a arquitectura da imagem

As conclusões sobre a contaminação generalizada pela estética podem ser reavaliadas neste princípio de século a partir da saturação da imagem na nossa sociedade mediática – tudo é transportado para o âmbito da estética. Este processo pode também concorrer para a dissolução do político, com a sua redução ao nível da imagem. A consequência primeira da “estetização” da cultura é a “fotocópia”. Este processo que alargamos à cultura arquitectónica, a partir da apresentação simultânea de miríades de imagens arquitectónicas, origina a repetição dos modelos estitizados mas desprovidos de significado: a “história são imagens simultâneas” . As consequências inevitáveis disto, da redução de profundidade induzida por este processo de estetização, são, num exemplo sinistro, a equivalência do acontecimento guerra com um jogo de futebol... pura imagem. No exemplo de Beaudrillard, a guerra do golfo foi como que uma simulação dos acontecimentos que através dos media aspira a ser uma guerra virtual. O horror da guerra consome-se como se fora um filme de Hollywood e as notícias da frente como uma telenovela em luta pelos índices de audiência – neste sentido, tudo é entretenimento. Que lições poderemos extrair daqui para o campo arquitectónico no qual a imagem joga um papel fundamental? Que relações se estabelecem com a prática arquitectónica?
Num quadro cultural em que a “estetização” operada através da proliferação das imagens, podem-se observar consequências imediatas numa disciplina que trabalha directamente com estas. O vínculo que os arquitectos estabelecem com a imagem é uma consequência do ofício da arquitectura. Plantas, cortes, alçados, perspectivas, são a representação visual do mundo para os arquitectos. O mundo dos arquitectos é o mundo da imagem.
Este privilégio atribuído à imagem tem como consequência um empobrecimento da compreensão do ambiente construído convertendo-o num espaço abstracto. O espaço, quadro de experiência vital, reduz-se a um sistema codificado de significação e com a ênfase na percepção visual produz-se simetricamente uma redução de outras formas de percepção sensitiva. “A imagem mata”. Afirma Lefebvre em La Production de l’Espace. A imagem não dá conta da experiência vital. Com o desenvolvimento das técnicas de representação do espaço esta condição é enfatizada. Numa cultura profissional de paralelas e perpendiculares, de esquadrias e esquissos, de computadores e simulações tridimensionais, englobada em estruturas ideológicas e hierarquias de escalas que assumem os valores do capitalismo, é total a cisão entre a espacialidade, concreta e vivida, e a representação do espaço, abstracta e especulativa. Como consequência da prática profissional dentro dos ateliers os arquitectos estão cada vez mais longe do mundo real, da experiência real. A primazia da imagem na cultura arquitectónica descontextualiza essa imagem e remete a uma lógica do discurso arquitectónico despojado do seu significado original.
A redução de significado num mundo estetizado pode inserir-se dentro de uma tradição do pensamento ocidental. As suas origens podem remontar ao Idealismo, em que alguns filósofos pretendiam a autonomia da obra de arte, abstraindo-a dos seus contextos políticos e sociais. A “arte pela arte”. a “verdade” como função do intelecto e a “realidade” como mera aparência. A estetização pode, portanto, conduzir a uma simples redução do significado ontológico, bem como, no terreno político, pode levar a consequências mais perversas.

