quiasma | s. f.

do Gr. chíasma, disposição em forma de X

s. f.,
traves dispostas em cruz, numa armação;
Anat.,
cruzamento dos nervos ópticos sobre o esfenóide;
ponto de junção de dois cromossomas homólogos no qual ocorre o cruzamento e é trocada informação genética.

| João Amaro Correia | 31.1.08 |   |

estrada nacional: galo de barcelos blues


O itinerário, em mosaico, da vida que resta, da que se exauriu, pela Estrada Nacional 2. O roteiro da democracia que tarda a chegar, justa, aos caminhos do interior.
Os operários da pequena e debilitada indústria ao fim da tarde no café da aldeia. Fatos-macaco manchados pelo óleo da auto-reparadora, atados à cintura, e a t-shirt encardida, patrocínio do restaurante Cova Funda, a mini, aberta com uma pancada seca na aresta já lascada da mesa café. Central na “tortuosa da rua direita”, onde, vem nas brochuras adjudicadas pela Câmara e que indicam ao fundo a igreja com o retábulo em talha dourada, as muralhas recuperadas, e depois, ainda mais ao fundo, diante do abismo, a paisagem natural, aqui e agora o paraíso time-sharing do civilizado oficial vá-para-fora-cá-dentro dirigido aos CEO Parque das Nações e às secretárias Cacém, de “fazer perder a respiração”.
São as cidades que se desmoronam nas escarpas do Douro. Os lugares da planície traficada pela miragem do milagre do progresso enfim. Nos centros comerciais de lojas de “lucro duvidoso”, na cave da lady’s night e do karaoke, emulação da província MTV. “Aqui não há muito para fazer.” O cineteatro às sextas, a filarmónica aos sábados, o rancho aos domingos, dia santo do consumo remediado pelas prateleiras do novo Jumbo que perde em favor da arrumação do antigo Intermarché. Somos pós-modernos sem que tenhamos passado pela modernidade.
Sair. Emigrar é o resgate. Sair. Largar a terra. “Rota do êxodo”. Os 50% da população que abandonaram o lugar da Picha nos últimos quarenta anos. Censos 2001. “Aqui não há emprego. O que eu queria era ir para uma cidade grande. Viseu, Coimbra, ou mesmo Lisboa, onde se ganham 1200 euros.” E os discos pe(r)didos na rádio local são o espaço público da solidão partilhada, dedicada à saudade dos que partiram.
A vida que ainda vai existindo, resistindo na nostalgia do que se perdeu e na melancolia do que poderia ter sido. Um país que vai definhando, desesperando pelo novo troço de ligação da EN2 com a Estrada da Beira, que cose o território retalhando um pouco mais a vida dos lugares – “se conhecerem alguém lá em Lisboa...”
Não é ficção, não é caricatura, a vida pelo teatro.
Mas a feira regressará outra vez no ano que vem para celebrar a Nossa Senhora dos Remédios. Chocaremos nos carrinhos enquanto, mais um pouco, se vai existindo. Num gerúndio resignado.


[EN2/PT, direcção de Ruben Tiago, com Andresa Soares, Nuno Lucas, Ruben Tiago, 29.1, 21.30h, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian]

| João Amaro Correia | 29.1.08 |   | /

estrada nacional#13

É o cepticismo, a atitude que se impõe.

George Steiner, No Castelo do Barba Azul



Revolver a superfície plana das imagens que a arquitectura também constrói e veicula, é trabalho ontológico da própria arquitectura. Como produtora de cultura, a arquitectura, estabelecerá relações com o tempo, os lugares, as memórias, a matéria. Será o elo concatenador do indivíduo com o seu espaço e tempo. O veio de transmissão, inicial e quotidiano, do homem com o mundo, com o passado, o presente e o futuro. Daí ser ela também objecto de desejo. E de consolo. Uma proposta de pensamento, “exterior às palavras”, originário tanto da razão como do coração, das ideias e da matéria.
Acontece curto-circuito, a arquitectura torna-se instrumento de representação. Uma casa são as aspirações do indivíduo moldadas pela matéria. O desejo é a vontade de um mundo. O mundo torna-se plural com a manifestação das diversas vontades. A arquitectura abre o(s) mundo(s). É o mister do arquitecto abrir o mundo.
A abertura é o devir de todas as possibilidades. O novo absolutamente novo e o antigo re-construído à luz contemporânea são os refúgios recorrentes. O espanto do original ou o reconhecimento do autenticado por gerações passadas, são os dois lados de um plano impaciente, como uma folha branca à espera das palavras, que nos deixa suspensos. Com a avidez nervosa das novas formas ou a pretensa unissonância do passado ordenado, eterno jardim, esforçamo-nos por alguma segurança reactiva com que confrontamos o abismo do tudo-possível.
O compromisso do arquitecto será ético. A radicalidade do ofício será a da inteligência com que se administrará os materiais que se dispõem sobre o estirador: memórias, desejos, técnicas, tecnologias, matérias, necessidades e possibilidades, adequação.
Não coabitando pacificamente com o presente, ou humilhamos o passado ou alimentamos a expectativa de resgate pelo futuro. Incapazes de (nos) entendermos (n)o hoje, ou sonhamos com as redentoras tecnologias do amanhã ou glorificamos o passado agora mítico. E elide-se qualquer possibilidade da arquitectura ser.


