Está ainda por fazer um levantamento exaustivo, e académico, do Euro2004 em Portugal. E por consequência, nas cidades.
Depois da euforia e da unanimidade demagógica em volta dos efeitos identitários do evento, inflacionados e manipulados ao sabor das conveniências conjunturais – sem contudo deixar de nos assustar o que de mais pernicioso tem a manipulação de um sentimento primário como é este patriotismo incivilizado – sobra muito que estudar e analisar sobre o que se passou, nas causas e nas consequências.
Mais que a Expo98, localizada num bairro da capital e com derivas furtuitas em alguma outras cidades, via Programa Polis, o Euro2004 afigura-se como paradigma da forma como nos vemos e como nos representamos. O tema é iminentemente político, porque as decisões foram, em primeira instância, políticas. Mas a amplitude do acontecimento extravasa o campo político e é matéria de interesse para outros domínios. Da sociologia à antropologia, da economia ao urbanismo, 2004 afigura-se como um genuíno case study bem no meio da nossa realidade. Ou como diria o outro senhor, do nosso viver habitualmente. Porque, exactamente, o alcance de um torneio de futebol que envolveu 16 equipas extravasou – extravasa – as quatro linhas do relvado. E este é logo o primeiro problema. O futebol hoje, como manifestação de massas, solicita uma interpretação do simbólico, a qual não poderei, naturalmente, empreender. Mas se é nos pequenos gestos do quotidiano que nos revelamos, é nos picos, de excitação ou depressão, que nos transformamos. Ou se cristalizam tendências. E ainda hoje, passados três anos, as tendências verificadas pelo Euro2004 se mantêm e reproduzem.
As marcas que restam nos tecidos urbanos das cidades que acolheram o Euro2004 são território próspero e natural para verificarmos a importância do que se passou - passa. Se no urbanismo do Estado Novo eram simbólicas as praças principais das cidades – Praça dos Três Poderes – como representação de uma ordem que se pretendia mansa e imutável, hoje o futebol, via estádios, e com todas as implicações culturais decorrentes, assume primazia na nossa auto-representação e preenche o vazio deixado pelas descredibilizadas instituições da ordem política. O Estádio é a concretização simbólica da descrença na coisa pública e paradoxalmente o corolário das nebulosas prioridades políticas.
Ilustrando o que afirmo, Leiria, cidade de pequena dimensão, teve a audácia de desejar um estádio novo. Com óbvio prejuízo para as contas públicas, foi uma decisão política, claramente extemporânea, numa cidade que nem a equipa de futebol local apoia, permanecendo um mistério o seu financiamento. Desta decisão decorrem encargos pesados para a cidade, qualquer que seja o ângulo em que a tomemos. E no plano urbanístico são evidentes à saciedade.
Fez-se um estádio novo, para 30.000 espectadores – e imaginemos que o estádio atinge a lotação máxima só com habitantes da cidade, cerca de metade da população da urbe estará concentrada no recinto – no sítio onde o antigo e modesto estádio municipal se encontrava. Chamou-se um arquitecto de “renome” e, sem qualquer pudor arquitectónico ou urbanístico, ergue-se uma estrutura que tem a virtualidade que esmagar o “acidente” que dava escala a toda a cidade “histórica”. O “acidente” é o monte onde pontifica o castelo - silhueta frágil que ainda hoje a câmara exibe orgulhosamente no seu site como imagética da cidade – e a “história” passa agora a ser representada com outros valores mais consentâneos com o rolo compressor desta nossa tacanha pós-modernidade. Ele próprio, o Estádio.
O Estádio é omnipresente. O Estádio é agora a “nova centralidade” que os urbanistas, e ainda mais a classe política, gostam de fabricar com laivos e aspirações de contemporaneidade. O Estádio é, acidental e simbolicamente, o ponto de fuga das ruas e avenidas daquele bocado da cidade. E o Estádio é uma ferida aberta, não direi no coração, mas talvez no rim, da cidade.
A norte da cidade, tudo é Estádio. Desce-se a Nacional 1 e em vez do castelo e toda a construção indentitária e histórica que lhe está associado, somos confrontados, ou melhor, oprimidos com a hiper-monumentaliade daquela estrutura que faz explodir a delicada pacatez da colina-memória-da-cidade. É a imagem da Nova Leiria [nome atribuído ao novel bairro contíguo].
Mas como o trabalho ficara a meio, o buraco remanescente da festa perdura a céu aberto. E como na origem desta operação urbanística não houve algum cuidado, orientação, ou programa, para além da exibição excêntrica de uma modernidade vazia, não se sabe muito bem o que fazer com o “vazio urbano”.
Propostas sucedem-se. Concurso aberto. Três grandes grupos promotores aparecem associados, mais uma vez, a “arquitectos de renome” que levarão a cabo a tarefa de polvilhar o baldio com estacionamentos automóveis massivos e o obrigatório pavilhão multi-usos [tuti-fruti] associado ao sequente centro comercial [para “rentabilizar”, para se “pagar a si próprio”] os quais a cidade, evidentemente, não carece. Mas mais uma vez, e no domínio do simbólico, algo de surpreendente sucede.
Como o “topo norte” do estádio permanece incompleto [Estádio Imperfeito], só com estrutura erguida, não se encontrou programa que o preencha. O monstro urbanístico, que é o próprio estádio, torna-se num monstro político que testemunha o total desgoverno das nossas cidades. Surgem agora propostas para albergar no dito “topo norte” os serviços camarários concentrados e uma loja do cidadão de “última geração”. Rendemo-nos à estupefacção. Confirmamos: depois das rústicas Praças dos Três Poderes - rústicas nas imagens mas urbanas em escala – é ela própria, a representação política, que acode ao Estádio.
Este exemplo serve tanto como a inabilidade da Câmara Municipal de Lisboa para fazer frente ao ultimato do Sporting Clube de Portugal, para que lhe seja permitido densificar de forma absurda o final do Campo Grande. Obviamente, para “rentabilizar”. Ou o do Estádio da Luz a pressionar a Segunda Circular, que com o Centro Comercial Colombo no lado oposto da auto-estrada se erguem como as novas portas da cidade.
E servem estes exemplos para nos confrontarmos com a qualidade das decisões políticas tomadas nas últimas décadas, no que às cidades diz respeito. Ambição tornada cupidez, modernidade subjugada ao provincianismo. O “pensar em grande” tomado na sua literalidade e pressionando as cidades, os orçamentos, com mega-estruturas gananciosas, sem qualquer espécie de inteligência urbanística. As necessidades urgentes das cidades, a pequena escala da rua, do bairro, é elidida em favor das grandes realizações que em nada promovem a qualidade de vida dos indivíduos.
Mais grave que o árido urbanismo destes mega empreendimentos, é a corrosão da qualidade da nossa democracia.