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o espaço fractal da morte


[Mãe e Filho, Aleksandr Sokurov, 1997]



Mãe e filho desfiam a memória no conhecimento mútuo da proximidade da morte. O lugar é o da memória, vagarosa e demorada, desencadeada pelo conhecimento do que se aproxima, pela paisagem sonora e visual fragmentada, pelas manifestação onírica do sonho partilhado e continuado que povoa a noite anterior. Somos convocados à memoria de nós próprios e à memória colectiva. Como um sistema de fractais, irrompe o inconsciente colectivo: os sons da infância que se confundem terrivelmente com os da morte; a coincidência, na casa, da alegria e da dor; passos; pássaros; vento, árvores; o assobio do combóio raro e distante; o assombro da morte; o peso da imperfeição do coração; Deus que perfura a consciência e abandona a alma.
O filho contém a sua vida ao carregar a mãe à morte. Uma Pietà inversa que se detém cativa da consciência da mortalidade. Fragmentos da tristeza irreparável, do amor que se eleva, da contemplação e compreensão do outro próximo, indícios de geometria fractal que compõe a precariedade das coisas e a conexão misteriosa entre nós e as coisas do mundo.
O paraíso perdido é o arquétipo desta paisagem. O espaço é fragmentado, pulverizado, como fracturas minúsculas do todo. Metafísico, como em Munch. A estrada que se bifurca como os caminhos que decidem a vida, as nuvens e a sua sombra errante como tristezas e alegrias que passam, a floresta densa e misteriosa e a ignorância humana sobre coisas, o esplendor do mar e o vento que sacode suavemente as ervas e que constituem a beleza de um mundo, consciente e inconsciente, que nos é dado e que não compreendemos. Que nos deixa espantados pela beleza. Que nos faz permanecer exilados do conhecimento. O mistério do amor e da morte que se atravessa entre nós e o nosso entorno. Infinitamente belo, infinitamente terrível.

| João Amaro Correia | 3.10.09 |   | /

perpetuum mobile


[Mercators Projection, Icebergs Series, David Burdeny, 2007]


Mas porque estar aqui é muito, e porque tudo
o que é daqui aparentemente precisa de nós, estas coisas efémeras, que
estranhamente nos dizem respeito. A nós os mais efémeros. Cada uma
uma vez, só uma vez. Uma vez, não mais. E nós também
uma vez. E nunca mais. Mas o
ter sido uma vez, mesmo uma só vez:
o ter sido terreno, parece irrevogável.


[As Elegias de Duíno, A Nona Elegia, Ranier Maria Rilke]



A nova doutrina: o espaço hesita. Flutua ou naufraga, ergue-se ou soçobra.
Desamparado de qualquer imagem do mundo, livre de qualquer crença matricial e fundadora. Expulsos do lugar único e indivisível, o Paraíso, caímos no território que exige trabalho. Só depois das mãos, a paisagem.
Nem lugares, nem não-lugares, apenas [im]possibilidade de nos reconhecermos num lugar para a existência. O espaço que a arquitectura se encarregará de nomear, fixar, para que o ser exista.



| João Amaro Correia | 2.10.09 |   | /

av. dom joão ii#2


Labirinto, máscara, espelho: as metáforas de Nietzsche são o canto do lamento e da perda inelutável com que a modernidade o intima. A matéria que enforma o espírito e já não o fulgor impalpável – irracional – na constituição do mundo.
Gémeas, máscara e labirinto, são as imagens, simétricas também, que o filósofo empresta à arquitectura. O disfarce epidérmico e hipócrita ou a abundância labiríntica do pensamento e da construção. Devoção dionisíaca ou ódio aos insuportáveis filisteus no ataque aos refúgios inautênticos do quotidiano.
E depois há os espelhos de Veneza, as suas profundas solidões e depois as cidades, já transformadas em ‘sistemas de solidão’ por Tafuri, na profusão indiferente de sinais e pistas e rastos e traços, elididos a cada colisão fortuita.

| João Amaro Correia | 29.9.09 |   | / / / /

av. dom joão ii


Todos os dias: de método e prática o pragmatismo torna-se metafísica, verdade quase indizível.

