revivalismo ansioso


©O Arrumário


Via O Despropósito, via O Arrumário, chegamos a um post, a uma arquitectura e a um arquitecto, que nos lançam no puro debate estético e político que deverá ultrapassar a perplexidade de um primeiro momento e abrir o caminho à discussão quer ideológica, quer disciplinar.
O tom elegíaco do post só é ofuscado pela nostalgia perigosa que as imagens da arquitectura de Thiago Bradell veiculam. Mas concordo na necessidade da crítica a uma obra como esta. Fale-se, discuta-se, debata-se, exponham-se as contradições a que se sujeita uma escolha deliberada de uma discurso arquitectónico reaccionário.

Da arquitectura, como inscrição cultural no território, na paisagem e na sociedade, decorrem naturalmente pressupostos políticos e ideológicos, um pouco à laia de Marx em que a arte exprime um determinado tempo. Um tempo cultural e ideológico.
A nossa avaliação estética enferma-se sempre na consequência da nossa consciência de época, e é a partir daí que se constróem as identidades. A democracia liberal solta-nos dos grilhões igualitários e totalitários e permite-nos aceder àquilo que melhor nos convém. O problema é que desconhecemos o que nos convém quando reconhecemos a vulnerabilidade do mundo e das coisas no tempo instável que atravessamos. E procuramos o enraizamento em pretéritas memórias. Ou antes, traços de memórias do que não se viveu nunca, numa fuga inquieta para o paraíso artificial e perdido.
É este reaccionarismo atravessado de pseudo-sofisticação exemplar da construção de uma mítica ordem de valores sociais e, ao mesmo tempo, da construção e afirmação do indivíduo que as patrocina, promove e habita. Este discurso arquitectónico serve, não inocentemente, à ideologia da segregação e da exclusão. Sustentado apenas em imagens, de aroma rural e do viver habitualmente, que em tempos se tentou confundir com uma inverosímil e uniformizadora Casa Portuguesa, é agora um discurso de exclusividade e sofisticação e distinção, deslocado e desfazado da sua origem social, cultural e económica. Procede de uma sociedade – de um discurso sobre a sociedade - em que tudo seria imaginariamente ordenado, imutável e simples, para acudir a uma sociedade – ou discurso sobre a sociedade - onde tudo se torna vulgar, numa ilusão permanente e frívola de regresso a essa imutabilidade social que a alguns dará confiança. Mas só acessível aos iguais. Aos que procuram um refúgio estético perante a trivialidade com que a democracia liberal colora as coisas. Um nicho de mercado das aspirações nouveau riche avessas à cidade e à sua diversidade e pluralismo.
É um sintoma da perplexidade que experimentamos num mundo inquietante e que não reconhecemos. É a resposta culturalmente pobre, mas segura, às inquietações do ofício da arquitectura, onde não reside nenhuma tentativa de descodificação da complexidade do mundo e abunda a tentação do refúgio num passado mítico.
O modernismo e a excessiva confiança depositada na capacidade do homem regenerar uma sociedade antiga na qual se reconhecia um mundo anti-democrático e de sujeição do indivíduo ao poder, tentou escorraçar qualquer vestígio da história e desse passado sombrio da arquitectura. Agora, cínicos e desiludidos e muito pós-modernos, ou procuramos o deslumbre do novo pelo novo, imersos em tecnologias e sustentabilidades, ou pretendemos recuperar esse passado que agora nos parece glorioso. O desejo de redenção dos nossos medos contemporâneos, a ilusão do passado, em conflito com o presente angustiante, é o tema da arquitectura de Thiago Bradell.
As contradições disciplinares são evidentes. Construir de novo o antigo com a tecnologia do presente é um óbvio paradoxo. O resultado é um postiço. A matéria arquitectónica é manipulada ao sabor da conveniência mesquinha da aparência.
Os vãos, as coberturas, as pérgolas, os pórticos, as chaminés, as cantarias, são a concretização pífia da ordem simbólica de um mundo facilmente reconhecível e apreensível. A escala é a da brutalidade com que se pretende afirmar um paradoxo e proporcional à carteira e desejos do cliente.
Admito que o arquitecto Thigo Bradell seja tão ignorado pela "critica" quanto procurado pelos clientes. E presumo que ao se quedar sentado no seu terraço, com a serra de Sintra à frente, ao final do dia, esse facto deve diverti-lo bastante. E a validade do seu trabalho resulta porque alguém o deseja. E porque, de facto, não anda a reboque das tendências da moda arquitectónica. Mas isso, de facto, é muito pouco. Quase nada.


Enfatizo um pouco, talvez demais, a dimensão social da arquitectura, desta arquitectura. Comparo-a um pouco às novelas TVI em que nos aparecem personagens e cenários presos ao tempo do ancien régime: senhorios que mantêm umas criadas internas, algumas delas bem boas, que tratam o menino por “menino”, numa espécie de revivalismo ansioso que nos cobre com um manto diáfano de uma segurança aparente em prime-time.
Nas nossas aspirações frustradas de classe média resignada na “crise”, expectante, refém de memórias do que não viveu e de um tempo que não virá, resolvemos no imediato o problema da identidade que perseguimos, mas não nos resolve o mundo.


Adenda:
Parece-me claro a distância da arquitectura ao design de um desses Minis actuais ou o Beettle. Se há alguma coisa que os une é terem um valor de troca. Mas, apesar de tudo, não é o tráfico do dinheiro que lhes atribui valor cultural.


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