-se moderno – modernaço -, sofisticado. Numa caixa branca, com Deus ausente dos detalhes.


[Estrada Nacional 113, Cardosos, Leiria]

| João Amaro Correia | 7.11.07 |   |

estrada nacional#3


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Depois do advento, da prosperidade e do apogeu do neo-rural que pontuou a paisagem construtiva arquitectónica corrente, com zénite na segunda parte dos anos 90, o novo-riquismo arrivista vai adaptando o seu cânone arquitectónico a linguagens mais consentâneas com uma qualquer ideia de sofisticação e de modernidade. Privados e anónimos, que desejam aceder a imagens e a vivências contemporâneas e que querem uma casa de acordo com essa aspiração de status. Promotores, que já aí encontraram um nicho de mercado, filão por explorar e, em tempos de abrandamento da actividade imobiliária, modo de se destacarem das linguagens mais “tradicionais”. Arquitectos, que começam a ver no terreno o resultado do aumento exponencial de profissionais, que tentam assegurar a abertura a novas gramáticas arquitectónicas, apadrinhadas pelo mercado e mais de acordo com a “erudição” em que foram formados.
Não importa para aqui fazer uma sociologia desta apetência por uma “nova arquitectura”, importa, de facto, é o desejo de novas formas do habitar. E o sentimento de que a arquitectura lentamente adquire uma importância que antes não se sentia na paisagem. Mas corre-se o risco de substituir um arquétipo, rústico, na sua génese e forma e imagem, por um outro, pseudo-sofisticado, na sua forma e imagem, e ainda rústico, no seu habitar. É decisivo aqui o elemento crítico da arquitectura. E se a pobreza cultural que o neo-rústico encerra é por si só evidente, as aparências de modernidade que se disseminam pelo território obrigam-nos a uma leitura mais atenta. Leitura, diria, dos mesmos sinais de atraso cultural, embora dissimulado em modernidade.

A reprodução do cânone neo-moderno, sem a necessária reflexão estética e ética, multiplica-se pela paisagem. O excesso de consumo de modelos próximos – as casas de Souto Moura, as massificação das palas Siza Vieira, a arquitectura “chã” e “silenciosa” que um paralelepípedo pintado a branco supostamente propicia, caixilharias mínimas, vãos máximos – num afã a-crítico, origina equívocos tanto de natureza ética como construtiva e estética. O erro é claro a partir daqui: fundem-se e confundem-se imagens sem a densidade, por exemplo, das arquitecturas acima mencionadas; manipula-se o saber construtivo, como se estivesse ao alcance de qualquer um utilizar o tipo de acabamentos que Souto Moura utiliza, e que são, até certo ponto, centrais no seu pensamento; “inventam-se” pastiches sem qualquer significado, espessura e densidade cultural e arquitectónica que não apenas a tradução exacta em tectónica desse mesmo provincianismo cultural. Porque tudo aqui soa a falso e postiço como no neo-rural anacrónico: a suposta instabilidade dos tempos é um mero jogo de intersecções de formas “puras”, o contextualismo e pretenso regionalismo é a forra de viroc “a imitar madeira” e o revestimento em pedra a imitar pedra. Mero jogo de aparências sem qualquer conteúdo, sem a produção de qualquer sentido, despido de intencionalidade crítica. Nem sequer a um passeio pela história e por imagens da arquitectura somos conduzidos. Apenas à evidência da preguiça, insegurança, desamor com muitos de nós, arquitectos, afirmamos a profissão.
A nova obsessão é ser-se moderno – modernaço -, sofisticado. Numa caixa branca, com Deus ausente dos detalhes.


[Estrada Nacional 113, Cardosos, Leiria]

| João Amaro Correia | |   |

When he says he hates "celebrity" culture, he almost means it

Here is an architect who could happily sit down one day with God to design refined and purposeful public buildings knitted into the fabric of old cities, and the next with the devil to design the wayward architecture demanded by ultra-capitalism.

