- Queres ir a algum lado este fim-de-semana?
Paris, Roma... Para mim, tanto faz.
- Decide tu.
As cidades são todas iguais.
O que Mirja diz, “as cidades são todas iguais”, não é inocente. Habita em Helsínquia uma arquitectura igual à de Tóquio, Paris, L.A., ou Roma. Uma arquitectura de reflexos das marcas comerciais no vidro brilhante dos “volumes” de exaltação tecnológica e económica. No hiper-modernismo de Helsínquia, (Tóquio, Paris, L.A., ou Roma), a torre de aço e vidro substitui-se à torre de marfim, de onde se desce apenas por algum infortúnio acaso.
O “superfuncionalismo” capitalista estende-se a todos os domínios. O mundo trivializa-se sem qualquer sentido transcendente, abolem-se fronteiras entre interior e exterior, definem-se identidades a partir do consumo. A arquitectura mediatiza-se e é mediatizada como mais um objecto de consumo, indiferente ao contexto geográfico, topológico ou físico ou histórico.
O “modelo finlandês”, do bem-estar e do desejo democrático, (a transparência do Tribunal, da administração do poder, as ruas limpas e civilizadas, os cafés asseados e agradáveis), do brilho ostensivo da contemporaneidade envidraçada, transporta-nos para uma cenografia irreal e obscena, onde a memória colectiva, que também configura as cidades, é traficada pela uniformização da realidade.
Se a experiência primária da modernidade eram as cidades, hoje, estas perderam para o ar condicionado que torna o aço e o vidro suportáveis.
[Luzes no Crepúsculo, Aki Kaurismäki, 2006]
nas margens da arquitectura
Descer da torre é entrar nas margens. Não por acaso, na digressão de M. (assim, apenas uma inicial, sem nome e sem número e sem memória de si mesmo), os lugares mais próximos da inclusão na sociedade do bem-estar são as estações ferroviárias, lugares de trânsito apenas, (quando violentamente perde a memória; quando começa a regressar a si; quando se apaixona), como se a memória fosse o ponto de partida íntimo do que somos, indivíduos e sociedade.
M. habita uma comunidade de contentores alugados, qual real estate, explorada por um senhorio ganancioso e à margem de qualquer lei ou justiça. A cidade é um eco distante, um contra-campo remoto, para onde a perspectiva das personagens e da câmara conflui. A dicotomia é entre a cidade e baldios. Entre a cidadania e nem o próprio nome poder proferir.
Ainda que parte de uma sociedade que concretiza o ideal de justiça social e prosperidade, M. representa as margens dessa sociedade. Uma condição que não o resigna. Uma condição em que nos apercebemos definitivamente que o direito de cidadania é coincidente com o direito à cidade.
[O Homem sem Passado, Aki Kaurismäki, 2002]
Em qualquer um destes dois filmes é excluída da manipulação, quer do espectador, quer das personagens, para efeitos de alguma declaração política ou ideológica. Antes, Aki Kaurismäkim faz uso de algum humor sardónico na exposição das estórias e da sociedade finlandesa. Em vez da demagogia, o humor. Amor.