| João Amaro Correia | |   | / / / /

do pavimento


Johnny's in the basement
Mixing up the medicine
I'm on the pavement
Thinking about the government


[Subterranean Homesick Blues, Bob Dylan, 1965]




A vida minúscula do Outono anunciado, sobre o pavimento de betão a imitar pedra.
São estas coisas concretas que constituem o nosso mundo dado, interligadas de modo complexo e por vezes contraditório. Os fenómenos compreendem outros: a floresta compreende as árvores, a cidade compreende os edifícios. Fenómenos meio de fenómenos: a paisagem; um termo concreto de meio é lugar.
Actos e ocorrências, acontecimentos e incidentes, têm lugar. É difícil imaginar algum acontecimento sem a referência ao lugar. Referimo-nos a lugar como algo mais que uma localização, situação, abstracta: queremos dizer a totalidade feita de coisas concretas que têm substância material, forma, textura, cor.


Atrás, encostado aos sacos do lixo, Allen Ginsberg, HOWLing.



pequeno milagre, para a Clara

| João Amaro Correia | 21.9.09 |   | / /

habitar: passagem


[Distant cloud formation, Axel Antas, 2006]


Acolher o desejo e liberdade humanos. Acção sobre o mundo que tem como fim último situar-nos vigorosa e amorosamente sobre a Terra.
Difícil transformação da terra inóspita à qual o Homem foi lançado por Deus após a traição primordial.

| João Amaro Correia | 19.9.09 |   | / / /

das casas


Já te contei como eu e a tua mãe descobrimos este lugar, não já?
Viemos aqui num passeio.
Nessa altura, ainda nem sequer estavas projectado.
Foi a primeira vez que cá viemos.
Não tínhamos mapa e esquecemo-nos de trazer um. Além disso, tínhamos ficado sem gasolina.
Parámos algures aqui perto e continuámos a pé.
Na verdade estávamos perdidos.
Depois começou a chover, uma chuva fria, miudinha…
Chegámos àquela curva ali, ao pé daquele pinheiro seco e nessa altura o sol apareceu.
Parou de chover!
Depois vimos a casa…
De repente, tive pena de não… quer dizer, que eu e a tua mãe não vivêssemos naquela casa por baixo dos pinheiros, tão perto do mar.
Que bela que era!
Veio-me à ideia que se vivesse ali seria feliz até na morte.

Que se passa? Não tenhas medo. A morte não existe. Não, existe o medo da morte e é um medo horrível. Por vezes até leva as pessoas a fazer coisas que não deviam fazer. Mas quão diferente seria se parássemos de ter medo da morte.

[…]
Pois, como estava a dizer, eu e a tua mãe ficámos encantados quando nos apercebemos da sua beleza.
Não nos conseguimos afastar.
A paz, a quietude.
Ficou claro que a casa tinha sido feita para nós.
Afinal, até estava à venda.
Que milagre!
Tu nasceste nessa casa.
Gostas? Gostas da nossa casa?

O homem sempre se defendeu. De outros homens, da Natureza da qual faz parte. Ele violou constantemente a Natureza. O resultado é uma civilização baseada na força, no poder, no medo e na dependência. Tudo o que o nosso chamado ‘progresso técnico’ nos deu é um tipo de conforto, uma espécie de padrão e instrumentos de violência para mantermos o nosso poder. Somos uns selvagens! Usamos o microscópio com se fosse um bastão. Não. É errado… os selvagens são mais espirituais que nós. De cada vez que fazemos uma descoberta científica, pomo-la logo ao serviço do mal. E quanto ao princípio, alguns homens sábios disseram uma vez que o pecado é desnecessário. Se assim é, então toda a nossa civilização está baseada no pecado do princípio ao fim. Conquistámos uma desarmonia terrível, um desequilíbrio, se quiseres, entre o nosso desenvolvimento material e espiritual. Há algo de errado com a nossa cultura, ou seja, com a nossa civilização.

[…]
Mas meu Deus, que cansado estou desta conversa!
Words, words, words!’
Só agora percebo o que Hamlet queria dizer.
Estava simplesmente rodeado de pessoas sem interesse.
Também eu.
Mas porque falo assim?
Se alguém parasse de falar e fizesse finalmente algo, para variar.
Ou pelo menos, tentasse.


