Ao Lourenço
Longe vão os tempos, em Lisboa, no ofício da arquitectura, onde corriam estórias, lendas, da organização de alguns ateliers – quando o espaço de trabalho era também um conjunto de rituais de passagem da experiência e do saber dos mais velhos, os mestres, para os mais novos, os aprendizes.
Ocorrem-me os ateliers de Teotónio Pereira, no auge com Nuno Porta, laboratório de experiências que ainda hoje nos assombram; Conceição Silva, que agregava à volta alguns jovens turcos, onde sobressai Tomás Taveira; Frederico George, e o prolongamento da academia na praxis – ou a academia como resultado da praxis destes ateliers. Presumo que seriam as excepções.
A regra talvez fosse o atelier ainda não no vão de escada mas talvez no primeiro patim de entrada. Conquanto a natureza humana não se altera no espaço de duas ou três gerações, e admito que não se transforma de todo sem muita porrada e fugazmente, preciosidades vão-se encontrando por essas estradas fora, onde reconhecemos a tutela do Modernismo via International Style via a releitura do cânone a partir destes atelies(-escola).
Os tempos eram outros, e sobretudo, a escala seria outra. A escala da procura, a escala do tempo – quer de projecto e sobretudo da indústria – a escala, porventura mais à nossa medida, à medida do corpo humano, do fazer cidade.
O arquitecto trabalhava sobre o estirador e sobre o estirador se estendiam a esperança numa arquitectura ainda redentora e transformadora, cumplicidades necessárias para fugir ao dictact estético do regime, muitos livros – os poucos que cá chegavam – e muita reflexão sobre a natureza do ofício. Acredito que o estirador fosse o lugar da exaltação e da descoberta.
Exaltação e descoberta encontrei eu quando a minha biografia se cruza com a de Manuel Vicente. Provavelmente o último atelier-escola desta cidade.
“Dia fora, noite dentro”, lá estávamos, até às 4 da manhã a tentar resolver uma casa-de-banho que sabíamos à partida abandonada pelo dono de obra, a alterar estereotomias para adequar o novo azulejo escolhido à geometria do desenho. As horas passavam, entre uma caralhada, um jogo da taça, derrota às mãos do Acosta vituperado pelo Mestre, e muito trabalho e muita conversa sobre o trabalho. Foi com Manuel Vicente que descobri a capacidade transformadora da arquitectura já não sustentada em utopias fúteis e vãs, mas na realidade, mais suja e mais bela que qualquer desiderato intelectual de perfeição. E a radicalidade da beleza é o optimismo da profissão. Foi a minha revista Gina da arquitectura, foi ali, com Manuel Vicente vislumbrei a necessidade de um ofício como o do arquitecto, despojado do totalitarismo estético que hoje nos cerca e assumindo o optimismo numa humanidade que sabemos imperfeita.
Com Manuel Vicente aprendi que não precisamos de matar o pai, ou sequer de lhe prestar freudiana atenção. Porque tudo, mas tudo, pode ser o pretexto para a arquitectura.
Tive a sorte do riso.
mestre/discípulo
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