o mal-estar na civilização


C'est l'Ennui!- l'œil chargé d'un pleur involontaire,
Il rêve d'échafauds en fumant son houka.
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
- Hypocrite lecteur, - mon semblable, - mon frère!


Beaudelaire



A ideia de evasão é central na obra de Antonioni. Solidão, abandono, alienação, desviam-nos da presença das coisas e enfatizam a sua ausência. A aparência dos objectos no mundo é rodeada de incerteza. O inefável como projecto e objecto de comunicação. A geografia da aparência, em Antonioni, sucede na paisagem modernista, da sociedade industrial e do bem-estar. E o cinema de Antonioni é um cinema de paisagem, exterior e interior, num desdobramento espacial quase abstracto – confirme-se na sequência final de O Eclipse [1962].
O Deserto Vermelho [1964] aprofunda o sentido abstracto da realidade: cor, objectos, focagem e desfocagem, enganos ao olhar, profundidade de campo à dimensão da espessura do olhar do espectador, num ajustamento estético à volta do indizível do mundo; a sórdida paisagem dos detritos industriais (quase) tão sublime como os olhos melancólicos de Mónica Vitti.
Como uma metáfora do mal-estar civilizacional, O Deserto Vermelho, explora a desolação espiritual num mundo sobrexposto à tecnologia e à catástrofe ambiental, e a (in)capacidade de permanecermos imunes ao desconcerto do mundo.
Construímos paisagens sépia, manchadas pelo amarelo dos fumos tóxicos; habitamos pré-fabricados, anódinos, invadidos, em rasgos aleatórios nos muros, por objectos quase monstruosos – a casa onde habita Giuliana e o petroleiro que a atravessa.
Tudo é um pouco desolador mas nessa desolação Antonioni prossegue Adorno, na necessidade de contemplar as coisas pelos lado da sua redenção possível. Como na estória que Giuliana conta ao filho, uma ilha onde "todas as coisas cantam".

[Il Deserto Rosso, Michelangelo Antonioni, 1964]


about this entry