[O Sacrifício, Andrei Tarkovsky, 1996]

| João Amaro Correia | 17.8.09 |   | / /

sul


Manuel Amado

| João Amaro Correia | 6.8.09 |   | /

Zaratustra odiava as cidades



Uma das evidências dos lugares é a arquitectura. O espaço construído no lugar, do lugar, que, no refluxo minucioso do seu trabalho telúrico, subterrâneo, co-labora com as pedras que juntamos. É pelo desejo que as mãos fazem coincidir e revelar a geografia com o que transportamos: montanhas e vales; mitologias pessoais e colectivas; experiências do passado que não recordamos; o corpo; a superfície fria da solidão necessária à mais proveitosa reunião gregária. Depois a topologia. A invenção dos nomes e tentativa de dizer o mundo. O combate à resistência do mundo que persiste em ocultar-se e em dizer-se. Talvez menos subtil e volátil que a poesia, é também este o trabalho da arquitectura.

Michel Onfray experimenta dizer os lugares através da(s) viagem(s). Do elogio da viagem. O viajante, nómada que se cumpre no desenraizamento e na afirmação dionisíaca da descoberta de si no mundo largo e vasto e diverso. É a este viajante que cabe contrariar a supressão da História que as cidades globais pretendem contar. É este o Marco Pólo exaltado que conta ao Kahn, de si para si, a beleza que encontra no mundo – e nas cidades. O viajante que celebra o avião ‘que troça do ar’ e ao fazer a volta ao mundo é com o prazer infantil se comove com distância que nos une a todos ao ‘fogo furioso incandescente’ do centro da Terra. O viajante, máquina desejante de Deleuze, ligação e interpenetração dos ‘fluxos contínuos’ que nos re-ligam aos confins do Universo.

A alternância entre partidas e chegadas possibilita uma verdadeira definição do habitar tão caro a Heidegger.

O reencontro. Ítaca excluí o viajante da errância. O Judeu Errante, o condenado ao qual não é permitido fixar-se – habitar - é o que nunca chega a casa, o que nunca acha o sentido da viagem. E do mundo. A viagem - o mundo - só se reconhece na sua plenitude no reencontro com a morada. A casa. O habitar. 'Na arte do habitar concentram-se práticas de arquivo quotidianos, é verdade, mas também se articulam hábitos, rituais sem os quais a angústia não pode ser conjurada, permanecendo e consumindo o corpo e a alma.' É necessária a demora e a ritualização dos dias. Permanecer, ser, junto ao fogo familiar e determo-nos nas leis da hospitalidade que exigem tecto sedentário. O lugar abandonado - para outros se constituírem - reencontra-se no habitar.

Eis a perturbação do viajante que é também política: contra a ponderosas razões (e i-razões), de Estado, sangue, de solo, é o que procura o mundo, dizê-lo de novo, singular, único; é quem perturba e desorganiza a disposição social estabelecida. É o que ama a liberdade, conduz o seu destino pelo Sol e contraria a paz aparente do quotidiano. O estrangeiro que nos outros lugares (do outro) se descobre a si mesmo. ‘Nós próprios, eis a grande questão da viagem.’

O mundo constituído e dito pelos lugares. Anti não-lugares.


[Teoria da Viagem – Uma Poética da Geografia, Michel Onfray]


para o António

| João Amaro Correia | 29.7.09 |   | / / /

man on the moon


Quando eu me encontrava preso
Nas celas de uma cadeia
Foi que eu vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim coberta de nuvens

Terra, Terra
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Ninguém supõe a morena
Dentro da estrela azulada
Na vertigem do cinema
Manda um abraço pra ti, pequenina
Como se eu fosse o saudoso poeta
E fosses a Paraíba

Terra, Terra
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Eu estou apaixonado
Por uma menina terra
Signo do elemento terra
Do mar se diz terra à vista
Terra para o pé, firmeza
Terra para a mão, carícia
Outros astros lhe são guia

Terra, Terra
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Eu sou um leão de fogo
Sem ti me consumiria
A mim mesmo eternamente
E de nada valeria
Acontecer de eu ser gente
E gente é outra alegria
Diferente das estrelas

Terra, Terra
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

De onde nem tempo nem espaço
Que a força mande coragem
Pra gente te dar carinho
Durante toda a viagem
Que realizas no nada
Através do qual carregas
O nome da tua carne

Terra, Terra
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

"Nas sacadas dos sobrados
Da velha São Salvador
Há lembranças de donzelas
Do tempo do imperador
Tudo, tudo na Bahia
Faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito"

Terra,Terra
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?


