Zaratustra odiava as cidades
Uma das evidências dos lugares é a arquitectura. O espaço construído no lugar, do lugar, que, no refluxo minucioso do seu trabalho telúrico, subterrâneo, co-labora com as pedras que juntamos. É pelo desejo que as mãos fazem coincidir e revelar a geografia com o que transportamos: montanhas e vales; mitologias pessoais e colectivas; experiências do passado que não recordamos; o corpo; a superfície fria da solidão necessária à mais proveitosa reunião gregária. Depois a topologia. A invenção dos nomes e tentativa de dizer o mundo. O combate à resistência do mundo que persiste em ocultar-se e em dizer-se. Talvez menos subtil e volátil que a poesia, é também este o trabalho da arquitectura.
Michel Onfray experimenta dizer os lugares através da(s) viagem(s). Do elogio da viagem. O viajante, nómada que se cumpre no desenraizamento e na afirmação dionisíaca da descoberta de si no mundo largo e vasto e diverso. É a este viajante que cabe contrariar a supressão da História que as cidades globais pretendem contar. É este o Marco Pólo exaltado que conta ao Kahn, de si para si, a beleza que encontra no mundo – e nas cidades. O viajante que celebra o avião ‘que troça do ar’ e ao fazer a volta ao mundo é com o prazer infantil se comove com distância que nos une a todos ao ‘fogo furioso incandescente’ do centro da Terra. O viajante, máquina desejante de Deleuze, ligação e interpenetração dos ‘fluxos contínuos’ que nos re-ligam aos confins do Universo.
A alternância entre partidas e chegadas possibilita uma verdadeira definição do habitar tão caro a Heidegger.
O reencontro. Ítaca excluí o viajante da errância. O Judeu Errante, o condenado ao qual não é permitido fixar-se – habitar - é o que nunca chega a casa, o que nunca acha o sentido da viagem. E do mundo. A viagem - o mundo - só se reconhece na sua plenitude no reencontro com a morada. A casa. O habitar. 'Na arte do habitar concentram-se práticas de arquivo quotidianos, é verdade, mas também se articulam hábitos, rituais sem os quais a angústia não pode ser conjurada, permanecendo e consumindo o corpo e a alma.' É necessária a demora e a ritualização dos dias. Permanecer, ser, junto ao fogo familiar e determo-nos nas leis da hospitalidade que exigem tecto sedentário. O lugar abandonado - para outros se constituírem - reencontra-se no habitar.
Eis a perturbação do viajante que é também política: contra a ponderosas razões (e i-razões), de Estado, sangue, de solo, é o que procura o mundo, dizê-lo de novo, singular, único; é quem perturba e desorganiza a disposição social estabelecida. É o que ama a liberdade, conduz o seu destino pelo Sol e contraria a paz aparente do quotidiano. O estrangeiro que nos outros lugares (do outro) se descobre a si mesmo. ‘Nós próprios, eis a grande questão da viagem.’
O mundo constituído e dito pelos lugares. Anti não-lugares.
[Teoria da Viagem – Uma Poética da Geografia, Michel Onfray]
para o António
A alma corajosa de um revolucionário
Cunningham costumava dizer que as suas danças habitavam o palco como uma rua é habitada por muitas pessoas: deslocam-se em velocidades diversas; avançam, podendo, imprevisivelmente mudar de direcção ou parar; podem aproximar-se ou afastar-se umas das outras, olhar-se ou ignorar-se; cada uma ocupa um espaço próprio e traça um percurso diferenciado, podendo, por sua vez ser vistas por vários observadores, de várias perspectivas. Nesta imagem, de uma clareza e de uma simplicidade desarmantes, convergem todos os traços que identificam a revolução cunninghamiana: a liberdade do coreógrafo relativamente aos imperativos da subjectividade; a liberdade dos intérpretes relativamente ao imaginário do coreógrafo; a liberdade do espectador relativamente à escrita coreográfica do criador e à interpretação do intérprete.
