Zaratustra odiava as cidades



Uma das evidências dos lugares é a arquitectura. O espaço construído no lugar, do lugar, que, no refluxo minucioso do seu trabalho telúrico, subterrâneo, co-labora com as pedras que juntamos. É pelo desejo que as mãos fazem coincidir e revelar a geografia com o que transportamos: montanhas e vales; mitologias pessoais e colectivas; experiências do passado que não recordamos; o corpo; a superfície fria da solidão necessária à mais proveitosa reunião gregária. Depois a topologia. A invenção dos nomes e tentativa de dizer o mundo. O combate à resistência do mundo que persiste em ocultar-se e em dizer-se. Talvez menos subtil e volátil que a poesia, é também este o trabalho da arquitectura.

Michel Onfray experimenta dizer os lugares através da(s) viagem(s). Do elogio da viagem. O viajante, nómada que se cumpre no desenraizamento e na afirmação dionisíaca da descoberta de si no mundo largo e vasto e diverso. É a este viajante que cabe contrariar a supressão da História que as cidades globais pretendem contar. É este o Marco Pólo exaltado que conta ao Kahn, de si para si, a beleza que encontra no mundo – e nas cidades. O viajante que celebra o avião ‘que troça do ar’ e ao fazer a volta ao mundo é com o prazer infantil se comove com distância que nos une a todos ao ‘fogo furioso incandescente’ do centro da Terra. O viajante, máquina desejante de Deleuze, ligação e interpenetração dos ‘fluxos contínuos’ que nos re-ligam aos confins do Universo.

A alternância entre partidas e chegadas possibilita uma verdadeira definição do habitar tão caro a Heidegger.

O reencontro. Ítaca excluí o viajante da errância. O Judeu Errante, o condenado ao qual não é permitido fixar-se – habitar - é o que nunca chega a casa, o que nunca acha o sentido da viagem. E do mundo. A viagem - o mundo - só se reconhece na sua plenitude no reencontro com a morada. A casa. O habitar. 'Na arte do habitar concentram-se práticas de arquivo quotidianos, é verdade, mas também se articulam hábitos, rituais sem os quais a angústia não pode ser conjurada, permanecendo e consumindo o corpo e a alma.' É necessária a demora e a ritualização dos dias. Permanecer, ser, junto ao fogo familiar e determo-nos nas leis da hospitalidade que exigem tecto sedentário. O lugar abandonado - para outros se constituírem - reencontra-se no habitar.

Eis a perturbação do viajante que é também política: contra a ponderosas razões (e i-razões), de Estado, sangue, de solo, é o que procura o mundo, dizê-lo de novo, singular, único; é quem perturba e desorganiza a disposição social estabelecida. É o que ama a liberdade, conduz o seu destino pelo Sol e contraria a paz aparente do quotidiano. O estrangeiro que nos outros lugares (do outro) se descobre a si mesmo. ‘Nós próprios, eis a grande questão da viagem.’

O mundo constituído e dito pelos lugares. Anti não-lugares.


[Teoria da Viagem – Uma Poética da Geografia, Michel Onfray]


para o António


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