[Caetano Veloso, Terra, 1986]

| João Amaro Correia | 20.7.09 |   |

Devir/To Become


[Devir/To Become, Marta Alvim, Silver Award no WorldFest-Houston International Film Festival]

| João Amaro Correia | 15.5.09 |   | / /

sugestão ao Metropolitano de Lisboa para a Estação de S. Sebastião


[Metropolitano de Estocolmo]

| João Amaro Correia | 26.3.09 |   | / /

olhar o chão#3


[Reverse Processing, Cement Transplant, East River, NY, 1970, Dennis Oppenheim , 1978]

| João Amaro Correia | 20.3.09 |   | / / /

geometria das horas


[Rua da Alfândega, Lisboa]

| João Amaro Correia | 22.2.09 |   | /

marxismo


[Roberto Burle Marx, Copacabana]

| João Amaro Correia | 9.2.09 |   |

arquitectura em Helsínquia

- Queres ir a algum lado este fim-de-semana?
Paris, Roma... Para mim, tanto faz.

- Decide tu.
As cidades são todas iguais.



O que Mirja diz, “as cidades são todas iguais”, não é inocente. Habita em Helsínquia uma arquitectura igual à de Tóquio, Paris, L.A., ou Roma. Uma arquitectura de reflexos das marcas comerciais no vidro brilhante dos “volumes” de exaltação tecnológica e económica. No hiper-modernismo de Helsínquia, (Tóquio, Paris, L.A., ou Roma), a torre de aço e vidro substitui-se à torre de marfim, de onde se desce apenas por algum infortúnio acaso.
O “superfuncionalismo” capitalista estende-se a todos os domínios. O mundo trivializa-se sem qualquer sentido transcendente, abolem-se fronteiras entre interior e exterior, definem-se identidades a partir do consumo. A arquitectura mediatiza-se e é mediatizada como mais um objecto de consumo, indiferente ao contexto geográfico, topológico ou físico ou histórico.
O “modelo finlandês”, do bem-estar e do desejo democrático, (a transparência do Tribunal, da administração do poder, as ruas limpas e civilizadas, os cafés asseados e agradáveis), do brilho ostensivo da contemporaneidade envidraçada, transporta-nos para uma cenografia irreal e obscena, onde a memória colectiva, que também configura as cidades, é traficada pela uniformização da realidade.
Se a experiência primária da modernidade eram as cidades, hoje, estas perderam para o ar condicionado que torna o aço e o vidro suportáveis.


[Luzes no Crepúsculo, Aki Kaurismäki, 2006]


nas margens da arquitectura

Descer da torre é entrar nas margens. Não por acaso, na digressão de M. (assim, apenas uma inicial, sem nome e sem número e sem memória de si mesmo), os lugares mais próximos da inclusão na sociedade do bem-estar são as estações ferroviárias, lugares de trânsito apenas, (quando violentamente perde a memória; quando começa a regressar a si; quando se apaixona), como se a memória fosse o ponto de partida íntimo do que somos, indivíduos e sociedade.
M. habita uma comunidade de contentores alugados, qual real estate, explorada por um senhorio ganancioso e à margem de qualquer lei ou justiça. A cidade é um eco distante, um contra-campo remoto, para onde a perspectiva das personagens e da câmara conflui. A dicotomia é entre a cidade e baldios. Entre a cidadania e nem o próprio nome poder proferir.
Ainda que parte de uma sociedade que concretiza o ideal de justiça social e prosperidade, M. representa as margens dessa sociedade. Uma condição que não o resigna. Uma condição em que nos apercebemos definitivamente que o direito de cidadania é coincidente com o direito à cidade.