Cunningham libertou o movimento de motivações expressivas ou narrativas, o que lhe permitiu trabalhá-lo de forma objectiva, ou seja, lançar-se no caminho da descoberta das possibilidades de modelação da própria matéria da dança, independentemente de motivações psicológicas e emocionais; Cunningham encontrou novas formas de trabalhar e usar o corpo, valorizando as articulações e as combinações complexas; Cunningham instaurou uma nova representação do espaço e uma nova concepção do tempo; e instituiu uma nova relação entre os diferentes elementos do espectáculo (música, cenário, figurinos e luzes).
Se hoje é natural que no espaço do palco todos os pontos, todas as direcções e todos os percursos sejam relevantes; que os vários elementos do espectáculo possam ser criados autonomamente, sem subserviência ilustrativa de qualquer um relativamente aos outros e que, ainda assim, se relacionem de forma coerente, quer estética quer funcionalmente; que, num espectáculo, as relações entre os bailarinos sejam de igualdade, sem hierarquia de papéis ou lugares; que o espectador possa escolher a forma como quer ver a dança, deambulando e fazendo os seus próprios enquadramentos, é porque Cunningham tornou isso possível.
O uso do acaso como meio de criação de formas para além daquilo que imaginamos ser possível e a ruptura com os imperativos de um uso do espaço-tempo tributário de uma tradição clássica e com os códigos tradicionais de construção coreográfica transformaram as danças de Cunningham em universos em expansão, precipitando-nos para o infinito, para o desconhecido, confrontando-nos com a desmesura do mundo. Fê-lo com tranquilidade, usando um movimento sem conflito nem resolução, sem causa nem efeito. Fê-lo com a energia e a constância de uma alma corajosa.
Maria José Fazenda in Público, 28.07.2009, versão não editada.
interiores – uma teoria da catástrofe
Um homem oculta à mulher e aos filhos a sua nova condição de desempregado. Uma questão de honra numa sociedade de códigos rígidos e rigorosamente ordenada onde cada indivíduo assume o seu papel sem grandes questões existenciais. O tradicional, no comportamento, o moderno, que invade e desestabiliza a ordem aparente do quotidiano. A acção é o questionamento – implosão? - dos valores sociais da sociedade japonesa.
A ordem, o espírito desta sociedade, é visível na curta duração da sequência do trânsito sobre os infinitos viadutos da cidade. Tóquio flui à cadência do disposição secular das regras. A vida programada confronta-se com o acidente contemporâneo. A crise económica, a guerra no Médio-Oriente, o mundo em volta da implosão familiar.
É Kenji, o filho mais novo e espírito independente, que persiste em tocar piano, Claire de Lune, da lua que na sequência imediatamente anterior ilumina num fugaz instantâneo a mãe, o ponto de fuga. Pelo amor à liberdade e ao desejo.
Regressa-se a casa, depois da noite que todos passaram fora.
E aquele abrigo na praia acidental?, não será o mesmo do Deserto Vermelho?
[Sonata de Tóquio, Kiyoshi Kurosowa, 2008]
para o David
espaço político - do facebook ao campus da justiça
As notícias de Teerão disseminam-se através Facebook, Twitter, blogs, sms. A organização da resistência, virtual, expande e convoca e provoca a luta, real, pelo espaço público da cidade iraniana. O confronto violento entre as milícias Basij e os manifestantes da oposição ocorre no domínio físico da polis depois de disseminada no reduto da internet. O espaço público, da democracia e do confronto livre, manifesta-se, experimenta-se e atravessa o Facebook e a Praça Enghelab num trânsito de difícil controlo. Entre a rede e a arquitectura, entre a ininterrupta ligação e o espaço físico dividido – a arquitectura na sua ontologia é a compartimentação e hierarquização - a cadeia dos acontecimentos cede dos ecrans vertiginosos à luta corpo-a-corpo da e na rua. A arquitectura, como escolha, decisão, é o vínculo ideológico com o espaço. Um modo político de o nomear.
