lugar transitivo

We attain to dwelling, so it seems, only by means of building. Sigamos Heidegger e detenhamo-nos, depois, nessas efabulações humanas, militarizadas primeiro, domesticadas e abandonadas agora, tão ao alcance dos nocturnos ‘terrores repentinos’.
Em Wenders povoam Berlim, a cidade ferida pelo contraditório muro que a atravessa. Um muro de questões ridículas semeadas por homens a que assistem os anjos, excluídos de lhes alterarem o destino – o rapaz não espera para se suicidar. Ilusões incorpóreas de aparência humana, seres reflexo da solidão de Deus e testemunhas da queda humana, também eles desejam com estrondo cair. A fadiga da imortalidade trocada pelo corpo perecível, o corpo lugar transitivo.


[As Asas do Desejo, Wim Wenders, 1987]

Distinguimo-nos deles pelos elementos: observam ainda no seu tempo, que se conjuga sempre no tempo presente, os glaciares a derreterem, as primeiras cidades, sorriem ao verificarem o esforço do homem na Lua ; nós, carne corruptível, esforçámo-nos por abrir na rocha o primeiro abrigo, amontoámos pedras, organizámos o espaço, erguemos a memória dos mortos – a única possibilidade de arquitectura em Hegel -, necessitamos de recato para o sexo.


[Mãe e Filho, Aleksandr Sokurov, 1997]

Dividimos e organizamos o espaço pela linha do Sol. À hierarquia dos negócios diurnos substitui-se a necessidade de apenas uma minúscula parcela desse espaço onde depositemos o corpo.


[Adolf Loos]

| João Amaro Correia | 30.9.09 |   |

av. dom joão ii#2


Labirinto, máscara, espelho: as metáforas de Nietzsche são o canto do lamento e da perda inelutável com que a modernidade o intima. A matéria que enforma o espírito e já não o fulgor impalpável – irracional – na constituição do mundo.
Gémeas, máscara e labirinto, são as imagens, simétricas também, que o filósofo empresta à arquitectura. O disfarce epidérmico e hipócrita ou a abundância labiríntica do pensamento e da construção. Devoção dionisíaca ou ódio aos insuportáveis filisteus no ataque aos refúgios inautênticos do quotidiano.
E depois há os espelhos de Veneza, as suas profundas solidões e depois as cidades, já transformadas em ‘sistemas de solidão’ por Tafuri, na profusão indiferente de sinais e pistas e rastos e traços, elididos a cada colisão fortuita.

| João Amaro Correia | 29.9.09 |   | / / / /

av. dom joão ii


Todos os dias: de método e prática o pragmatismo torna-se metafísica, verdade quase indizível.

| João Amaro Correia | |   | / / / /

asfixia arquitectónica


[Moradia unifamiliar, José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, circa 1980]

A arquitectura como construção cultural.

| João Amaro Correia | 28.9.09 |   | /

'esvaído'


[Estrada Nacional 1, Batalha]


lembro-me das horas sobre o mar
do surdo rumor do casco dos navios
da tua boca colada à paixão dos mapas primitivos.

entretanto o teu corpo corre devagar para o litoral
e as casas por detrás dos cabelos são brancas
loucamente brancas.

no princípio eram as paredes
e havia o teu riso altíssimo encostado aos dias que
morriam nas paredes.

quem destruiu tudo isso?
quem matou as aves nos ramos da tua loucura?

oiço este rio que corre longe de mim longe de tudo
este corcel galopando pelos países -

quem canta esta noite?

entretanto tu atravessas a minha poesia com espadas de
neve
e falas de casas como quem fala do surdo rumor do casco
dos navios -

quem canta esta noite?

e o teu corpo vai correndo devagar para o litoral
e as casas por detrás dos teus cabelos são brancas
loucamente brancas.


[E as casas são brancas loucamente brancas, José Agostinho Baptista]


Ajustar os lugares para benefício dos homens na terra, rasgar pontes, desenhar fachadas ostentatórias, construir para a memória os monumentos e os túmulos, conceber o espaço vazio – a praça – onde os indivíduos passam e se cruzam, organizar os solos, abrir portas e janelas, fazer o espaço indizível: a arquitectura não descansa.



p.s. São poucos os lugares excluídos à asfixia.

| João Amaro Correia | 26.9.09 |   | / /

a casa encantada


[
Spellbound, Alfred Hitchcock, 1945]


Se pretendemos representar espacialmente a sucessão histórica, só o podemos fazer por uma justaposição no espaço; o mesmo espaço não pode ser ocupado por duas coisas distintas ao mesmo tempo. A nossa tentativa parece um jogo ocioso; a sua justificação é apenas esta: mostra-nos como estamos longe de abarcar numa imagem todas as características da vida mental.
Temos ainda que responder a uma objecção. Poderá perguntar-se por que razão escolhemos precisamente o passado de uma cidade como termo de comparação com o passado mental. A suposição de que todo o passado e conservado só é válida também para a vida mental apenas na condição de que o órgão da psique permaneça intacto, de que o seu tecido não seja danificado por traumas ou inflamações. No entanto, as influencias destrutivas equiparáveis àquelas causas patológicas estão sempre necessariamente presentes na história de qualquer cidade, mesmo de uma cidade que, como Londres, praticamente nunca foi invadida por inimigos. O desenvolvimento perfeitamente pacífico de uma cidade inclui a demolição e substituição de edifícios, e é por esta razão que o exemplo de uma cidade não é apropriado para a comparação com um organismo mental.