[O Homem sem Passado, Aki Kaurismäki, 2002]


Em qualquer um destes dois filmes é excluída da manipulação, quer do espectador, quer das personagens, para efeitos de alguma declaração política ou ideológica. Antes, Aki Kaurismäkim faz uso de algum humor sardónico na exposição das estórias e da sociedade finlandesa. Em vez da demagogia, o humor. Amor.

| João Amaro Correia | 11.1.09 |   | / /

lugares, cidades, identidades


isto é o bairro
excitante bairro
distante bairro
alucinante
isto é o bairro
excitante bairro
distante bairro
apaixonante

isto é o bairro
excitante bairro
está no sangue
na vida, apaixonante
movimento
gajos ficam fora 24horas do andamento
bairro
excitante bairro
corre no sangue
a vida e a morte alucinante
bairro
movimento, andamento
gajos ficam fora, mas de dentro

aqui encontra profetas, poetas
pensadores revolucionários
como o Mário Viegas,
estranha forma de vida
aqui por entre as vielas
isto é o bairro
aqui ninguém é piegas, hey
todas as noites temos barricada
estrada cortada
enquanto a Foz está bem policiada
aqui encontras tudo e não encontras nada
branca, castanha,
beat boys, goe’s e street boys,
pitbulls, rottweilers e red skins
gunas, carros kitados, grandes colunas,
fanáticos de futebol, ultras de Portugal
de cachecol
na mala um taco de basebol
vejo fora nas ruas que apanham mocas com putas
fogem da bófia e carros patrulha
vejo políticos no jogo, no roubo,
vejo o meu povo
mas nunca vi ruas pavimentadas oh

pj’s, rusgas os gangs, o sangue
rixas dos ninjas
saltam das carrinhas




Como expressão cultural o hip-hop e o rap decorre das ruas. Tem origem num contexto urbano pós-industrial, em bairros de rendimento, onde as perspectivas das gerações mais novas seriam tão largas como a extensão do ghetto. Está associada a uma cultura de resposta à repressão que muitas vezes a renovação urbana compreende, à deterioração das condições que, em determinadas zonas, acompanhou a desindustrialização. A exclusão é urbana, só depois social. Daqui ao fechamento das comunidades sobre si mesmas, resguardadas pela espessura do ressentimento e do ódio, o salto é ínfimo e evidente.
É, portanto, o hip-hop um discurso do e no espaço público, independentemente da linguagem desse discurso, que é, genericamente, crua.
Não sendo observador do fenómeno, calhou em zapping de insónia apanhar na (inenarrável) MTV-Portugal o vídeo de Ex-Peão, Bairro. O vídeo chega-nos como um documentário, uma digressão por um bairro degradado do, (presumivelmente), Porto. Já este ano em França se assistiu ao fenómeno do vídeo Stress, dos Justice, que serviu de pano de fundo a um debate em volta da violência das imagens e dos porquês dessas imagens, ou antes, o que originará essa estética crua do ressentimento.
As primeiras imagens - degradação urbana, o puto com o dedo médio apontado à câmara, como uma saudação de boas-vindas ao que aí vem – são carimbadas com códigos de barras, como que a marcar a uniformização, massificação, dos costumes e comportamentos, inevitáveis da sociedade de consumo. A própria marginalidade – no sentido cultural – é trazida ao mainstream da comercialização massificada. Seguem-se planos de um urbanismo legitimado pelo selo modernista: torres exclusivamente habitacionais, distantes umas das outras, separadas por impossíveis “zonas verdes”, ruas largas, dimensionadas para o automóvel.
O rapper inicia o seu discurso, contraponto às imagens da pobreza e exclusão. Elegíaco da ordem das ruas, apaixonado, o poema do MC, serve ao mesmo tempo de denúncia e interrogação aos fenómenos marginais – no sentido social – que fazem o quotidiano do bairro.
Antes da falência dos modelos de inclusão social, de que vamos tendo notícia diária, a falência é do urbanismo. A ghettização social decorre da compartimentação [zonning] da própria vida a que este desenho urbano conduz. A vida é, aqui, na rua, nas galerias de distribuição dos edifícios, nos percursos distantes entre cada edifício, num soçobrar da diferença entre o doméstico, privado, e a esfera pública. Ao invés de ruas tradicionais, com passeios suficientemente largos para albergar uma vida comum, as ruas ou são intersticiais ou de perfil via-rápida.
O espaço público deixa de ser suporte de um habitar seguro, mutuamente vigiado. São sórdidas fendas entre edifícios divididos como torres rivais. O espaço público é ainda o território da afirmação de discursos. Já não pelas palavras, mas pela 6.35.


