i love my city

i. sidewalk


Mais de metade da humanidade vive agora em cidades. É um facto novo no planeta, radical e simbólico, pois a humanidade foi até agora maioritariamente rural e preocupada com a dura sobrevivência.
A cidade, e o seu poder de emancipação e autonomia individuais, é o centro difusor das ideias e da criatividade. A riqueza da cidade exprime-se no capital de conhecimento que dela dimana. A expressão das interdependências urbanas é hoje a rede global das cidades. As cidades são a “riqueza das nações”.
Mas é necessário reencontrar a cidade. Abandonar o subúrbio. Abandonar qualquer pré-conceito suburbano que domina muito do pensamento urbanístico desde o modernismo.A renovação urbana alimentou-se, ao longo do séc.XX, de construção massiva, nova, com impacto devastador sobre o território, a paisagem, as comunidades, as relações de vizinhança e de proximidade. A matriz modernista, o desejo de normalização, harmonia, “funcionalidade”, alimentou o processo, convencido pelas concepções puritanas e moralistas de como as pessoas devem utilizar o seu tempo. Écontra esta utopia higienista, fundada na Cidade-Jardim do séc.XIX, que se ergue o monumento “The Death and Life of Great American Cities” (1961), de Jane Jacobs. Ainda hoje a pertinência do texto é aguda.
Mais que uma elegia à cidade, Jane Jacobs procura chegar ao coração da cidade através da experiência do quotidiano. Diversidade, densidade, multiplicidade, pluralismo, são a essência da cidade democrática, livre, e rica. E a substância da cidade é a possibilidade de liberdade. As condições de florescimento da liberdade passam pela segurança. E a segurança decorre da desordem das actividades diárias das multidões que se cruzam e que se vigiam mutuamente. “The eyes of the street” são as ruas movimentadas da nossa experiência quotidiana. A “ordem espontânea” que se gera ao cruzarmo-nos com desconhecidos.
Sem falsos moralismos nem indulgentes “áreas verdes”, essa panaceia universal para o problema das cidades, Jacobs contraria, com a inteligência da escrita fina, a condenação que nos reserva a suburbanização infinita do território e dos espíritos. Refuta o automóvel como leitmotiv do crescimento das cidades – e não conhecemos bem, nós, portugueses, o efeito do delírio dos peritos em transportes e acessibilidades, ao rasgarem as nossas cidades com auto-estradas? O argumento é simples: o urbanismo modernista rejeita a cidade porque rejeita o conceito de comunidade e dos indivíduos que a compõem e que nela vivem, e que se caracteriza pela complexidade das múltiplas experiências dos milhões de indivíduos que se cruzam todos os dias na cidade. À eficiência e ordem das utopias higienistas Jane Jacobs opõe uma estética da vibração, excitação, da redundância, da desordem natural da vida quotidiana.

[The Death and Life of Great American Cities, Jane Jacobs, 1961]


ii. street

Como desejo de construir a cidade, a arquitectura torna-se em coisa pública, directamente relacionada com o contexto cultural e político, e é por isso, também, que a arquitectura serve de ensaio para novas visões da sociedade.
Vele à Scampia, Nápoles, é Gomorra. A destruição, das estátuas de sal quando se olha para trás. A arquitectura é a de um cárcere. A perspectiva quase piranesiana. A ordem é a da utopia: moral e higiene, homem novo. Mundo metodicamente organizado. Incluindo a vida. Que, evidentemente, extravasa as paredes de Scampia. Mesmo que apenas na morte.
Mas citando o realizador, “blaming the architecture is too easy”.


[Gomorra, Matteo Garrone, 2008]

iii. block

12 Storeys é a vida e alienação nas megalópoles que devidamente incorporaram as mitologias urbanas modernistas. E um óptimo argumento para quem, odiando as cidades, anseia pelo “idílio” da natureza.
Espaços verdes, zonning, ordem, mais uma vez. Deseconhecendo o contexto político e social de Singapura, não será difícil de identificar um regime que tudo quer separar para tudo poder vigiar. E controlar.

[12 Storeys, Eric Khoo, 1997]


iv. “o campo é um sítio onde eu paro para mijar entre duas cidade”*

E é de geografia que trata o filme de Miguel Gomes. Da contemplação dos rostos e das vozes dos habitantes do interior – abandonado? A câmara sem arrogância nem indulgência deixa, apenas – e este apenas faz toda a diferença – correr a vida naquele lugar. Há festa na aldeia. Por cima dos pequenos dramas existenciais de que se ocupam as horas em que nos dedicamos à sobrevivência.
Som De Cristal - Marante
[Aquele Querido Mês de Agosto, Miguel Gomes, 2008]
*Manuel Vicente

para o Pedro Daniel


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  1. AM 17.10.08

    grande posta, joão!