[Moradia Unifamiliar, Fontaínhas da Serra, Atouguia, Ourém, autor desconhecido]

| João Amaro Correia | 24.1.08 |   |

território: democracia?


A localização do novo aeroporto de Lisboa, o encerramento dos serviços públicos de saúde, a revisão da ordem territorial dos tribunais, a abrupta e absurda reintrodução do tema da regionalização numa patética agenda política do PSD, têm um alcance mais largo que cada um destes assuntos de per si e de um putativo impulso reformista deste governo, e remete-nos para a questão da organização do território.
A organização do território e o ordenamento paisagístico são instrumentos essenciais à soberania do Estado e à vigilância da qualidade da Democracia, que tem como consequências o desenvolvimento equilibrado da população sustentado, numa perspectiva liberal, nas vantagens da maior liberdade de escolha e das opções voluntárias e conscientes, de cada indivíduo.
Mais do que mercearia política e impetuosos balancetes orçamentais, está em causa o país que temos e o que desejamos, a degradação da qualidade de vida nas cidades e aldeias, a eficácia da representatividade dos eleitos, a democraticidade das instituições públicas, a soberania de um Estado de Direito democrático e legitimado pela liberdade individual de cada um fazer o que muito bem entender da sua vida, viver onde quiser, encontrar casa – habitar – onde mais lhe convier, sem que tal signifique perda de direitos consagrados na Constituição – ainda que esta apresente uma inclinação socialista anacrónica e absurda - nem, muito menos, o agravamento das condições e do custo de vida. Porque se a política é a arte do possível, a liberdade é o território corajoso das possibilidades abertas a cada um e da responsabilização individual que da liberdade provém.
As políticas de ordenamento territorial dos últimos 33 anos foram desastrosas - o mundo não começou no dia 25 de Abril de 1974, mas o que interessa aqui é a capacidade da democracia, como regime atento à dignidade do homem e às necessidades da liberdade. Ou inexistentes ou ineficazes ou reféns da opacidade de interesses, as políticas públicas de ordenamento permitiram a degradação da qualidade do nosso espaço quotidiano, o desfeamento e destruição da paisagem. Ainda que muitos desses interesses sejam legítimos, só por uma cultura de um pudor pré-moderno em relação ao dinheiro e de uma salazarenta e hipócrita humildade face à riqueza, (no conforto pobrezinho do meu lar,/há fartura de carinho./A cortina da janela e o luar,/mais o sol que gosta dela.../Basta pouco, poucochinho p'ra alegrar/uma existéncia singela.../É só amor, pão e vinho/e um caldo verde, verdinho/a fumegar na tijela.), se insiste no jogo de sombras chinesas nos corredores do poder, em vez do confronto no espaço público, como o deve ser numa democracia liberal, originando a estupefacção dos cidadãos e a conversa de taxista e a descrença nas instituições democráticas.
O resultado é a omissão do território como princípio da soberania do Estado. Sendo que a tarefa que incumbe ao Estado não será ocupar o território, os instrumentos legais de planeamento servem, antes de mais, para projectar a ocupação do território de forma adequada quer às necessidades dos cidadãos, quer à manutenção do equilíbrio social, histórico e cultural das cidades, impedindo o desequilíbrio do plano inclinado do país para o litoral sobreocupado.
Os instrumentos legais de planeamento não servem para políticas de desastroso dirigismo urbano, de acomodação despótica da plutocracia do sector imobiliário em conivência com autarcas distantes de qualquer ideia de urbanidade e qualidade de vida e mais atentos à sazonal “obra feita” coincidente com o calendário eleitoral, nem tão pouco ao imobiliário como fonte de rendimentos das autarquias, (e a revisão da lei de financiamento das autarquias?). Os instrumentos legais de planeamento servem para aumentar a qualidade de vida nas cidades e acudir à desertificação, reduzir o apelo das grandes cidades como lugares únicos de provimento dos desejos dos indivíduos e supressão das necessidades primárias – como a saúde, a justiça, a cultura ou a segurança. Os instrumentos legais de planeamento servem o alargamento da possibilidade de escolha de cada indivíduo de viver, sem prejuízo da qualidade de vida, onde mais lhe apraz. O papel do Estado é assegurar que essa liberdade de escolha é real e consciente, não condenando os indivíduos às grandes cidades, à inexorabilidade da inabitabilidade das grandes cidades, (cada vez mais uma, Lisboa).
Abrir ou fechar um Centro de Saúde, um Tribunal, uma Escola, ou um posto da GNR não é uma operação de aritmética merceeira. A manutenção ou não destes serviços em cidades de menor dimensão, deve responder a uma estratégia de desenvolvimento equilibrado do território e depender do famoso novo modelo de desenvolvimento de que necessitamos. E o desenvolvimento equilibrado do território não é a continuação da presença exorbitante do peso das obras públicas em auto-estradas e vias-rápidas que apenas servem para acelerar a viagem sem regresso para Lisboa ou Porto e o abandono do interior. O Estado não é o móbil da fixação das populações. Habitar deve depender da liberdade e do desejo. E o papel do Estado é assegurar que a liberdade exista e o desejo seja possível. E que o habitar não seja uma condenação a um lugar ou a uma grande cidade que se vai tornando num deserto inabitável cheio de pessoas à volta.
Mas a trágica comédia dos brandos costumes políticos prossegue: um mega aeroporto, “cidade aero-portuária”?!? - inversão provinciana e autárquica, (perdoe-se-me o pleonasmo), do not in my backyard em que se discutiu a paróquia onde o mesmo será implantado e não as consequências brutais de cada uma das localizações num ordenamento equilibrado do território; encerramento acéfalo de urgências e centros de saúde, apenas porque “não dá lucro” numa pretensa e incompreensível tentativa de “racionalizar os meios” - é função do Estado “dar lucro”?; a regionalização, de novo, como cavalo de batalha das clientelas partidárias, ou de estratégias políticas confinadas às partes, ao my backyard, sem qualquer perspectiva do todo que é o território nacional.
Tarde demais perceberemos que a paisagem, o território, é o essencial à qualidade da democracia, numa relação de directa proporcionalidade.