[Bairro, Ex-Peão, 2008]

p.s. A transcrição do poema foi feita de ouvido. Contém imprecisões.

| João Amaro Correia | 17.12.08 |   | /

o mal-estar na civilização


C'est l'Ennui!- l'œil chargé d'un pleur involontaire,
Il rêve d'échafauds en fumant son houka.
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
- Hypocrite lecteur, - mon semblable, - mon frère!


Beaudelaire



A ideia de evasão é central na obra de Antonioni. Solidão, abandono, alienação, desviam-nos da presença das coisas e enfatizam a sua ausência. A aparência dos objectos no mundo é rodeada de incerteza. O inefável como projecto e objecto de comunicação. A geografia da aparência, em Antonioni, sucede na paisagem modernista, da sociedade industrial e do bem-estar. E o cinema de Antonioni é um cinema de paisagem, exterior e interior, num desdobramento espacial quase abstracto – confirme-se na sequência final de O Eclipse [1962].
O Deserto Vermelho [1964] aprofunda o sentido abstracto da realidade: cor, objectos, focagem e desfocagem, enganos ao olhar, profundidade de campo à dimensão da espessura do olhar do espectador, num ajustamento estético à volta do indizível do mundo; a sórdida paisagem dos detritos industriais (quase) tão sublime como os olhos melancólicos de Mónica Vitti.
Como uma metáfora do mal-estar civilizacional, O Deserto Vermelho, explora a desolação espiritual num mundo sobrexposto à tecnologia e à catástrofe ambiental, e a (in)capacidade de permanecermos imunes ao desconcerto do mundo.
Construímos paisagens sépia, manchadas pelo amarelo dos fumos tóxicos; habitamos pré-fabricados, anódinos, invadidos, em rasgos aleatórios nos muros, por objectos quase monstruosos – a casa onde habita Giuliana e o petroleiro que a atravessa.
Tudo é um pouco desolador mas nessa desolação Antonioni prossegue Adorno, na necessidade de contemplar as coisas pelos lado da sua redenção possível. Como na estória que Giuliana conta ao filho, uma ilha onde "todas as coisas cantam".

[Il Deserto Rosso, Michelangelo Antonioni, 1964]

| João Amaro Correia | 15.12.08 |   | / /

recalled to life

It was the best of times, it was the worst of times; it ws the age of wisdom, it was the age of foolishness; it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity; it was the season of Light, it was the season of Darkness; it was the spring of hope, it was the winter of despair; we had everything before us, we had nothing before us; we were all going directly to Heaven, we were all going the other way - in short, the period was so far like the present period, that some os its noisiest authorities insisted on being received, for good or for evil, in the superlative degree of comparision only.




[A Tale of Two Cities, Charles Dickens]