O carácter representativo da arquitectura é (sempre) manipulado ao serviço das ideologias: o Reich e a trágica fantasia da Welthauptstadt Germania perpétua, num discurso imutável e facilmente reconhecível pelas gerações; Stalin e a ostentação dos feitos heróicos soviéticos – em reacção à utopia imediatamente anterior da modernidade inapelável do Palácio dos Sovietes e da antropologia optimista do construtivismo; Wright e a quimera do automóvel que transportaria em si a liberdade individual; Le Corbusier e o homem novo na cidade radiosa, asséptica e monstruosa; Mies Van der Rohe e o encanto pela ‘transparência’ das grandes corporações capitalistas; o paroxismo whore de Philip Johnson no frontão furado do AT&T, Rem Koolhaas e a mala de truques do marketing e do bombardeamento imagético; da Cidade Universitária ao Portugal dos Pequeninos; de Raul Lino ao Bairro das Estacas. Uma lata de sopa de tomate, uma revolução. A moral é a amoral. Mas é da essência da arquitectura não ser neutra e ter com a realidade relação expressiva e comunicativa. E transformadora.
Recém inaugurado, o Campus da Justiça, é o nosso mais recente equívoco arquitectónico, político e simbólico. A começar pelo nome, Campus da Justiça, que nos transporta a um ágora específico onde é concentrada a administração da justiça democrática que o deveria ser por todo o território servido pelas leis do estado democrático. Não será preciosismo, o nome. Como o não é a referência à apressada reconversão programática de um complexo estruturado para receber escritórios e serviços num lugar que deveria revestir-se de alguma gravitas –aludir exclusivamente as especifidades programáticas, esse diktat muito moderno, não será o melhor trilho crítico - , ou o fervor, quase libidinal, da ‘eficácia’ concentracionária dos serviços judiciais que revela a profundidade extensa da ideologia da ‘técnica’ que devora qualquer hipótese de uma ideologia de Cidade aberta.
Plantado na monocultura de serviços do Parque das Nações, num território adormecido e instrumentalizado pelo zoning negligente do nosso urbanismo tardo-moderno, afastado do núcleo denso da cidade – e a cidade é densidade, multiplicidade e diversidade – cresce, longe da cidade e dos homens que supõe servir.
A arquitectura segue a rota do ‘tardo-capitalismo’ nacional e desta maneira impensada de construir as cidades. Umas mediocridade em ‘volumetrias’ ‘puras’, ‘transparentes’ – como os escritórios?, como a justiça de uma sociedade aberta? - ‘áreas generosas’, ‘open-spaces’, ‘arranjos exteriores’ de uma austeridade vulgar e comezinha.
O boicote de um grupo de juízes à inauguração do Campus da Justiça foi, antes de tudo, uma crítica à arquitectura e à polis que nela tem lugar e que reciprocamente a ergue. (Foi ao mesmo tempo comovente e confrangedor assistir ao depoimento de um juiz que trouxe consigo umas cadeiras antigas do Tribunal da Boa Hora na tentativa de acertar com o ‘espírito do lugar’.)
Poder-se-ia chamar aqui Habermas ou Bauman ou Jameson ou Vidler ou qualquer outro pensamento contemporâneo do espaço público e das relações essenciais entre o espaço, na sua conformação, e a qualidade da democracia, mas não se exagere. O Campus da Justiça é capaz de ser apenas mais um sintoma do deslumbramento tecno-provinciano do Primeiro-Ministro. Que nos representa exemplarmente.
para o Domingos Miguel
metanarrativa[s]
Imagens de máquinas vs máquinas de imagens.
61 essential postmodern reads: an annotated list.
[Pruitt-Igoe, St. Louis, 1954.1955]
man on the moon
Quando eu me encontrava preso
Nas celas de uma cadeia
Foi que eu vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim coberta de nuvens
Terra, Terra
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Ninguém supõe a morena
Dentro da estrela azulada
Na vertigem do cinema
Manda um abraço pra ti, pequenina
Como se eu fosse o saudoso poeta
E fosses a Paraíba
Terra, Terra
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Eu estou apaixonado
Por uma menina terra
Signo do elemento terra
Do mar se diz terra à vista
Terra para o pé, firmeza
Terra para a mão, carícia
Outros astros lhe são guia
Terra, Terra
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Eu sou um leão de fogo
Sem ti me consumiria
A mim mesmo eternamente
E de nada valeria
Acontecer de eu ser gente
E gente é outra alegria
Diferente das estrelas
Terra, Terra
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
De onde nem tempo nem espaço
Que a força mande coragem
Pra gente te dar carinho
Durante toda a viagem
Que realizas no nada
Através do qual carregas
O nome da tua carne
Terra, Terra
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
"Nas sacadas dos sobrados
Da velha São Salvador
Há lembranças de donzelas
Do tempo do imperador
Tudo, tudo na Bahia
Faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito"
Terra,Terra
Por mais distante o errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
[Caetano Veloso, Terra, 1986]
câmara café de lisboa
- Os tipos do Porto pensavam que eu era de Lisboa. Tive que lhes dizer ‘oh meus amigos, aquilo que mais gosto em Lisboa são as duas pontes e o aeroporto’.