| João Amaro Correia | 17.1.08 |   |

revivalismo ansioso


©O Arrumário


Via O Despropósito, via O Arrumário, chegamos a um post, a uma arquitectura e a um arquitecto, que nos lançam no puro debate estético e político que deverá ultrapassar a perplexidade de um primeiro momento e abrir o caminho à discussão quer ideológica, quer disciplinar.
O tom elegíaco do post só é ofuscado pela nostalgia perigosa que as imagens da arquitectura de Thiago Bradell veiculam. Mas concordo na necessidade da crítica a uma obra como esta. Fale-se, discuta-se, debata-se, exponham-se as contradições a que se sujeita uma escolha deliberada de uma discurso arquitectónico reaccionário.

Da arquitectura, como inscrição cultural no território, na paisagem e na sociedade, decorrem naturalmente pressupostos políticos e ideológicos, um pouco à laia de Marx em que a arte exprime um determinado tempo. Um tempo cultural e ideológico.
A nossa avaliação estética enferma-se sempre na consequência da nossa consciência de época, e é a partir daí que se constróem as identidades. A democracia liberal solta-nos dos grilhões igualitários e totalitários e permite-nos aceder àquilo que melhor nos convém. O problema é que desconhecemos o que nos convém quando reconhecemos a vulnerabilidade do mundo e das coisas no tempo instável que atravessamos. E procuramos o enraizamento em pretéritas memórias. Ou antes, traços de memórias do que não se viveu nunca, numa fuga inquieta para o paraíso artificial e perdido.
É este reaccionarismo atravessado de pseudo-sofisticação exemplar da construção de uma mítica ordem de valores sociais e, ao mesmo tempo, da construção e afirmação do indivíduo que as patrocina, promove e habita. Este discurso arquitectónico serve, não inocentemente, à ideologia da segregação e da exclusão. Sustentado apenas em imagens, de aroma rural e do viver habitualmente, que em tempos se tentou confundir com uma inverosímil e uniformizadora Casa Portuguesa, é agora um discurso de exclusividade e sofisticação e distinção, deslocado e desfazado da sua origem social, cultural e económica. Procede de uma sociedade – de um discurso sobre a sociedade - em que tudo seria imaginariamente ordenado, imutável e simples, para acudir a uma sociedade – ou discurso sobre a sociedade - onde tudo se torna vulgar, numa ilusão permanente e frívola de regresso a essa imutabilidade social que a alguns dará confiança. Mas só acessível aos iguais. Aos que procuram um refúgio estético perante a trivialidade com que a democracia liberal colora as coisas. Um nicho de mercado das aspirações nouveau riche avessas à cidade e à sua diversidade e pluralismo.
É um sintoma da perplexidade que experimentamos num mundo inquietante e que não reconhecemos. É a resposta culturalmente pobre, mas segura, às inquietações do ofício da arquitectura, onde não reside nenhuma tentativa de descodificação da complexidade do mundo e abunda a tentação do refúgio num passado mítico.
O modernismo e a excessiva confiança depositada na capacidade do homem regenerar uma sociedade antiga na qual se reconhecia um mundo anti-democrático e de sujeição do indivíduo ao poder, tentou escorraçar qualquer vestígio da história e desse passado sombrio da arquitectura. Agora, cínicos e desiludidos e muito pós-modernos, ou procuramos o deslumbre do novo pelo novo, imersos em tecnologias e sustentabilidades, ou pretendemos recuperar esse passado que agora nos parece glorioso. O desejo de redenção dos nossos medos contemporâneos, a ilusão do passado, em conflito com o presente angustiante, é o tema da arquitectura de Thiago Bradell.