Jonathan Glancey, The Guardian, sobre Rem Koolhaas

| João Amaro Correia | 5.11.07 |   | /

the park


O texto, provocativo, de Lebbeus Woods, que o Daniel Carrapa trouxe à liça, pode-se resumir num tópico central: a capacidade e a vontade da arquitectura na representação social e do poder e as suas implicações políticas.
O subtexto não é novo. Terá 100 anos, antigo do tempo dos manifestos do Modernismo heróico. Mas o tom é cínico, em harmonia com os nossos dias, portanto.
Acusa-se a arquitectura e os arquitectos de estarem ao serviço do capitalismo global, na concretização ansiosa do manifesto fin-de-siècle de Fukuyama. O pecado venal a partir do qual se ergue a produção arquitectónica contemporânea. O maniqueísmo é latente, como assinalou Sérgio Machado em comentário ao texto: “Woods denuncia o efeito Bilbao, e critica os arquitetos que estariam produzindo arquitetura num ambiente “menos intelectual””. Há os bons arquitectos, os que se sentem mais inspirados por Gary Cooper, indómitos demiurgos de uma nova arquitectura – de um novo homem, de uma nova sociedade -e os outros, frívolos amantes de Marilyn Monroe, promíscuos com as sinistras forças do mercado.

Esta visão encerra em si o que de mais leviano se encontra no discurso dos arquitectos: o sentirem-se ungidos por uma força divina e impelidos proclamarem um novo e maravilhoso mundo. Ainda que o não tenha exprimido abertamente, encontra-se no discurso de Lebbeus, esse impulso utópico a que historicamente a arquitectura recorre. Claro que afirmá-lo no luto das metanarrativas é penoso e já não liberta nem abre caminhos. Torna a arquitectura refém da sua própria história.
Envidentemente que este discurso é eivado de ideologia, como afirmou o Sérgio Machado e reafirmou o Daniel Carrapa. Qualquer proposição sobre um objecto que é iminentemente um objecto cultural escapará sempre à neutralidade ideológica. E isso não diminuirá a importância do que se diz. É perniciosa é a forma como o faz Lebbeus, onde se insinuam, apenas, as imoralidades do capitalismo global – às quais não contrapõe alternativas, porque, muito justamente, as metanarrativas faleceram há 20 anos. Depois dos eufóricos e optimistas anos 90, abrimos o século com o barril de petróleo a 100 dólares, a incerteza das economias, e o futuro ensombrado pelo declínio social e cultural das sociedades ocidentais, e dificilmente alguém se permitirá a um discurso que não retrospectivo, nostálgico e, como no caso de Lebbeus, ligeiramente ressentido.

A ilustração da decadência Ocidental é pretensamente provada pelo Bilbao Effect. Perversa obra, gratuita, mero jogo de formas que elidiu os últimos suspiros da crítica mais “séria” - Bilbao Effect é mais uma consequência teorética e menos a obra em si. Não é o edifício que importa – corrente programa museológico, sem aparente novidade tecnológica para além da curva de titânio – e não inspirou a novas realizações arquitectónicas, apenas a um efémero fenómeno sem quaisquer consequências na produção arquitectónica, teórica e prática. É este epifenómeno que é tomado como paradigma da contemporaneidade.

A cultura da celebridade, o excesso do efémero na esfera mediática, a banalização cultural, a inconsistência teórica e histórica, constituem o “ambiente árido” no qual os arquitectos tentam a reprodução do sucesso “comercial” de Frank Gehry em Bilbau. Essa busca vertiginosa da celebridade mediática é fomentada pela avidez dos grandes promotores na sua própria representação. Quer sejam os estados, quer sejam as grandes corporações multinacionais. É, portanto, um jogo em que os arquitectos se tornam subservientes dos dispositivos do poder, impelidos pelo caldo cultural actual.
Nesta lógica, o convite de Lebbeus a um regresso à teoria, ao “mundo das ideias” e não apenas o das “oportunidades”, é um apelo à resistência. É voltar a dizer aquilo que deverá ser tarefa importante do arquitecto: um esforço crítico, que não apenas procure um sentido, mas que seja, sobretudo, a produção do próprio sentido do(s) mundo(s). Um labor que esteja para além do brilho dos pixeis e das revistas de uma i-realidade glamourosa e quase transcendental.