[Sigmund Freud,
O Mal-Estar na Civilização]


Sigmund Freud
[6.6.1856 — 23.9.1939]

| João Amaro Correia | 23.9.09 |   | / /

trans substantia


Glass and concrete and stone
It is just a house, not a home.



[Glass, Concrete & Stone, David Byrne, 2004]

| João Amaro Correia | 22.9.09 |   |

do pavimento


Johnny's in the basement
Mixing up the medicine
I'm on the pavement
Thinking about the government


[Subterranean Homesick Blues, Bob Dylan, 1965]




A vida minúscula do Outono anunciado, sobre o pavimento de betão a imitar pedra.
São estas coisas concretas que constituem o nosso mundo dado, interligadas de modo complexo e por vezes contraditório. Os fenómenos compreendem outros: a floresta compreende as árvores, a cidade compreende os edifícios. Fenómenos meio de fenómenos: a paisagem; um termo concreto de meio é lugar.
Actos e ocorrências, acontecimentos e incidentes, têm lugar. É difícil imaginar algum acontecimento sem a referência ao lugar. Referimo-nos a lugar como algo mais que uma localização, situação, abstracta: queremos dizer a totalidade feita de coisas concretas que têm substância material, forma, textura, cor.


Atrás, encostado aos sacos do lixo, Allen Ginsberg, HOWLing.



pequeno milagre, para a Clara

| João Amaro Correia | 21.9.09 |   | / /

habitar: passagem


[Distant cloud formation, Axel Antas, 2006]


Acolher o desejo e liberdade humanos. Acção sobre o mundo que tem como fim último situar-nos vigorosa e amorosamente sobre a Terra.
Difícil transformação da terra inóspita à qual o Homem foi lançado por Deus após a traição primordial.

| João Amaro Correia | 19.9.09 |   | / / /

mal respira


O quarto de banho é indeciso, quase morto. As coisas e as paredes cederam, se adoçam e diluem em fumaças. A água esfria ligeiramente sobre a sua pele e ela estremece de medo e desconforto.
Quando emerge da banheira é uma desconhecida que não sabe o que sentir. Nada a rodeia e ela nada conhece. Está leve e triste, move-se lentamente, sem pressa por muito tempo. O frio corre com os pés gelados pelas suas costas mas ela não quer brincar, encolhe o torso ferida, infeliz. Enxuga-se sem amor, humilhada e pobre, envolve-se no roupão como em braços mornos.


[Segue a narrativa e a tristeza pelo corredor.]


[Vila Utopia 10 - Venha Viver numa Obra de Arte, Manuel Aires Mateus + Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector]

| João Amaro Correia | 18.9.09 |   |

o mundo é plano


Como um ícone, a arquitectura – os arquitectos – desejam, através da imagem, erguer-se do tempo que devora e da memória que obscurece. Artefacto da vaidade, liça da trivialidade doméstica – sobre o tecido (metáfora ao gosto da classe) mudo onde se derrama o desejo, a cultura, o mundo, ínfimas nódoas que constituem o quotidiano. A imagem condensada – presumimos que seja essa a pretensão - , pretende ser o século e o lugar, o tempo e o modo, sintetizados numas poucas toneladas de betão e ferro e vidro, tão iguais em todo o lado. É um desejo secreto e não dito, escapar a alguma irrelevância, que não neutralidade, que as coisas devem adquirir.
A arquitectura do ícone - o arquitecto do ícone - detesta a cidade. Exalta-se, inefável e narcísica, na auto-contemplação indulgente a que se permite chamar representação do mundo.


[Lisbon architecture graffiti by Someone - a rogue architecture student?, Pedro Gadanho, via SpaceInvading, via iconeye]

| João Amaro Correia | 17.9.09 |   | / / /

absurdo abrigo#2


- Reuni os pedaços que sobram.
Que nada se perca.
- Ia a passar e resolvi entrar.
- Deus esteja contigo.
- Não me conhece?
- É o filho do lavrador?
- Sou um pedreiro.
Construo casas.
Mas ninguém viverá nelas.
As pessoas querem construí-las elas próprias.
Querem fazê-lo, apesar de não saberem como se faz.
É por isso que muitas vivem em cabanas semi-acabadas.
Outras vivem em ruínas.
A maioria vagueia, sem abrigo.
És uma dessas pessoas que precisam de casa?


[A Palavra, Carl Th. Dreyer, 1955]

para a Teresa

| João Amaro Correia | 12.9.09 |   | / / /

absurdo abrigo


Assim como o espaço rodeado por quatro paredes tem um valor específico, provocado não tanto pelo facto de ser espaço mas pelo de estar rodeado por paredes.


[The Deer Shelter, James Turrell, 2007 + Perto do Coração Selvagem, Clarisse Lispector]

| João Amaro Correia | 11.9.09 |   | / /

interstícios: subsolo


Dir-se-ia, pelo exemplo, que as infra-estruturas são o que de mais importante existe numa cidade.

Lisboa underground, Pedro Mexia.


Viagem entre a vida e a morte pelas entranhas de Lisboa, Alexandra Lucas Coelho.

[Deixem Passar o Homem Invisível, Rui Cardoso Martins, 2009]

| João Amaro Correia | 10.9.09 |   | /

de veneza


Viagens do Próximo Futuro.

[Entrance to the Grand Canal: Looking West, Canaletto, c.1738-42]

| João Amaro Correia | 9.9.09 |   |

o discurso de Lisboa


Paulo Varela Gomes

| João Amaro Correia | |   | /

eco-religião, vício de forma, o mundo todo tão igual em todos os lugares



via after corbu

| João Amaro Correia | 8.9.09 |   | / /