As contradições disciplinares são evidentes. Construir de novo o antigo com a tecnologia do presente é um óbvio paradoxo. O resultado é um postiço. A matéria arquitectónica é manipulada ao sabor da conveniência mesquinha da aparência.
Os vãos, as coberturas, as pérgolas, os pórticos, as chaminés, as cantarias, são a concretização pífia da ordem simbólica de um mundo facilmente reconhecível e apreensível. A escala é a da brutalidade com que se pretende afirmar um paradoxo e proporcional à carteira e desejos do cliente.
Admito que o arquitecto Thigo Bradell seja tão ignorado pela "critica" quanto procurado pelos clientes. E presumo que ao se quedar sentado no seu terraço, com a serra de Sintra à frente, ao final do dia, esse facto deve diverti-lo bastante. E a validade do seu trabalho resulta porque alguém o deseja. E porque, de facto, não anda a reboque das tendências da moda arquitectónica. Mas isso, de facto, é muito pouco. Quase nada.


Enfatizo um pouco, talvez demais, a dimensão social da arquitectura, desta arquitectura. Comparo-a um pouco às novelas TVI em que nos aparecem personagens e cenários presos ao tempo do ancien régime: senhorios que mantêm umas criadas internas, algumas delas bem boas, que tratam o menino por “menino”, numa espécie de revivalismo ansioso que nos cobre com um manto diáfano de uma segurança aparente em prime-time.
Nas nossas aspirações frustradas de classe média resignada na “crise”, expectante, refém de memórias do que não viveu e de um tempo que não virá, resolvemos no imediato o problema da identidade que perseguimos, mas não nos resolve o mundo.


Adenda:
Parece-me claro a distância da arquitectura ao design de um desses Minis actuais ou o Beettle. Se há alguma coisa que os une é terem um valor de troca. Mas, apesar de tudo, não é o tráfico do dinheiro que lhes atribui valor cultural.

| João Amaro Correia | 10.1.08 |   | /

unnamed contemporary city


A condição humana e a ciência numa anónima garagem suburbana.

[Primer, Shane Carruth, 2004]

| João Amaro Correia | |   | /

voltar p’ra casa/regressar ao pobre jardim


A duração é o que de nós e em nós produz a significação da realidade. É a organização da vida. Não no tempo dos relógios, não na narrativa linear das coisas que se sucedem nos rumores do jornalismo. A sucessão é aleatória, subordinada ao regime da consciência. É a sucessão das imagens que nos habitam e não dos conceitos que erguemos e reduzem a realidade ao catálogo ambíguo das palavras. Uma espécie de complacência onde o que importa é a aguda consciência do eu no mundo. A suspensão, a epoché, a nova ordem que emerge da supressão da realidade, o caminho de regresso a nós mesmos. O regresso ao eu como registo e fixação e inscrição do eu-no-Mundo. Duração como recuperação e regresso da experiência do real.
A experiência contínua, não sucessiva, irrepetível, dos lugares e das coisas. A experiência e o desejo do consolo do mundo: o belo é a transcendência do mortal ressumado, na sua “inteligência” – racionalidade – à sua condição passageira – animal.
O elogio do tempo, da efemeridade das coisas que permanecem, que nos conduz à união. Ser vivo com as coisas do mundo. O lugar é chíasma, o salto, o abismo e o regresso.

