a gravidade e a graça*
[Casa das Histórias Paula Rego, Eduardo Souto Moura, 2009]
Que possamos entrar num edifício quer dizer que a sua experiência sobre nós é tal que, paradoxalmente, é ele que entra em nós – que nos habita. E torna-se-nos necessário falar da transubstanciação.
Porque a arquitectura, como produção de espaços, não tem início nem fim, como na singularidade poética da promenade architecturale: formas sob a luz, dentro e fora, em cima e em baixo. Fora, aproximamo-nos e olhamos e interessamo-nos e desejamos e percorremos em volta e descobrimos e regressamos. Dentro, entramos e caminhamos, olhamos ao caminhar e as formas explicam-se e desenvolvem-se e combinam-se. Não cessamos, não cessa em nós, a desocultação da forma pelo espaço.
De facto, trata-se de determinar qualquer coisa como uma ‘essência’ da arquitecturalidade, se a sua definição, por hipótese, é ser um saber que consiste em dar lugar aos objectos de todas as naturezas que não são eles mesmos produtos desse saber.
*Simone Weil
o mundo é aquilo que nos separa do mundo*
[Ilha do Pico]
O espaço arquitectónico não é fictício: não habitamos o espaço literário ou pictórico. Se a ficção se ergue a partir daqui é porque, enquanto real, o espaço dividido e hierarquizado e limitado pelo arquitecto, nos expõe a imaginação a condições particularmente favoráveis para que esta nos tome de assalto. A arquitectura é uma condição de possibilidade. Da ficção e do dizer e do pensar e do agir.
As casas sobrevivem aos homens. A duração é o seu modo, que se faz como obra-no-mundo. O fim da arquitectura coincidirá com o fim do político e do pensamento. Da arquitectura sustém-se o que sem ela seria inexistente. Ergue-se aquilo que por si não se mantém. É a sustentação das coisas. Acção directa sobre a nossa sombra fugaz.
* Trieste, José Tolentino Mendonça in O Viajante Sem Sono
para a T.
strategies against architektur*
Não nos interessa a reflexão puramente estética a que pensar a arquitectura nos levaria. Onde tudo o que ela dá a pensar, de ordem ética, estaria irremediavelmente ausente.
*Architektur ist Geiselnahme, Einsturzende Neubauten, in Berlin Babylon
ladies & gentlemen, Humpty Dumpty has just left the building
[Museu Fundação Oriente, Carrilho da Graça, 2008]
A distância entre a Ideia e a nossa percepção do mundo real é imensa. A essa diferença era em Platão o espaço. E o limite é espaço - espaço intersticial. O espaço do limite, ainda que sem extensão, é espaço: o espaço da geometria. E a geometria medeia a inacessível instância de Ideia e a realidade do mundo. O espaço, que não existe, torna-se. Devém pela desocultação. Pelo labor do geómetra que percorre o espaço entre as coisas, as descobre e lhes atribui o nome. É este o momento, este entre-dois, que se reconhece a realidade. A evidência que se revela.
A percepção do espaço implicará a criação contínua de espaço, um outro. Espaços múltiplos, contínuos, contíguos, separados, diferenciados, arrastados, nunca concluídos, na luz e na sombra. E inventamo-los pela luz e pela sombra. E esse é o ritmo da transformação da matéria.
Humpty Dumpty, sentado no alto fino muro, proclama o enclausuramento das palavras. Das coisas. Paradoxal com a sua precária situação no mundo, o seu corpo, sem juntas, sem dobras, com um limite unívoco, induz-nos ao erro das coisas fechadas.
O desejo do Museu da Fundação Oriente é esse. Fechar-se, ocultar-se, fixar-nos num mundo sem juntas e sem dobras, um mundo onde tudo é ‘complanar’. E, em rigor, o rigor autoritário do projecto de execução, eleva ao paroxismo a proposta do corpo do Humpty Dumpty. Precária situação no mundo.
Que lugar estranho para os The Bad Plus ultrapassarem os limites da convenção e demolirem o que faz diferir Stravinsky de Thelonious Monk de Aphex Twin de Kurt Cobain.
a fabricação da mesa e a invenção da civilização
retórica insuportavelmente sentimental#2
É pena, sem dúvida, que uma parte tão grande do trabalho criativo esteja tão intensamente relacionada com a personalidade daquele que o produz.