- A única coisa de jeito aqui em Lisboa é o casino. E nem é bem em Lisboa. É no Estoril.
O diálogo, impregnado de uma profundidade midlle-class-viril-imbecil, entre dois cidadãos que trabalham em Lisboa – presume-se que vivam em Lisboa ou num dos seus subúrbios – que recorrem à bazófia altiva como subterfúgio da desresponsabilização. Vivem num lugar que lhes não interessa que não seja pela extracção de uma parca prosperidade que lhes garanta sustento e visitas ao casino. Ostentam o desprezo pela cidade no elogio da sexta-feira escapista: ‘que nunca mais chega’.
‘Somos todos de fora de Lisboa’, diz-se. Poucos somos os de terceira, quarta, geração de lisboetas. Muitos por necessidade, poucos pelo desejo. (As razões explicam-nas facilmente a economia, a sociologia, o deformado desenvolvimento regional e a ausência de coesão territorial. E a cultura.) A maior parte indiferente, legitimamente indiferente, diga-se, à cidade. Porque a cidade, esta Lisboa contemporânea, é mero dispositivo utilitarista. Porque é reduzida a uma cidade de serviços, a um imenso escritório de trânsito congestionado em frente ao Mar da Palha.
Deste oceano de desprezo releva o deserto, a apatia, a renúncia à polis e à comunidade. Se não somos lisboetas, também já não somos da ‘terra’. O que é um óptimo motivo para que a quem tudo o que seja excluído do umbigo seja também indiferente e irrelevante. Mesmo que seja o lugar onde passa a maior fatia das horas do dia.
Falha o desejo de a habitar (plenamente), falha o desejo de a transformar.
cidades
7. Depois, é preciso ter em grande consideração o bem comum. Amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem comum. É o bem daquele «nós-todos», formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social. Não é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem parte da comunidade social e que, só nela, podem realmente e com maior eficácia obter o próprio bem. Querer o bem comum e trabalhar por ele é exigência de justiça e de caridade. Comprometer-se pelo bem comum é, por um lado, cuidar e, por outro, valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade. Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidades reais. Todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de incidência na pólis. Este é o caminho institucional — podemos mesmo dizer político — da caridade, não menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai directamente ao encontro do próximo, fora das mediações institucionais da pólis. Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político. Aquele, como todo o empenho pela justiça, inscreve-se no testemunho da caridade divina que, agindo no tempo, prepara o eterno. A acção do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana. Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações, para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras.
[Apocalipse de Saint-Sever, Grégoire de Montaner + Caritas in Veritate, Bento XVI, 2009]
the end is the beginning is the end
Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de onde saíste: porque tu és pó e em pó te tornarás.
Gen 3,19
[Am Anfang, Anselm Kiefer/Jörg Widmann, 2009]
A arte do possível – arquitectura hardcore
A democratização dos processos e experiências cognitivas é o lugar de todos os paradoxos e de uma certa angústia face à emergência de novos paradigmas ou ausência destes. A Escola perde o seu carácter doutrinário e ideológico (como ainda e sobretudo no Movimento Moderno se observa), e torna-se o território por excelência da apreensão dos múltiplos caracteres de diversas ordens que confluem no projecto. Projecto como processo, lugar onde operam o subjectivismo individual (o ideal do artista que não está sujeito quer às condições quer às exigências do cliente, que advém da libertação individual do romantismo) e o empirismo na abordagem do património histórico e cultura da arquitectura. O que durante a aprendizagem da disciplina é positivo, desde o desejo de experimentação, da alegria da descoberta inerente a cada projecto, pode tornar-se, na passagem a uma prática efectiva na sociedade, um problema para os “jovens-arquitectos”, se esse acomular de experiências não for apoiado por um olhar objectivo à realidade.