| João Amaro Correia | 25.11.08 |   | /

Fragmentos de cidades

A propósito de cidades perfeitas

O arquitecto Norman Foster está a planear uma cidade no deserto para cem mil habitantes, no deserto, a convite dos milionários de Abu Dhabi. Não será a primeira, nem conerteza a última cidade ideal a ser planeada. Já tivemos a Jerusalém Celeste, a Cidade de Deus de Sto Agostinho na Idade Média, as cidades utópicas do século XIX como o Falanstério de Fourier, "a cidade-jardim" de Ebenezer Howard no início do século XX, ou o projecto da Ville Contemporaine, cidade para três milhões de habitantes planeada em 1922 por Lê Corbusier. E até Brasília, que foi construída segundo a metáfora do avião, com os três poderes no cockpit. Talvez a inspiração para esta última tenha vindo do seu céu, um dos mais lindos do mundo. Mas, a cidade Masdar como se chama o projecto de Foster é a cidade politicamente perfeita. Dizem que não emitirá dióxido de carbono, que gastará pouca água, que tratará do seu próprio lixo, que um dispositivo sofisticado permitirá que uma brisa fresca a atravesse durante o dia e o ar quente do deserto por ela perpasse durante a noite. Uma cidade assim perfeita exige que os seus habitantes sejam igualmente perfeitos, e ricos. Que reciclem, que economizem energia e água, que consumam o essencial, que se desloquem sem o recurso a carros, que não alterem a tipologia perfeita das habitações. E que tipo de artes e de cultura seriam programáveis e produzidas nesta cidade? Se partirmos de princípio freudiano de que a cultura só existe como compensação do mal estar e da infelicidade, então nesta cidade tão perfeita não haveria teatro, nem cinema, nem literatura, nem artes visuais, a não ser talvez o que fosse possível projectar em grandes ecrãs panorâmicos como nas naves de ficção científica, imagens que passam sem destino certo. Há claro uma réstea de possibilidade: cidadãos tão perfeitos e tão ricos, dispondo de tecnologia tão sofisticada, mesmo assim necessitariam de alguns outros habitantes - imigrantes por certo - para os trabalhos rudimentares.
Haveria público, portanto!


Um artista de rua

Utiliza materiais muito simples, rudimentares, como o giz, o spray, tinta negra, o seu corpo, lâmpadas vulgares e, cordas e, mais recentemente, uma máquina fotográfica tecnologicamente muito simples. Como suporte, recorre às paredes e aos muros da cidade. Começou assim em Joanesburgo, mas é possível encontrá-lo em outras cidades. Chama-se Robin Rhode e é um artista de rua. Trabalha na rua, onde expõe as narrativas urbanas do hip hop e dos gangs de movimentos urbanos. Robin Rhode adora futebol e as suas performances estão carregadas de uma energia atlética. Os seus personagens nas curtas narrativas em que entram, fintam, saltam, são sinuosos nos seus movimentos, dançam pelas paredes, camuflam-se por baixo de cortinas de tinta negra. Como Muybridge, ele inventa uma arte de decomposição e de prolongamento, uma arte de prazer sem horários ou lugares fixos. É uma arte do deleite, sem compromissos, na rua.


Piscinas

Data de 1964 a primeira pintura sobre piscinas de David Hockney - Picture of a Hollyood Swimming Pool - mas é de facto em 1978 e 1979 que o pintor se dedica inteiramente a este tema, criando uma série de trabalhos sobre papel. Talvez influenciado, ou não, pela obra de Matisse La Piscine (1962), este passou a ser para Hockney um tema de eleição. E o que vemos nestas pinturas? Em primeiro lugar um trabalho sobre a cor, de decantação dos azuis conforme o movimento do sol e a reflexão da luz na superfície da água, as sombras das árvores no exterior ou do mobiliário em torno da piscina, o efeito da ondulação produzida pêlos nadadores, o splash. Vemos também corpos debruçados sobre a borda da piscina, as suas posturas de espera, a expressão de alguma fadiga dos nadadores. Mas, acima de tudo, trata-se de uma pintura solar, com corpos disponíveis, no fundo, é o que se passa em todas as piscinas, como na do filme La Piscine (1968), realizado por Jacques Deray e protagonizado por Alain Delon e Romy Schneider, ou na real piscina que Siza Vieira desenhou para Barcelona. E, muito em particular, na piscina para onde Daniel Larrieu coreografou Waterproof, que apresenta um dos duetos mais sensuais da história da dança.
Existem, claro, piscinas mais agitadas, digamos assim, as de EstherWilliams ou as piscinas dos jogos olímpicos, onde a lassidão e a extensão dos corpos só acontecem nos intervalos das filmagens ou das competições. Nestas, a piscina é o palco dos corpos atléticos, dos músculos em tensão, da pose de conquista, da animalidade oceânica. Há ainda outra variedade de ambientes de piscina, que são as piscinas festivas, que pela manhã ficam repletas de crianças e seus jogos e a piscina de férias de Verão de Ribeiro Telles na Prainha em Portimão. De todas, as minhas preferidas são, no entanto, as piscinas como as do David Hockney. As piscinas de bairro, de lazer, desportivas mas sem provas de competição, as piscinas particulares, com luz artificial ao cair da tarde e à noite, produzindo um ambiente de espaço fora do tempo, onde o silêncio é entrecortado pelo chapinar dos pés na água, pelo ruído seco dos braços a romperem a água, pelo ronronar das máquinas de alimentação e de reciclagem. As piscinas com nadadores de toucas negras e azuis, de raparigas de fatos de banho escuros por baixo dos roupões brancos que ficam pendurados nas barras de alumínio em redor; as piscinas são o lugar dos corpos em potência, disponíveis.