| João Amaro Correia | 16.2.04 |   |

um segundo dilúvio: a imagem

A nossa condição actual define-se pelo excesso comunicacional. Na sociedade avançada e mediática, dos media cada vez mais rápidos e dos modos de reprodução de informação, estamos mergulhados em imagens. Televisões, faxes, computadores, convertem-se em “janelas virtuais” da era das “auto-estradas” da informação. É uma cultura da cópia na sociedade da saturação.(1) O mundo é copiado até ao infinito.
A aceitação do que se convencionou como “sociedade da informação” facilita um alto grau de comunicação. Mas este dilúvio informacional pode ter consequências contrárias àquilo que supostamente o conceito se refere. “Vivemos num mundo onde existe cada vez mais informação e cada vez menos significado”(2), diz Baudrillard. É precisamente esta clonagem infinita da imagem, a proliferação infinita de signos, que torna o signo invisível. O signo já não possui significado algum. O significado perde-se na voragem de bits e cabos dispersos por todo o planeta por onde circula a informação em “tempo real”. Assim, em vez da informação produzir significados ocorre justamente o oposto. Este paradoxo pode ser atribuído ao esgotamento que ocorre no próprio processo comunicacional, em que o significado se dilui no seu próprio desenvolvimento. Por outro lado a pressão informacional a que os indivíduos estão sujeitos dilui o social numa nuvem imóvel.(3)
As consequências culturais são imediatas e resultam naquilo a que Jean Baudrillard chamou de simulacro. Onde a imagem se converte numa nova realidade, num mundo virtual que vagueia sobre o mundo real. Este mundo virtual caracteriza-se pela perda de referentes para com o mundo real. Num mundo onde o imaginário passa a ser “real” não há mais lugar para o próprio real. A realidade é sequestrada. A Disneylandia apresenta-se como lugar óbvio deste encobrimento da realidade.(4) Um mundo que se apresenta como a si mesmo como imaginário e que contrasta com o mundo exterior. Toda a cultura ocidental está a ser consumida por este síndroma que abole o vínculo do real com a experiência autêntica.
Tudo o que existe é imagem. Toda a realidade esbarra para o terreno estético e é valorizada pela sua aparência. O mundo esteticiza-se. Tudo se transforma em arte. Esta condição de excesso onde tudo passa a ser político e estético perde qualquer especificidade. A noção de arte desfaz-se quando tudo é estético. A própria palavra estética perde o seu significado. Nesta cultura onde a imagem se converte em nova realidade a categoria estética que disciplina a imagem estende-se a todos os domínios: a política que se converte em espectáculo, o sexo que se converte em pornografia e a tudo se chama cultura.(5) Tudo se “culturiza”, do mais marginal ao mais obsceno, tudo se converte em peça de museu.
O excesso de imagem, de comunicação e informação, tem como consequência o contrário: uma redução tanto da comunicação como da informação. A realidade exacerbada pelo consumo imediato dos conteúdos num processo de “estetização” geral. O mundo é percebido segundo a óptica da proliferação de imagens estéticas desprovidas de conteúdo.



1. Leach, Neil, La an-estética de la arquitectura, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2001, p.15
2. Baudrillard, Jean, Cultura y Simulacro, Kairós, Barcelona, 1978
3. ibidem
Leach, Neil, La an-estética de la arquitectura, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2001, p.18
4. “…Disneylandia, o arquetípico centro dos sonhos da sociedade de consumo.”
5. Baudrillard, Jean, Transpolitics, Transexuality, Transaesthetics, in Jean Beaudrillard: The Disappearance of Art and Politics, Macmillan, Londres, 1992, p.10

| João Amaro Correia | 11.2.04 |   |

a pedra é mais pedra que dantes

Já não compreendemos em geral a arquitectura; pelo menos, seguramente não da maneira como compreendemos a música. Ao crescer, saímos da simbólica das linhas e figuras, tal como estamos desacostumados dos efeitos sonoros da retórica e já não bebemos essa espécie de leite materno da cultura desde o primeiro instante da nossa vida. Num edifício grego ou cristão, primitivamente, tudo significava algo, e, na verdade, em relação a uma ordem superior das coisas: essa atmosfera de uma inesgotável significação envolvia o edifício, à maneira de um véu mágico. A beleza só secundariamente entrava no sistema, sem afectar o sentimento fundamental do numinoso-sublime, do consagrado pela proximidade dos deuses e pela magia; a beleza, quando muito, mitigava o temor — mas esse temor era, em toda a parte, a condição prévia. Que é para nós, agora, a beleza de um edifício? O mesmo que o belo rosto duma mulher sem espírito: qualquer coisa parecida com uma máscara.