É triste, embaraçoso e pouco interessante que as emoções que sacodem o artista a ponto de lhe exigirem expressão, cumulando-a de uma certa dose de luz e força, estejam quase sempre enraizadas, por muito modificadas que apareçam à superfície, nas preocupações pessoais, por vezes singulares, do próprio artista – esse mundo particular, cujas paixões e imagens cada um de nós vai tecendo do nascimento até à morte, uma teia de complexidade monstruosa, urdida – a uma velocidade incalculável e com uma extensão impossível de medir – por essa aranha que são as percepções singulares do artista.
É uma ideia solitária, uma condição solitária, e é tão aterrorizador pensar nela que normalmente não o fazemos. E por isso falamos uns com os outros, escrevemos, telegrafamos e telefonamos uns aos outros, de perto ou de longe, cruzando terra e mar, apertamos as mãos à chegada e à partida, lutamos uns com os outros e até nos destruímos uns aos outros, neste esforço algo frustrado de atravessar paredes em direcção ao outro. Como disse uma vez um personagem numa peça, “Estamos todos condenados a viver na cela solitária da nossa pele.”
O lirismo pessoal é o grito de um prisioneiro para outro, na cela solitária a que cada um está confinado durante toda a vida.
[...]
Tennessee Williams, Uma Palavra ao Leitor in Um Eléctrico Chamado Desejo e outras Peças
Mas continuo a dizer que sou um egoísta [...]
Eduardo Souto Moura in i, 05.10.2009
retórica insuportavelmente sentimental
Duas ou três coisas acerca da ‘esquizofrenia crítica’. Sufoco, será mais apropriado.
A devoção excessiva à singularidade, objectos, edifícios, autores, ergue-se a partir da obsessiva auto-assertividade, auto-consciência, auto-complacência, (auto-crítica?). É próprio da crítica a produção de um juízo – estético, ético, técnico, depende da ‘ambição crítica’. O problema que se nos coloca é ser essa produção crítica de acordo com os próprios fenómenos que observa. E é esta que se manifesta, que se ergue quase como manifesto. E nessa excessiva deslocação elidem-se a relações (críticas?) do objecto, da sua singularidade, no contexto e no confronto com tudo o que dele se exclui. Sobra o objecto autista e a crítica cega.
Ainda que saibamos que o lugar da crítica será justamente o de estabelecer ligações [não links], relações, entre o objecto e o mundo – quase que atrevo o real - o pensamento, acossado pelo ego-centrismo, torna-se mera vontade de afirmação, já não de representação.
Mas talvez tudo isto não passe de uma retórica insuportavelmente sentimental ou talvez seja o tempo de instituir a instabilidade como categoria crítica. Ainda depois de Derrida & Eisenman.
interiores/exteriores
[Estado de Guerra, Kathryn Bigelow, 2008]
Ainda The Hurt Locker, interiores/exteriores.
Interiores:
A caserna provisória, que durará o tempo da guerra, estreita, austera, uma cama, uma mesa de cabeceira, o desejo do Sgt. James a fechar da luz com um contraplacado.
o Humvee e a economia militar, o estrito equipamento para manutenção da vida, o espaço mínimo de sobrevivência ao exterior violento.
Os planos claustrofóbicos do interior do capacete do equipamento anti-explosão: somos nós sempre enclausurados no interior do fato – sangue, suor, absurdo.
A casa do professor iraquiano, fugaz trivialidade e quotidiano dentro da guerra - não por acaso se tornou insuportável ao Sgt. James.
Exteriores:
Sempre mediado pelos dispositivos de guerra, pelas distorções telescópicas ou microscópicas do território.
A câmara inquieta, ansiosa, aflita, atribulada, sempre atenta ao perigo iminente que surge de qualquer lado, espada de Dâmocles a desabar a qualquer instante.
terrae incognitae
Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes de Octávia é menos incerta que noutras cidades. Sabem que mais do que um certo ponto a rede não aguenta.
[As Cidades Invisíveis, Italo Calvino]
O espaço inteiro da humanidade e da natureza implode. Integralmente conquistadas todas as suas dimensões [euclidianas e outras], o espaço cessa de ser um volume extensível através do qual e expansão não tem limites. A extensão deixa de ser expansiva. Torna-se intensiva – junções, condensações, compressões, potências de partículas ou de fibras infinitas, milhões de bits de energia ou informação em quase nenhum espaço-tempo – o espaço perde o seu pensamento, a sua disposição de amplitude e abertura. De certa forma o espaço não mais exactamente dimensional: a terra não é mais que um ponto, e o ponto é sem dimensões.
