das casas
Já te contei como eu e a tua mãe descobrimos este lugar, não já?
Viemos aqui num passeio.
Nessa altura, ainda nem sequer estavas projectado.
Foi a primeira vez que cá viemos.
Não tínhamos mapa e esquecemo-nos de trazer um. Além disso, tínhamos ficado sem gasolina.
Parámos algures aqui perto e continuámos a pé.
Na verdade estávamos perdidos.
Depois começou a chover, uma chuva fria, miudinha…
Chegámos àquela curva ali, ao pé daquele pinheiro seco e nessa altura o sol apareceu.
Parou de chover!
Depois vimos a casa…
De repente, tive pena de não… quer dizer, que eu e a tua mãe não vivêssemos naquela casa por baixo dos pinheiros, tão perto do mar.
Que bela que era!
Veio-me à ideia que se vivesse ali seria feliz até na morte.
Que se passa? Não tenhas medo. A morte não existe. Não, existe o medo da morte e é um medo horrível. Por vezes até leva as pessoas a fazer coisas que não deviam fazer. Mas quão diferente seria se parássemos de ter medo da morte.
[…]
Pois, como estava a dizer, eu e a tua mãe ficámos encantados quando nos apercebemos da sua beleza.
Não nos conseguimos afastar.
A paz, a quietude.
Ficou claro que a casa tinha sido feita para nós.
Afinal, até estava à venda.
Que milagre!
Tu nasceste nessa casa.
Gostas? Gostas da nossa casa?
O homem sempre se defendeu. De outros homens, da Natureza da qual faz parte. Ele violou constantemente a Natureza. O resultado é uma civilização baseada na força, no poder, no medo e na dependência. Tudo o que o nosso chamado ‘progresso técnico’ nos deu é um tipo de conforto, uma espécie de padrão e instrumentos de violência para mantermos o nosso poder. Somos uns selvagens! Usamos o microscópio com se fosse um bastão. Não. É errado… os selvagens são mais espirituais que nós. De cada vez que fazemos uma descoberta científica, pomo-la logo ao serviço do mal. E quanto ao princípio, alguns homens sábios disseram uma vez que o pecado é desnecessário. Se assim é, então toda a nossa civilização está baseada no pecado do princípio ao fim. Conquistámos uma desarmonia terrível, um desequilíbrio, se quiseres, entre o nosso desenvolvimento material e espiritual. Há algo de errado com a nossa cultura, ou seja, com a nossa civilização.
[…]
Mas meu Deus, que cansado estou desta conversa!
‘Words, words, words!’
Só agora percebo o que Hamlet queria dizer.
Estava simplesmente rodeado de pessoas sem interesse.
Também eu.
Mas porque falo assim?
Se alguém parasse de falar e fizesse finalmente algo, para variar.
Ou pelo menos, tentasse.
[O Sacrifício, Andrei Tarkovsky, 1996]