Há mesas isoladas, como ilhas, e mesas juntas em arquipélago, por conveniências maleáveis que podem durar um quarto de hora ou anos. Há penínsulas de políticos, uns são caciques eternos, ancorados ao oceano público com favores domésticos e dinheiros europeus, outros não passam de aspirantes a boiar no tachinho regional.
Há botas caneleiras com pregos na sola que contam que dantes se ia tomar o café a Lisboa, um só café e voltava-se para casa, 200 para lá, 200 para cá, 400 quilómetros pelo prazer da bica na Baixa, e sem auto-estrada, isso é que era ser rico. E que ainda antes desse tempo, um homem ia a Lisboa com a mulher às compras no Natal e a viagem dava destaque no jornal da terra, “o nosso periódico deseja, em nome de todos os seus amigos e conterrâneos, boas compras pelo Natal e muita saúde ao excelentíssimo senhor doutor e elegante esposa, no regresso de Lisboa”.
Há jovens agricultores, empresários de dois jipes, dados pelos fundos perdidos da União Europeia, e que os sujam, em passeios todo-o-terreno, nas lavas latifundiárias que não chegam a semear.
Há os que chegam de directa da Boîte Dancing Colmeia, na Estrada da Burra, onde se deitam com brasileiras num tanque de silicone e whisky marado, debaixo da intensa luz negra, a lâmpada roxa que destaca as dentaduras. Um desaparece num cubículo mas regressa como um tonto, de calças em baixo, aos pulinhos, de preservativo mal colocado na pila, branquíssimo.
- Por favor, alguém sabe como é que isto se mete às escuras, eh, eh? e a brasileira atrás, humilhada e divertida, reencaminha o bêbado para o quarto e diz-lhe, quase cantando, como brilha nessa luiz negra, como é branca tua camisinha murcha, oi minino não se enerva não, tava brincado quirido, me deixa ligar tua lâmpada amorr, deixa comigo, quer beijinho molhado não quer?, pronto, eu faço, teu fantasminha careca já me vai assustar...
E outras figuras tristes que dão para rir a semana inteira, a não ser que alguém fale de sida, foda-se, prò caralho mais essa conversa!
- Que grande arraia.
O Sol nasce e saem a tropeçar para o ar do campo, chocalhando as últimas moedas no casacão de vitela, à procura da chave do carro, porque na Boîte Dancing Colmeia a música faz muito barulho para telefonar a mentir à mulher, eh pá estive até agora com o coiso a conversar, e o café não é tão bom como o do Cortiça.
Há quem um dia experimente falar de pintura, poesia e tendências contemporâneas da Arte
- A arte da seca, eh pá cala-te!
Há espectros que estampam o carro três vezes na curva do Sanatório, e preparam cuidadosamente a quarta, falta-lhes quebrar o osso da bacia e o pescoço, são esqueletos remendados que andam, duplos do seu próprio filme.
Há mulheres que se divorciam porque, subitamente, queriam ser elas próprias.
Há barões com dinheiro, dinheiro sem barões. Há nomes de nobre que vendem carros a tipos sem nome nenhum.
Há amigos verdadeiros, amigos leais como não se encontra em qualquer outro canto do mundo, e há gente que se odeia e cruza dez anos sem se falar.
- Boa tarde a todos menos a um.
Há homens que estão sentados há 40 anos a lutar pelo desenvolvimento da terra.
Há raparigas com acne, a cara em obras, que fumam 35 cigarros e estão a reduzir. Há as que mantêm diálogos por sms de uma mesa para outra, conversas de tardes inteiras, e também mms, fotografam-se para ficar melhor na fotografia do que na verdade.
Às vezes trazem a pila do namorado guardada na galeria de imagens secretas, um pénis digitalizado com carinho, vamos lá ver se não me engano e envio esta ao meu pai por engano, ih, ih, e, sempre que necessário, pedem o multibanco à mãe para recarregar o telemóvel.
Há política e futebol e mesas de homens e mesas de mulheres, separadas como nas missas antigas, mas o que mais interessa é o romance, universal em todos os cantos do mundo. O [café] Cortiça é um rumor de vozes amplificado, ondas descoordenadas de som, uma tagarelice lenta com lava ao rubro, chávenas a bater, silvo da máquina do café, o mini-berbequim das moscas furando o fumo azul do tabaco.
Rui Cardoso Martins, E Se Eu Gostasse Muito de Morrer, 2006