Desde a falência das utopias modernistas e sobretudo neste tempo pós-modernista que a prática da arquitectura iniciou um processo de se (re)pensar, processo esse que percorre caminhos mais ou menos seguros, indo colher informação a fontes mais ou menos distantes da tradição arquitectónica. Em todo o caso, e para o que nos importa aqui, o caminho dos “jovens-arquitectos” na realidade portuguesa, parece-nos que o problema é menos estético e mais ético, mais programático e menos de gosto.
É quase consensual que a realidade em que os recém-arquitectos vão intervir não é a mais favorável, é talvez a mais dura com que sucessivas gerações de arquitectos se têm vindo a deparar. Partindo do pressuposto desta realidade onde é cada vez mais difícil a intervenção do arquitecto, é necessário averiguar em que momentos do projecto as condições práticas se tornam de uma extrema complexidade para lhes poder responder coma necessária eficácia e a desejada poética.
O que agora se apresenta como uma preocupação do poder político, o estado das cidades e o ordenamento do território, por todos afirmado como caótico, talvez não seja mais que a consequência de um clima de insuportável irresponsabilidade com que se foi construindo ao longo dos anos em Portugal. Isto e o acordo tácito entre o sector da construção e as instâncias políticas de decisão em fundar o crescimento económico do país através do incremento da construção. Assistimos agora à derrocada desta situação com um certo receio de vir a ser um pouco tarde... julgamos que aqui a responsabilidade é também dos arquitectos, por actos ou omissões. Do que nos foi dado a observar, a generalidade dos promotores carece de uma cultura social, para não dizer arquitectónica, subordinada ao interesse do máximo lucro em detrimento da consciente (generosa?) intervenção na paisagem das nossas cidades. Noutros termos, como consumidores de arquitectura que todos somos, não temos tido a suficiente exigência que poderia ser impeditiva deste panorama. É o exercício pleno do direito de cidadania que se deve sobrepor às “pressões do mercado”. As consequências destas observações são óbvias e contaminam, quando não determinam, o próprio projecto. Se é verdade que a arquitectura é a “construção do sonho” não é menos verdade que pela relevância social, económica e cultural, a arquitectura pode ser um instrumento de transformação da própria sociedade a vários níveis: do interesse e consequente (re)conhecimento da contemporaneidade arquitectónica por parte dos cidadãos, da melhoria da qualidade da arquitectura e das cidades, ao benefício imediato no modo como se vive o espaço que é o quadro primordial da nossa existência.
As possíveis estratégias a tomar face a esta situação podem decorrer de uma tentativa de resistência que o próprio projecto deve abraçar. Sendo que cada projecto é um problema diferente e com uma multiplicidade de respostas possíveis, é imperativo um rigoroso olhar para a realidade social, económica e cultural em que está compreendido. O lugar, o programa, o cliente, o orçamento disponível, a má qualidade da indústria da construção... tudo pode servir de pretexto para o encontro das soluções apropriadas segundo a criatividade do arquitecto. A ambição desta resistência reside no desejo de transformar aquilo que sem o esforço criativo poderá resultar banal, anódino, despojado de qualquer significado (cultural, social, simbólico), e que se traduz no não enriquecimento quer da experiência pessoal quer do património cultural. Isto implica um esforço prático decorrente dos escasso meios e das limitações que são impostos ao arquitecto mas com os quais ele terá de trabalhar. Nesta perspectiva, trabalhar tem um sentido operatório e uma conotação produtiva quase artesanal. Transformar já não exibe o carácter redentor apontado pelas vanguardas do início do séc.XX. O que se deseja é a inclusão das adversidades e felicidades que quotidianamente acontecem como matéria-prima da própria invenção arquitectónica. Uma abertura aos condicionamentos que se sobrepõem no estirador e que invadem o papel branco mesmo antes do pensamento da arquitectura. Um exercício que resulte no reconhecimento do papel do arquitecto e no pluralismo de das arquitectura propostas. Numa arquitectura que não se desmorone no primeiro confronto com o mundo e a multiplicidade de escolhas que nele ocorrem. Uma arquitectura que seja o palco da liberdade que essas escolhas implicam.
