Mãe e filho desfiam a memória no conhecimento mútuo da proximidade da morte. O lugar é o da memória, vagarosa e demorada, desencadeada pelo conhecimento do que se aproxima, pela paisagem sonora e visual fragmentada, pelas manifestação onírica do sonho partilhado e continuado que povoa a noite anterior. Somos convocados à memoria de nós próprios e à memória colectiva. Como um sistema de fractais, irrompe o inconsciente colectivo: os sons da infância que se confundem terrivelmente com os da morte; a coincidência, na casa, da alegria e da dor; passos; pássaros; vento, árvores; o assobio do combóio raro e distante; o assombro da morte; o peso da imperfeição do coração; Deus que perfura a consciência e abandona a alma.
O filho contém a sua vida ao carregar a mãe à morte. Uma Pietà inversa que se detém cativa da consciência da mortalidade. Fragmentos da tristeza irreparável, do amor que se eleva, da contemplação e compreensão do outro próximo, indícios de geometria fractal que compõe a precariedade das coisas e a conexão misteriosa entre nós e as coisas do mundo.
O paraíso perdido é o arquétipo desta paisagem. O espaço é fragmentado, pulverizado, como fracturas minúsculas do todo. Metafísico, como em Munch. A estrada que se bifurca como os caminhos que decidem a vida, as nuvens e a sua sombra errante como tristezas e alegrias que passam, a floresta densa e misteriosa e a ignorância humana sobre coisas, o esplendor do mar e o vento que sacode suavemente as ervas e que constituem a beleza de um mundo, consciente e inconsciente, que nos é dado e que não compreendemos. Que nos deixa espantados pela beleza. Que nos faz permanecer exilados do conhecimento. O mistério do amor e da morte que se atravessa entre nós e o nosso entorno. Infinitamente belo, infinitamente terrível.
o espaço fractal da morte
[Mãe e Filho, Aleksandr Sokurov, 1997]
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- 5.10.09
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5.10.09
caro anónimo:
A voz solitária do homem
Há palavras que escrevemos mais depressa
o terror dessas palavras derruba
o passado dos homens
são tão pouco: vestígios, índices, poeira
mas nada lhes é desconhecido
as horas em que vigiamos o escuro
os sítios nenhuns das imagens
a ligeira mudança que resgataria
o abandono, todo o abandono
[josé tolentino mendonça] - 5.10.09