E finalmente:
feliz todo aquele que tem os seus locais de duração;
porque, mesmo que para sempre seja forçado a partir para uma terra estranha,
sem esperança de regressar ao seu próprio ambiente, não será jamais um expatriado.

E os locais da duração também nada têm de notável,
muitas vezes nem estão assinalados em nenhum mapa
ou não têm no mapa qualquer nome.


Um modelo perfeito do mundo inteiro.
[...] a festa de agradecimento da presença no lugar.

Impulso temporal da duração, tu rodeias-me
de um espaço descritível
e a descrição cria o espaço que se lhe segue.


[...] acabo por não ser simplesmente só eu.
A duração é o meu desprendimento,
ele deix
a-me sair e ser.



[Poema à Duração, Peter Handke]

| João Amaro Correia | 9.1.08 |   | /

mestre/discípulo

Ao Lourenço


Longe vão os tempos, em Lisboa, no ofício da arquitectura, onde corriam estórias, lendas, da organização de alguns ateliers – quando o espaço de trabalho era também um conjunto de rituais de passagem da experiência e do saber dos mais velhos, os mestres, para os mais novos, os aprendizes.
Ocorrem-me os ateliers de Teotónio Pereira, no auge com Nuno Porta, laboratório de experiências que ainda hoje nos assombram; Conceição Silva, que agregava à volta alguns jovens turcos, onde sobressai Tomás Taveira; Frederico George, e o prolongamento da academia na praxis – ou a academia como resultado da praxis destes ateliers. Presumo que seriam as excepções.
A regra talvez fosse o atelier ainda não no vão de escada mas talvez no primeiro patim de entrada. Conquanto a natureza humana não se altera no espaço de duas ou três gerações, e admito que não se transforma de todo sem muita porrada e fugazmente, preciosidades vão-se encontrando por essas estradas fora, onde reconhecemos a tutela do Modernismo via International Style via a releitura do cânone a partir destes atelies(-escola).
Os tempos eram outros, e sobretudo, a escala seria outra. A escala da procura, a escala do tempo – quer de projecto e sobretudo da indústria – a escala, porventura mais à nossa medida, à medida do corpo humano, do fazer cidade.
O arquitecto trabalhava sobre o estirador e sobre o estirador se estendiam a esperança numa arquitectura ainda redentora e transformadora, cumplicidades necessárias para fugir ao dictact estético do regime, muitos livros – os poucos que cá chegavam – e muita reflexão sobre a natureza do ofício. Acredito que o estirador fosse o lugar da exaltação e da descoberta.

Exaltação e descoberta encontrei eu quando a minha biografia se cruza com a de Manuel Vicente. Provavelmente o último atelier-escola desta cidade.
“Dia fora, noite dentro”, lá estávamos, até às 4 da manhã a tentar resolver uma casa-de-banho que sabíamos à partida abandonada pelo dono de obra, a alterar estereotomias para adequar o novo azulejo escolhido à geometria do desenho. As horas passavam, entre uma caralhada, um jogo da taça, derrota às mãos do Acosta vituperado pelo Mestre, e muito trabalho e muita conversa sobre o trabalho. Foi com Manuel Vicente que descobri a capacidade transformadora da arquitectura já não sustentada em utopias fúteis e vãs, mas na realidade, mais suja e mais bela que qualquer desiderato intelectual de perfeição. E a radicalidade da beleza é o optimismo da profissão. Foi a minha revista Gina da arquitectura, foi ali, com Manuel Vicente vislumbrei a necessidade de um ofício como o do arquitecto, despojado do totalitarismo estético que hoje nos cerca e assumindo o optimismo numa humanidade que sabemos imperfeita.
Com Manuel Vicente aprendi que não precisamos de matar o pai, ou sequer de lhe prestar freudiana atenção. Porque tudo, mas tudo, pode ser o pretexto para a arquitectura.
Tive a sorte do riso.

| João Amaro Correia | 7.1.08 |   |

poetry don’t work on whores


Se o western já não é um género e mais um tema, a paisagem já não é aberta e redentora mas claustrofóbica, narrativa que declara os contornos psicológicos das personagens.
A Fronteira não é a promessa. A Fronteira é uma paisagem psicológica onde se coreografa a morte anunciada.
O Great Wide Open é a assombrada errância de Jesse James e da lenda em que ele próprio se converteu. É a encenação do destino transcendental.

[O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford, Andrew Dominik, 2007]

| João Amaro Correia | 5.1.08 |   | /