estrada nacional: galo de barcelos blues


O itinerário, em mosaico, da vida que resta, da que se exauriu, pela Estrada Nacional 2. O roteiro da democracia que tarda a chegar, justa, aos caminhos do interior.
Os operários da pequena e debilitada indústria ao fim da tarde no café da aldeia. Fatos-macaco manchados pelo óleo da auto-reparadora, atados à cintura, e a t-shirt encardida, patrocínio do restaurante Cova Funda, a mini, aberta com uma pancada seca na aresta já lascada da mesa café. Central na “tortuosa da rua direita”, onde, vem nas brochuras adjudicadas pela Câmara e que indicam ao fundo a igreja com o retábulo em talha dourada, as muralhas recuperadas, e depois, ainda mais ao fundo, diante do abismo, a paisagem natural, aqui e agora o paraíso time-sharing do civilizado oficial vá-para-fora-cá-dentro dirigido aos CEO Parque das Nações e às secretárias Cacém, de “fazer perder a respiração”.
São as cidades que se desmoronam nas escarpas do Douro. Os lugares da planície traficada pela miragem do milagre do progresso enfim. Nos centros comerciais de lojas de “lucro duvidoso”, na cave da lady’s night e do karaoke, emulação da província MTV. “Aqui não há muito para fazer.” O cineteatro às sextas, a filarmónica aos sábados, o rancho aos domingos, dia santo do consumo remediado pelas prateleiras do novo Jumbo que perde em favor da arrumação do antigo Intermarché. Somos pós-modernos sem que tenhamos passado pela modernidade.
Sair. Emigrar é o resgate. Sair. Largar a terra. “Rota do êxodo”. Os 50% da população que abandonaram o lugar da Picha nos últimos quarenta anos. Censos 2001. “Aqui não há emprego. O que eu queria era ir para uma cidade grande. Viseu, Coimbra, ou mesmo Lisboa, onde se ganham 1200 euros.” E os discos pe(r)didos na rádio local são o espaço público da solidão partilhada, dedicada à saudade dos que partiram.
A vida que ainda vai existindo, resistindo na nostalgia do que se perdeu e na melancolia do que poderia ter sido. Um país que vai definhando, desesperando pelo novo troço de ligação da EN2 com a Estrada da Beira, que cose o território retalhando um pouco mais a vida dos lugares – “se conhecerem alguém lá em Lisboa...”
Não é ficção, não é caricatura, a vida pelo teatro.
Mas a feira regressará outra vez no ano que vem para celebrar a Nossa Senhora dos Remédios. Chocaremos nos carrinhos enquanto, mais um pouco, se vai existindo. Num gerúndio resignado.


[EN2/PT, direcção de Ruben Tiago, com Andresa Soares, Nuno Lucas, Ruben Tiago, 29.1, 21.30h, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian]


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