F. Nietzsche, Humano, demasiado humano

| João Amaro Correia | 7.2.04 |   |

Genius Loci

No dia nove à tarde depois de dar por encerrada a primeira parte do meu diário, quis ainda desenhar a estalagem e a estação da mala-posta do Brenner, mas não consegui captar o carácter do lugar e fui para casa mal disposto."

J.W.Goethe, Viagem a Itália

| João Amaro Correia | 6.2.04 |   |

o labirinto natural

Como forma de organização labiríntica do espaço poderemos dar exemplo do jardim, pois ao mesmo tempo que concretiza uma ocupação mais ou menos elaborada do espaço é também arquétipo da natureza. O jardim como espaço, apropriado ou colectivo, possui uma intenção estética essencial, uma intenção de prazer, de sensações, apesar de todo o utilitarismo que lhe possa estar subjacente. Projecta-se sobre a natureza e domina a paisagem. O jardim clássico francês que procura a ordem clara ou o jardim inglês, o labirinto, são produtos de um talento de manipular o imprevisível e medimos o seu valor pela imprevisibilidade que provocam na consciência estética do caminhante. A dimensão ordem e desordem é ainda uma dimensão subjectiva do ser com o jardim, que é a expressão de uma ordem que foi ocultada. A matemática diz-nos que ordem e desordem não são uma dicotomia mas pólos de uma escala contínua, escala essa que nos dá os graus de desordem do espaço ou da sequência de um percurso, relacionando esse percurso com os elementos de conhecimento de cada indivíduo. O segundo carácter essencial da tipologia dos jardins e que importa para análise deste como espaço labiríntico é o papel dado à natureza como determinante do espaço que o homem percorre ou à artificialidade humana expondo os elementos naturais a partir de um plano concebido. O universo labiríntico do jardim apresenta-no-lo como um jogo proposto deliberadamente ao ser como enigma espacial a resolver, pretexto que explore a natureza.
Todo o labirinto é um conjunto de corredores e cruzamentos ligados de modo complexo que contraria a mobilidade do indivíduo. O conceito de corredor, rua, exprime na sua essência a contrariedade na mobilidade do ponto móvel que o percorre em todas as direcções do espaço. Por exemplo, numa rua, a mobilidade longitudinal é maior que a mobilidade lateral. Uma direcção é a cada instante favorecida e considerada como livre enquanto as outras são reduzidas ou anuladas. É esta a essência do labirinto. É esta complexidade que é a situação do ser em errância: com um conhecimento limitado de uma envolvente visual limitada, que é conduzido a repousar sobre a memória para encontrar o lugar onde se encontra e de cognitivamente o organizar, guardar no seu espírito os seus esforços anteriores até ao momento em que decide o próximo passo, estabelecer uma correlação entre o seu passado e o seu devir, entender espacilamente.
Os labirintos poderão ser categorizados pela sua qualidade estética: labirintos intrínsecos, estruturas topológicas que não têm nenhuma qualidade perceptiva a não ser a função de obstáculo (a parede uniforme desprovida de sensações e tudo o que pode fazer é prolongar-se até ao próximo nó da estrutura); labirintos extrínsecos ou estéticos, nos quais os muros e as paredes apesar de possuírem as qualidade que lhes são intrínsecas são ao mesmo tempo fontes de riqueza sensorial, de prazer ou “desprazer” que nada têm que ver com a motivação cinética da estrutura labiríntica: ir mais longe para poder alcançar qualquer lado.
O conceito de labirinto é uma espécie de arquétipo do espaço, modelo recorrente que se aplica todas as vezes que a mobilidade é contrariada de um modo suficientemente complexo que escapa ao entendimento imediato do sujeito da mobilidade. Há desde logo um domínio cognitivo que o indivíduo exerce sobre o seu ambiente imediato. Em que medida ele o domina pelo campo de visão ou, ao contrário, é o indivíduo submetido e dominado?

| João Amaro Correia | 4.2.04 |   |