É talvez um exercício de paciência que cada vez mais se exige ao recém-arquitecto, um jogo onde todas as subtilezas podem adquirir uma importância essencial. É a partir de um olhar objectivo sobre a realidade que cada um pode construir o seu caminho, ajustado a essa mesma realidade. Uma consciência que ajuda a ultrapassar alguns mitos como a originalidade, a novidade, a futilidade do gesto espectacular, mas mais eficaz na resolução dos problemas com que a sociedade se confronta. Uma possibilidade de sustentar as diversas estratégias de aproximação ao projecto, explorando as possibilidades técnicas e sociais que a contemporaneidade nos oferece. A prática da arquitectura com o inerente esforço crítico que compreende não pode ficar refém das contrariedades do meio em que se insere, mas partir deste para ser a interferência na máquina do complexo socio-cultural em que vivemos em benefício deste. Convocando os mestres-heróis do modernismo, a arquitectura pode concorrer para a transformação social. É aqui que reside a subversão generosa do sonho de querer ser arquitecto.
[in nº205 Jornal Arquitectos, primeiro post, faz seis anos. tão jovens e inocentes.]
o estado do mundo
De algum modo podemos intervir no futuro. O tempo hoje é tão comprimido e tão veloz que a capacidade em intervir directamente no presente está muito relativizada…
António Pinto Ribeiro in Arte Capital
Pina já não dança nas cidades
Luminosidade, harmonia, leveza e prazer eram as “propostas para o próximo milénio” que Pina Bausch e os bailarinos do Tanztheater Wuppertal escreviam em Masurca Fogo, a obra que no dia 11 de Maio de 1998 era estreada no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Nela, ganhavam preponderância sobre os coros e sobre a teatralidade os solos de dança virtuosos, deslizantes e orgânicos, interpretados por bailarinos que se precipitavam da rocha aveludada que constituía o cenário, ou que dançavam fundidos nas imagens do mar ou de flamingos projectadas no palco. Nela, a relação de incomunicabilidade e de conflitualidade entre os homens e as mulheres, que se tornara num motivo temático e coreográfico-teatral bauschiano, dava também lugar a encontros harmoniosos e serenos, tão evidentemente expressos nos pares de dança que ao som de uma morna serpenteavam pelo palco — imagens de felicidade com que o realizador Pedro Almodóvar termina o seu filme Fala com Ela — , ou que ocupavam os corredores da plateia com o seu lento rodopiar, embalando-nos também a nós, espectadores, e nos fortes abraços que, no final, se desfaziam com os corpos, dois a dois, deitados serenamente uns sobre os outros.
Foi com um espectáculo em que, simultaneamente, as representações do mundo e os elementos coreográficos se transformaram que Bausch respondeu ao convite que lhe foi feito pela Expo’98 para a criação de uma obra original a partir de imagens e movimentos captados por si e pelos seus bailarinos em Lisboa, durante uma permanência e um workshop na cidade (o filme Lissabon/Wuppertal/Lisboa, de Fernando Lopes, é um poético registo desta estada). A coreógrafa seguia assim um modelo de criação que tinha iniciado em Roma, com Viktor (1986). Projectos semelhantes concretizaram-se na Sicília (Palermo, Palermo, 1989-91), em Madrid (Tanzabend II [Noite de Dança II], 1991), em Viena (Ein Trauerspiel [Uma Tragédia]; 1994), em Hong Kong (Der Fensterputzer [O Lavador de Vidros], 1997), no Brasil (Água, 2001) ou no Japão (Ten Chi [Céu e Terra], 2004).
