Como deves calcular, António, esta foi uma pouco inocente blague à volta da actualidade política, cultural, arquitectónica e ética, num tema que está na moda e sendo graça coube-me o gesto de te homenagear no teu “gosto” pelo Bob Venturi.
Dizes bem do Learning From Las Vegas como manual de uma certa “openness” do olhar do arquitecto sobre o mundo. É, sem qualquer dúvida, uma das mais bela lições do séc.xx – até no feio poderemos encontrar o bonito, tenhamos olhos para o poder olhar. E transformar. Transformar parece-me a palavra chave desta leitura. Transformar o banal, o feio, o pouco virtuoso, (sim, isto é também uma questão de moral), resignificando-o, em qualquer coisa de belo, único, bom. Todo um programa estético e ético, se porventura a estética não é já matéria ética. Ou de vida.
Tecnicamente até poderemos traçar o paralelo entre o dito alçado com aquelas evocações de velas, com a decorated-shed. Não é aquela estrutura espacial submetida a uma ditadura do programa e depois ornada com a dita metáfora fluvial? Por outro lado, e com um bocadinho de esforço, até poderemos encontrar aproximações da duck-shed com aquelas arquitecturas – e julgo estar a ser generoso no qualificativo daquelas atrocidades culturais como “arquitectura”. Ora, é aqui, neste preciso ponto, em que os architectural systems of space, structure, and program are submerged and distorted by an overall symbolic form, ali Zona de Protecção Especial do Estuário do Tejo, que nos detemos em perplexidade. E depois atravessamos a ponte na verificação de que symbolic form é aquela. E aqui, o pequeno ponto, é já um território vasto de perturbação. Se me é permitido, a questão que se coloca aqui é já ideológica e política. Que symbolic form é aquela e o que é que representa? O que é aquele derrame de nostalgia ruralizante e que valores apresenta e, orgulhosamente, desejará propagar? Enfim, que mundo ali se propõe?
As lições equívocas do Estado Novo a propósito de uma arquitectura popular portuguesa, unívoca e unitária, ainda moram no subconsciente do nosso “mercado” - não esqueçamos que lidamos com o mercado da indústria da construção civil e com o mercado cultural. O “gosto” ali proposto, o mundo ali ostentado, com todas as implicações ideológicas em que incorra, é um mundo fascizante. Perdoe-se-me a força desta palavra mas não se encontra outra para exprimir a carga retrógada, obscurantista, inculta, manipuladora – em sentido ideológico -, revestida num glamouroso e leviano embrulho de “modernidade” e “cosmopolitismo”. Para além do equívoco cultural e arquitectónico que ali se exibe o facto pernicioso que se deverá assinalar é o carácter reaccionário do complexo comercial.
Não é “apenas” a disneylandização do mundo, nem a espectacularização do quotidiano, como referes. Muito para além dessa Las Vegas global, tardo-capitalista, (Las Vegas será aqui um equívoco, pois a sua génese é “popular” e não corporativa), é uma construção que nos permite interpretar um momento exacto da sociedade portuguesa. Provavelmente será isso que nos assustará. Isso e a demissão da arquitectura de qualquer tentativa – tentação – crítica, mas a isso parece que já nos habituamos no nosso “viver habitualmente”, (revisto e aumentado, naquele pedaço de arquitectura).
Sabiamente as “grandes corporações globais” aproveitam estas “modas” do “gosto” local. Não se lhes exigirá uma “moral”, como parece ser moda no novo discurso anti-liberal. O que afirmo é que o ADN arquitectónico do Freeport é, na sua essência, português e contemporâneo. Desgraçadamente Salazar e António Ferro deverão estar a rir-se do outro lado.
learning from alcochete#2
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- on 25.1.09
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- corporação, politics, portugal pós-moderno
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25.1.09
muito bem
concordo contigo
(bem vindo ao "clube" camarada J. :)...)