É na linha ténue, sobre o limite, que o arquitecto poderá intervir. O olhar crítico poderá ser tentado de muitas formas e metodologias, das mais performativas e pirotécnicas, que não comprenderei, às mais quotidianas, em direcção ao apelo de Koolhaas, que o Daniel Carrapa transcreve, de um repensar do S e não apenas na avidez pelo XL.
Mas é necessário não ser moralista como Lebbeus. O esforço da arquitectura será tanto mais válido quanto mais com-o-mundo ele for realizado. Não basta denegrir a cor do dinheiro e bradar por novos mundos irrealizáveis. Porque isso é desprezar a humanidade.

[
Kohei Yoshiyuki, The Park, 1971]

| João Amaro Correia | |   |

a casa portuguesa


Consequência evidente da massificação – democratização? – das cidades, das pressões desregradas das forças do mercado e de uma política de solos desastrosa é a terraplanagem estética e cultural e a estandardização construtiva. Para ilustrar a política urbanística catastrófica e anti-liberal, basta referir o imenso esforço – preguiça – burocrático dos enredos kafkianos da legislação urbanística e o desperdício de energia, tempo, dinheiro e paciência a que as entidades políticas, nomeadamente as Câmaras Municipais, submetem um anónimo requerente.
Nesta teia complexa sobrevivem as grandes imobiliárias, promotoras e construtoras, que pretendendo actuar com a máxima eficácia e rentabilidade “atacam” o território pelos enormes condomínios de arquitectura massificada, minimal, na pobreza do discurso cultural e arquitectónico, repetitiva, nos esforço produtivo de uma economia de escala. Condomínios, resorts, loteamentos, urbanizaçõas, vizinhança indiferenciada e ausência de reflexão sobre o território numa escala que vai da porta de entrada à cidade que se pretende construir.
A compartimentação social por classes é evidente, e a mobilidade social toma sentido inverso às naturais expectativas individuais, graças aos especulativos preços/m2: a classe alta continua a viver como classe alta, em moradias de “autor” ou com banheira de hidromassagem;, a classe média vive como classe média-baixa, em blocos indiferenciados e anónimos; a classe baixa é excluída deste mercado.
Isto também se reflecte no mercado e na procura da arquitectura. Poucos ambicionam – porque de facto não têm como sair do mundo dos desejos – uma casa. A procura do arquitecto para ajudar ao cumprimento desse desejo diminui e o próprio arquitecto já não encara o projecto como expressão dos desejos e expectativas individuais do cliente - quanto mais não seja porque este não quer uma casa igual à do vizinho.
Construir o próprio abrigo é um processo kafkiano só ao alcance de empresas com peso para contrariar as dificuldades e adversidades burocráticas: licenças que demoram anos a emitir, leis absurdas, espartilhos à individualidade que se deseja exprimir em lote próprio adquirido com esforços de anos, discricionariedades políticas sustentadas em anacrónicas perspectivas legais.
Deste panorama resultam bastas vezes disputas, insanáveis pela perniciosa lentidão da justiça, em que se confrontam, numa batalha desigual, as esperanças dos consumidores, o poder desregulado do promotor e a insensibilidade das instâncias políticas. Construir uma moradia pode tornar-se um pesadelo: a máquina burocrática não está montada para servir o cidadão. Tudo requer um projecto especial, tudo pode ser comprado mediante o suborno certo e o subornado no lugar chave do aparelho burocrático.
Tudo flui silenciosamente. Não é favorável a ninguém questionar e interromper a reprodução quotidiana destes procedimentos. Ao pequeno requerente, porque deixa de uma vez por todas de poder aspirar a algo melhor que o T2 na periferia da cidade, ao arquitecto e aos técnicos, porque deixam de ter mercado – a importância da mobilidade de um arquitecto "dentro" de uma câmara tornou-se vital na contratação dos seus serviços – a muitos técnicos camarários, porque ficariam sem uma fonte de rendimento extra, aos grandes promotores, porque, numa situação de mercado aberto mas regulado e ágil, veriam reduzido o target-market, às câmaras, porque perderiam receitas consideráveis.

| João Amaro Correia | 3.11.07 |   |