Hortas

Na Alemanha a ideia de criar hortas comunitárias em parcelas, de uso individual ou familiar, apareceu em 1864, quando foi fundada a primeira "Associação de Horticultores Parceleiros". O primeiro objectivo era suprir as carências alimentares das populações mais pobres da cidade, nomeadamente de desempregados das fábricas e ex-migrantes do campo para os centros urbanos. A iniciativa foi um êxito: nas fábricas, nos mosteiros, em áreas descampadas, os pobres urbanos puderam cultivar e criar animais domésticos. O êxito foi ainda maior quando no pós-guerras estas hortas alimentaram localmente muitos dos cidadãos. Hoje, estas hortas continuam a ser cultivadas, principalmente por adeptos da sustentabilidade das cidades, e constituem parte do cinturão verde de cidades alemãs. Entretanto, estas iniciativas têm-se alargado a outras latitudes.
O município de Almirante Brown abrange uma área de 13.000 hectares e reúne uma população de pouco mais de 515.000 moradores. Está localizado aproximadamente a 20 quilómetros ao sul do centro de Buenos Aires. Criaram-se ali 200 hortas familiares e 20 comunitárias, que sustentam parte da população local e ainda exportam para a capital argentina. Em Amesterdão, as cerca de 6.000 hortas estão reunidas em parques espalhados por vários pontos da cidade e de sua periferia. Da superfície total (21.907ha), os parques hortícolas ocupam 300 ha, o que é considerável numa cidade cuja densidade populacional alcança mais de 20.000 habitantes por km2 em alguns distritos. Estas hortas são multifuncionais e passaram de ser de pequenos produtores independentes, para serem das comunidades, podendo ser usadas por agregados familiares para se autosustentarem. Servem também de espaço de lazer, de encontro social e de lugar de aprendizagem escolar, nomeadamente sobre o meio ambiente.
Estas hortas urbanas, a par das práticas agrícolas de pessoas com vocação para esta actividade ou com passado rural, contribuem para a diversidade urbana, expressam modos de relação entre cultura, natureza e ambiente, estimulam o contacto entre os vizinhos criando formas continuadas de sociabilidade e alimentam famílias. São fáceis de criar, até porque permitem uma grande intervenção relativamente à forma e à plantação - hortaliças, flores, leguminosas... Qualquer manual tem um conjunto de princípios básicos e elementares a cumprir, sendo possível fazer hortas em pequenos espaços, desde que exista água (de preferência re-utilizada). Cultivar vegetais que adicionem sabor e nutrientes à dieta da família: ervas aromáticas, cebolas, tomates, pimentões e vegetais de folhas verdes escuras, como o espinafre, são ideais. Há também hortas que se podem fazer em telhados, em varandas ou em balcões, embora tenham de ser muito leves, com custos insignificantes e os métodos fiáveis e simples. Qualquer vegetal ou erva cresce numa sementeira rasa bem cuidada.


Desempregados

Uma cidade que tem desempregados é uma cidade que não merece ser cidade, nem vila, nem aldeia. É um lugar de desânimo e de debilidade política. Uma cidade deve ser um abrigo para todos os seus habitantes, deve honrá-los e para tanto deve contar com a energia criadora de todos. Uma cidade é um lugar de trabalhos, e por isso as filas de desempregados são sempre um retrato realista: é o modo de afrontar a ignorância do poder.


Chá

É longa a história do chá - nunca confundir com infusão - e, no entanto, o momento de beber um chá é o momento da delicadeza suprema, cada dia.


Quarto de hotel numa cidade árabe

Ela disse: o sexo perfeito é o sexo com riso e depois... poder dormir abraçada a noite inteira.



António Pinto Ribeiro

| João Amaro Correia | 24.11.08 |   | /