Philippina Bausch nasceu em 1940 e cresceu em Soligen, em Ruhr, na Alemanha, onde os pais tinham um restaurante — as suas memórias de uma parte da infância passada neste lugar são evocadas em Café Müller (1978), uma obra-prima em que os corpos, cegos, abandonados e trôpegos, são a pungente expressão da solidão. Estudou dança com o importante coreógrafo herdeiro da tradição da ausdruckstanz (dança de expressão) alemã, Kurt Jooss, partindo mais tarde para Nova Iorque para estudar com figuras pioneiras da modern dance, como José Limón ou Paul Taylor. Quando regressa a Essen, ingressa no Folkwang Tanz Studio, grupo de que viria a assumir a direcção artística, em 1969, grupo para o qual cria as primeiras coreografias, Fragment (1969) e Im Wind der Zeit (1969) [No Vento do Tempo].
Em 1973, foi convidada a dirigir o Ballet de Wuppertal, tornando-se, sob a sua direcção, uma companhia autónoma e de autor, o Tanztheater Wuppertal Pina Bausch. Apresenta novas versões de Iphigenie auf Tauris [Efigénia em Táurida] (1974), sob música de Gluck, de Blaubart [O Castelo do Barba Azul] (1977), uma ópera de Béla Bartók, ou de Orpheus und Eurydike (1975), também sob música de Gluck, e a sua extraordinária versão de Le Sacre du Printemps (1975). A originalidade do trabalho de Bausch, que resultava, ao nível coreográfico, de uma articulação singular das linguagens da dança de expressão alemã e das técnicas da dança moderna americana, e, ao nível temático, da expressão da conflitualidade entre homens e mulheres, da solidão, do medo, do desespero, e do seu envolvimento crítico com formas de exibicionismo e de mercantilização dos corpos, eram bem evidentes nestas obras. Em 1976 cria Os Sete Pecados Mortais (1976), com música de Kurt Weill e texto de Bertolt Brecht. Esta é uma obra paradigmática das novas visões do mundo que Bausch traz para o palco da dança — Ana I (a agente) familiarizada com as leis de mercado prepara a irmã, Ana II (a artista), para o papel de objecto sexual —, mas também da nova linguagem da coreógrafa, pois aqui o bailarinos dançam, cantam e falam.
Bausch inventou um reportório coreográfico de movimentos e gestos, ampliados significativamente pela utilização da voz, aptos a traduzir para o palco constelações de experiências humanas. A partir de 1976 abandonou também a composição coreográfica tradicional e construiu as suas peças acumulando sequências descontínuas, segundo um procedimento próximo do da montagem cinematográfica ou do teatro de revista — sendo que os temas musicais passaram também a ser alinhados de forma paralela —, de que obras como Kontakthof [Lugares de Contacto] (1978) ou 1980 Ein Stück von Pina Bausch [1980, Uma peça de Pina Bausch] são magistrais exemplos.
As inovações de Bausch estenderam-se ao processos de criação, integrando as representações das experiências dos bailarinos nas próprias obras. Num processo baseado na improvisação, lançava aos intérpretes questões sobre recordações de infância, países de origem, emoções, relações entre homens e mulheres, às quais os intérpretes respondiam através de movimentos, palavras ou outras soluções performativas. Bausch compunha a obra a partir delas, acrescentando outros elementos coreografados por si.
A coreógrafa construiu peças ancoradas nas experiências humanas, restituindo aos bailarinos espaços reais dessas vivências: montanhas de rosas vermelhas, superfícies de cravos, de relva ou de terra, rochedos, fossos cercados de colinas, palmeiras, uma rua ou uma sala de cinema, um café repleto de cadeiras, muros de pedra que se desmoronam são alguns dos exemplos dos cenários construídos por Rolf Borzik e, a partir de 1980, por Peter Pabst.
A bailarina e coreógrafa, que também participou no filme E la nave va (1983), de Frederico Fellini, no papel de uma lúcida cega, introduziu, nos finais dos anos 1970 um novo paradigma na história da dança ocidental, aquele que fez de uma renovada relação entre a dança e o teatro um imenso campo de possibilidades de expressão da experiências humanas. Fundamental para este revolução foi a sua motivação artística: “interesso-me não pela forma como as pessoas se movem, mas por aquilo que as faz mover”, como afirmou tantas vezes e materializou, sempre, em cada uma das suas obras, independentemente das expressões que encontrou para o fazer.
[versão integral]
Maria José Fazenda, Público, 1.07.2009
p.s. mais um orbituário e ficas tu a tomar conta da casa.