território: democracia?


A localização do novo aeroporto de Lisboa, o encerramento dos serviços públicos de saúde, a revisão da ordem territorial dos tribunais, a abrupta e absurda reintrodução do tema da regionalização numa patética agenda política do PSD, têm um alcance mais largo que cada um destes assuntos de per si e de um putativo impulso reformista deste governo, e remete-nos para a questão da organização do território.
A organização do território e o ordenamento paisagístico são instrumentos essenciais à soberania do Estado e à vigilância da qualidade da Democracia, que tem como consequências o desenvolvimento equilibrado da população sustentado, numa perspectiva liberal, nas vantagens da maior liberdade de escolha e das opções voluntárias e conscientes, de cada indivíduo.
Mais do que mercearia política e impetuosos balancetes orçamentais, está em causa o país que temos e o que desejamos, a degradação da qualidade de vida nas cidades e aldeias, a eficácia da representatividade dos eleitos, a democraticidade das instituições públicas, a soberania de um Estado de Direito democrático e legitimado pela liberdade individual de cada um fazer o que muito bem entender da sua vida, viver onde quiser, encontrar casa – habitar – onde mais lhe convier, sem que tal signifique perda de direitos consagrados na Constituição – ainda que esta apresente uma inclinação socialista anacrónica e absurda - nem, muito menos, o agravamento das condições e do custo de vida. Porque se a política é a arte do possível, a liberdade é o território corajoso das possibilidades abertas a cada um e da responsabilização individual que da liberdade provém.
As políticas de ordenamento territorial dos últimos 33 anos foram desastrosas - o mundo não começou no dia 25 de Abril de 1974, mas o que interessa aqui é a capacidade da democracia, como regime atento à dignidade do homem e às necessidades da liberdade. Ou inexistentes ou ineficazes ou reféns da opacidade de interesses, as políticas públicas de ordenamento permitiram a degradação da qualidade do nosso espaço quotidiano, o desfeamento e destruição da paisagem. Ainda que muitos desses interesses sejam legítimos, só por uma cultura de um pudor pré-moderno em relação ao dinheiro e de uma salazarenta e hipócrita humildade face à riqueza, (no conforto pobrezinho do meu lar,/há fartura de carinho./A cortina da janela e o luar,/mais o sol que gosta dela.../Basta pouco, poucochinho p'ra alegrar/uma existéncia singela.../É só amor, pão e vinho/e um caldo verde, verdinho/a fumegar na tijela.), se insiste no jogo de sombras chinesas nos corredores do poder, em vez do confronto no espaço público, como o deve ser numa democracia liberal, originando a estupefacção dos cidadãos e a conversa de taxista e a descrença nas instituições democráticas.
O resultado é a omissão do território como princípio da soberania do Estado. Sendo que a tarefa que incumbe ao Estado não será ocupar o território, os instrumentos legais de planeamento servem, antes de mais, para projectar a ocupação do território de forma adequada quer às necessidades dos cidadãos, quer à manutenção do equilíbrio social, histórico e cultural das cidades, impedindo o desequilíbrio do plano inclinado do país para o litoral sobreocupado.
Os instrumentos legais de planeamento não servem para políticas de desastroso dirigismo urbano, de acomodação despótica da plutocracia do sector imobiliário em conivência com autarcas distantes de qualquer ideia de urbanidade e qualidade de vida e mais atentos à sazonal “obra feita” coincidente com o calendário eleitoral, nem tão pouco ao imobiliário como fonte de rendimentos das autarquias, (e a revisão da lei de financiamento das autarquias?). Os instrumentos legais de planeamento servem para aumentar a qualidade de vida nas cidades e acudir à desertificação, reduzir o apelo das grandes cidades como lugares únicos de provimento dos desejos dos indivíduos e supressão das necessidades primárias – como a saúde, a justiça, a cultura ou a segurança. Os instrumentos legais de planeamento servem o alargamento da possibilidade de escolha de cada indivíduo de viver, sem prejuízo da qualidade de vida, onde mais lhe apraz. O papel do Estado é assegurar que essa liberdade de escolha é real e consciente, não condenando os indivíduos às grandes cidades, à inexorabilidade da inabitabilidade das grandes cidades, (cada vez mais uma, Lisboa).
Abrir ou fechar um Centro de Saúde, um Tribunal, uma Escola, ou um posto da GNR não é uma operação de aritmética merceeira. A manutenção ou não destes serviços em cidades de menor dimensão, deve responder a uma estratégia de desenvolvimento equilibrado do território e depender do famoso novo modelo de desenvolvimento de que necessitamos. E o desenvolvimento equilibrado do território não é a continuação da presença exorbitante do peso das obras públicas em auto-estradas e vias-rápidas que apenas servem para acelerar a viagem sem regresso para Lisboa ou Porto e o abandono do interior. O Estado não é o móbil da fixação das populações. Habitar deve depender da liberdade e do desejo. E o papel do Estado é assegurar que a liberdade exista e o desejo seja possível. E que o habitar não seja uma condenação a um lugar ou a uma grande cidade que se vai tornando num deserto inabitável cheio de pessoas à volta.
Mas a trágica comédia dos brandos costumes políticos prossegue: um mega aeroporto, “cidade aero-portuária”?!? - inversão provinciana e autárquica, (perdoe-se-me o pleonasmo), do not in my backyard em que se discutiu a paróquia onde o mesmo será implantado e não as consequências brutais de cada uma das localizações num ordenamento equilibrado do território; encerramento acéfalo de urgências e centros de saúde, apenas porque “não dá lucro” numa pretensa e incompreensível tentativa de “racionalizar os meios” - é função do Estado “dar lucro”?; a regionalização, de novo, como cavalo de batalha das clientelas partidárias, ou de estratégias políticas confinadas às partes, ao my backyard, sem qualquer perspectiva do todo que é o território nacional.
Tarde demais perceberemos que a paisagem, o território, é o essencial à qualidade da democracia, numa relação de directa proporcionalidade.


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