A consciência agonizada do re-encerramento engendra uma espécie de pensamento do espaço – pensamento que é ao mesmo tempo essa angústia e a luta com ela mesma, o ponto de partida de uma outra história, de um outro espaçamento.
uma razão para ir para a guerra
[Estado de Guerra, Kathryn Bigelow, 2008]
Aprende-se a lidar com a bomba e não se pensa nisso enquanto se desarma o detonador. Embedded, nós, espectadores, enclausurados no fato anti-explosivos. Claustrofobia para além de qualquer juízo.
primeiro vive-se e não se pensa em nada
o espaço fractal da morte
Mãe e filho desfiam a memória no conhecimento mútuo da proximidade da morte. O lugar é o da memória, vagarosa e demorada, desencadeada pelo conhecimento do que se aproxima, pela paisagem sonora e visual fragmentada, pelas manifestação onírica do sonho partilhado e continuado que povoa a noite anterior. Somos convocados à memoria de nós próprios e à memória colectiva. Como um sistema de fractais, irrompe o inconsciente colectivo: os sons da infância que se confundem terrivelmente com os da morte; a coincidência, na casa, da alegria e da dor; passos; pássaros; vento, árvores; o assobio do combóio raro e distante; o assombro da morte; o peso da imperfeição do coração; Deus que perfura a consciência e abandona a alma.
O filho contém a sua vida ao carregar a mãe à morte. Uma Pietà inversa que se detém cativa da consciência da mortalidade. Fragmentos da tristeza irreparável, do amor que se eleva, da contemplação e compreensão do outro próximo, indícios de geometria fractal que compõe a precariedade das coisas e a conexão misteriosa entre nós e as coisas do mundo.
O paraíso perdido é o arquétipo desta paisagem. O espaço é fragmentado, pulverizado, como fracturas minúsculas do todo. Metafísico, como em Munch. A estrada que se bifurca como os caminhos que decidem a vida, as nuvens e a sua sombra errante como tristezas e alegrias que passam, a floresta densa e misteriosa e a ignorância humana sobre coisas, o esplendor do mar e o vento que sacode suavemente as ervas e que constituem a beleza de um mundo, consciente e inconsciente, que nos é dado e que não compreendemos. Que nos deixa espantados pela beleza. Que nos faz permanecer exilados do conhecimento. O mistério do amor e da morte que se atravessa entre nós e o nosso entorno. Infinitamente belo, infinitamente terrível.
perpetuum mobile
[Mercators Projection, Icebergs Series, David Burdeny, 2007]
Mas porque estar aqui é muito, e porque tudo
o que é daqui aparentemente precisa de nós, estas coisas efémeras, que
estranhamente nos dizem respeito. A nós os mais efémeros. Cada uma
uma vez, só uma vez. Uma vez, não mais. E nós também
uma vez. E nunca mais. Mas o
ter sido uma vez, mesmo uma só vez:
o ter sido terreno, parece irrevogável.
[As Elegias de Duíno, A Nona Elegia, Ranier Maria Rilke]
A nova doutrina: o espaço hesita. Flutua ou naufraga, ergue-se ou soçobra.
Desamparado de qualquer imagem do mundo, livre de qualquer crença matricial e fundadora. Expulsos do lugar único e indivisível, o Paraíso, caímos no território que exige trabalho. Só depois das mãos, a paisagem.
Nem lugares, nem não-lugares, apenas [im]possibilidade de nos reconhecermos num lugar para a existência. O espaço que a arquitectura se encarregará de nomear, fixar, para que o ser exista.
para averiguar do seu grau pureza
[Chicago Tribune Tower, Adolf Loos, 1922]
Have the elder races halted?
Do they droop and end their lesson, wearied over there beyond the seas?
We take up the task eternal, and the burden and the lesson,
Pioneers! O pioneers!
[Pioneers! O Pioneers! , Walt Whitman]
Sabemos da anglofilia fina de Adolf Loos e perguntamo-nos pela razão da condescendência e paternalismo do vienense perante a América. O purismo, (puritanismo?), ético loosiano, incompatível com a diversidade – variedade – da sociedade americana? Um território de incerteza, de origem incógnita e oculta, se comparado com o estável progresso – refinamento – cultural da Inglaterra de então? Certamente uma perturbação para quem se inquietava com a depuração da ‘raça austríaca’, a degenerada.
Musil explica. E Freud. E Shoenberg.
E a voz de Whitman, citado por Loos, que ergue a heróica e moderna América dos escombros dos impérios anteriores que definhavam, do território de fronteira estranha, da mistura impura mas optimista dos homens.