aproveitando o teu "deslizamento" diria
"alcochete" é o fascismo embrulhado em todas as nossas estranhas "formas" de vida
e por esse ponto de vista (que muito pouco terá já a ver com o estudo do Bob e da Denise) o freeport (e muitos outros com ele...) é a "fachada" perfeita
the perfect shed!
duas (oops...) notas:
eu não acho que a fachada do parque de estacionamento com as "velas" tenha muito (nem nada) a ver com a shed dos venturis
aquilo é "expressionismo abstracto" no seu melhor... (tudo o que o venturi "combate"...)
os venturis teriam proposto uma fachada em vidro espelhado a reflectir (até ao infinito...) o estacionamento (e os sapais da ZPE...) :)))
e tu (irmão) tiago, não entras na contradança!?... :) -
25.1.09
kamarada?! calma lá, não me confundas com as gentes de esquerda. tanto mais que me é indiferente a a-moralidade das "grandes corporações", como assinalei.
e depois, não confundas liberalismo com fascismo. mas isso tu sabes. aliás, parece que o novel "pensamento único" é dizer-se que o liberalismo morreu. quando, na humilde opinião deste escribanita, o que mais falta faz ao mundo - ai portugal, portugal - é liberalismo. old fashion, you know. de cabeças e corações. mas isso é outro rosário.
quanto ao expressionismo-abstracto-fluvial do velejame que alça para o parque de estacionamento, fi-lo aproximar-se à decorated-shed em sentido lato - estamos de acordo quanto aos combates dos venturis, sobretudo no que toca ao cerceramento das liberdades quer vernaculares, quer eruditas. em todo o caso aquilo que as velas escondem é um caixote, um caixote, um caixote. (a gertrud stein tinha a rosa, nós, arquitectos muito modernaços - das mitologias modernistas - teremos a caixa, a cada um, cada qual).
[mas o mais divertido disto tudo é poder-se ter um "debate cultural" à volta de uma trafulhice administrativa que resultou num grotesco estético]
j -
25.1.09
ao reler este comentário que fiz, para além do erro de grafia, "cerceamento", encontrei-me preso num paradoxo: de facto, as velas ESCONDEM. ou querem esconder, um miserável barracão.
é esta a diferença entre esta mesquinha arquitectura de extracção socrática e as críticas dos nossos amados venturis (bob & denise parece coisa de filme pornográfico amador).
justamente, para o bob & denise, ali nada se esconde. ali apenas se "é". a caixa é caixa. sem mais dramas existenciais. e a "ornamentação" é uma rameira vaidosa que se orgulha da sua condição.
isso mesmo.
j - 25.1.09
- 25.1.09
- 25.1.09
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25.1.09
quanto mais não vale um belo painel de azulejos "flat" com "cenas" (tipo "cenas rurais" - XXX...), a decorar paredes, perdão, "muros", de estações de caminhos de ferro e mercados que estes tristes exemplares "tri-dimensionais" de pseudo "arquitecturas" "populares" todas em estilo antigo ou moderno...
no fundo é a lição dos nossos humildes e poupadinhos maneirismos "chãos" que fazem a alegia de tanto do nosso barroco dourado...
(eu só não sei é como é que o joão "torto" se vai safar com isto...) - 25.1.09
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26.1.09
Não tenho forças para seguir tudo, mas com certeza que concordo e só se me oferece acrescentar duas coisas:
1. No que toca ao Freeport, só me interessa que Sócrates não seja reeleito.
2. Acredito profundamente que a expressão arquitectónica dos centros comerciais em nada (NADA) contribui para o seu sucesso ou insucesso. -
26.1.09
vá lá lourenço, és capaz de mais.
"expressão arquitectónica dos centros comerciais em nada (NADA) contribui para o seu sucesso ou insucesso." isso será indiferente nesta discussão, se me permites. o que importa, no trabalho da arquitectura, é que o mundo, depois dela, seja um bocado mais bonito. é esse "belo" que está aqui em discussão. não me parece que o sucesso comercial seja categoria estética - velha discussão.
j - 27.1.09