Danças que inundam as ruas
Deslocações como o “moonwalk”, piruetas velozes (triplas ou quádruplas) e suspensões súbitas dos movimentos (“freezes”) são alguns dos traços coreográficos que constituem o coração estilístico da dança que Michael Jackson e os coreógrafos que com ele colaboram, como Michael Peters e Vincent Paterson, trouxeram para os palcos e construíram para as câmaras.
Em movimento, deslizando, rodopiando, golpeando, ou em pose, em virtuosos solos, ou liderando poderosos grupos, são dois os contributos essenciais que a dança de Michael Jackson deu para os espectáculos musicais ao vivo ou para os vídeos musicais. Por um lado, trouxe vários elementos da tradição da dança afro-americana para a “pop”, visível no isolamento dos movimentos e na energia sincopada. Por outro lado, insuflou os seus novos elementos coreográficos na “street dance”, um termo que designa a dança que sai dos palcos ou dos salões e vem para as ruas das cidades, seja aí apresentada ao vivo ou filmada.
As fontes mais importantes em que a ideia do seu contributo histórico para o desenvolvimento destes dois géneros se sustenta são os seus vídeos dos anos 1980. É aí que se reconhecem os elementos novos, os traços herdados, transformados e inseridos em situações novas, e os tributos aos grandes autores do cinema musical ou dos espectáculos da Broadway, que lhe servem de referência.
Misturando, sob um nova forma e num novo contexto “cénico”, a “breakdance”, a dança rock e a disco, o corpo de Jackson e os corpos dos bailarinos que lidera parecem matéria em perigo de explosão. “Billie Jean” é, pelo carácter demonstrativo da sua dança a solo, um reservatório de observação do seu estilo de movimento, como se de um Fred Astaire dos anos 1980 se tratasse, calçando sapatos com suaves solas de pele e tendo inscrito no seu corpo a agressividade que circula nas ruas das urbes. Verdadeiramente agonística é a dança de “Beat it”, uma luta de gangs, pacificada, no final, e que evoca os poderosos coros de “West Side Story”. Em “Thriller” é assinalável a utilização que é feita das potencialidades narrativas da associação música-canção-dança. E o movimento, pela sua componente expressiva, desempenha nesta espécie de mini ficção em filme um importante papel na narração. A luta está também presente “Bad”, através dos movimentos rápidos, curtos e directos, como se, quer dos pés, das ancas, dos ombros ou do pescoço, de qualquer parte do corpo, isoladamente, se soltassem golpes fatais. Pelo contrário, em “The Way You Make Me Feel” é a sedução que conduz a luta, desta vez entre um homem e uma mulher, e cujo final, um abraço cuja força metaforicamente sublinhada por uma torrente de água, lembra os corpos inundados de “Singin’ in the Rain”, mas deslocados para um cenário profusamente marcado pelos “grafittis”.
Maria José Fazenda, Público, 27.6.2009
o tempo das cerejas: política internacional
[Snow Series, Abbas Kiarostami]
o lugar interior do real
Posso chegar a um espaço vazio qualquer e usá-lo como espaço de cena. Uma pessoa atravessa esse espaço vazio enquanto outra pessoa observa – e nada mais é necessário para que ocorra uma acção teatral.
[...]
No teatro, cada forma alguma vez criada é mortal; todas as formas precisam de ser recriadas com as marcas das influências de tudo o que as rodeia. Neste sentido, o teatro é relatividade. E apesar disso, o grande teatro não é uma casa de moda: há elementos perpétuos que são recorrentes e determinados elementos que estão sempre subjacentes à actividade dramática. A armadilha mortal consiste em acentuar a distinção entre as verdades eternas e as variações superficiais: esta é uma atitude de snobismo subtil que se revela fatal.
[O Espaço Vazio, Peter Brook, 1968]
É da acção da arquitectura a revelação – desocultação – do ‘espaço vazio’, teia invisível, que nos liga ao mundo. É aí que somos no mundo.
À manifestação minuciosa da nossa diferença, segue-se a distância percorrível, mais ou menos feliz, mais ou menos dolorosa, do que nos une.
para o Rúben Tiago
da existência das ordens profissionais e também da dos arquitectos
Sou licenciado em Economia. Tenho dois mestrados e um doutoramento em Economia. Sou professor de Economia numa universidade pública. Sou membro da Associação Económica Europeia. Tenho artigos publicados em revistas científicas internacionais de Economia. Com todas estas qualificações, o Estado português não me reconhece como economista. Porquê? Porque não estou inscrito na Ordem dos Economistas.
Quais as consequências de não estar inscrito na Ordem? De acordo com artigo 4.º dos seus Estatutos, não posso fazer “análises, estudos, relatórios, pareceres, peritagens, auditorias, planos, previsões, certificações e outros actos, decisórios ou não, relativos a assuntos específicos na área da ciência económica”. Resta-me, sempre que quiser elaborar um destes estudos, pedir a um meu aluno que assine por mim.
A Ordem dos Economistas não é um exemplo isolado. A pouco e pouco, Portugal tem-se tornado num estado corporativo. Advogados, arquitectos, biólogos, enfermeiros e muitos outros organizam-se em torno de corporações profissionais. Há ainda Pró-Ordens para psicólogos e professores.
Por que existem estas corporações profissionais? Tipicamente, argumenta-se que determinadas actividades são muito exigentes e especializadas e que os prejuízos que maus profissionais causariam à sociedade seriam tremendos. De seguida, diz-se que os profissionais no activo estão em melhores condições para definir os requisitos da sua profissão.
Esperar-se-ia que as Ordens Profissionais e outras corporações dessem formação adequada sobre o exercício da profissão e que procedessem a um controlo de qualidade, punindo infracções a códigos deontológicos. É isto que observamos? Claramente, não. Há uns anos, por exemplo, não houve qualquer condenação aos médicos que passaram centenas de atestados a alunos de Guimarães para faltarem aos exames. Há uns dias, a Inspecção-Geral de Saúde concluiu que a um número alarmante de baixas médicas nem sequer correspondia um único registo clínico do “doente”. De ambas as vezes, a reacção da Ordem dos Médicos foi dizer que os médicos não são polícias. Se nem com estes escândalos mediáticos as Ordens actuam, o que esperar no dia-a-dia? Na verdade, em vez de garantirem as melhores práticas, as Ordens protegem, de uma forma autista, os seus associados.
A única acção visível da Ordem dos Médicos tem sido a de limitar o número de médicos. Desde que existe, tem-se esforçado por impedir a abertura de novos cursos de medicina e o aumento do número de vagas nos cursos já existentes. Quase sempre com sucesso. Os farmacêuticos têm conseguido impedir a abertura de novas farmácias. Mesmo a ténue e meritória liberalização ensaiada pelo governo Sócrates serve os interesses das farmácias instaladas. A Ordem dos Notários quer o monopólio da autenticação de documentos. A Ordem dos Arquitectos recusou-se a reconhecer o curso de Arquitectura da Universidade Fernando Pessoa. A Ordem dos Revisores Oficiais de Contas exige uma licenciatura adequada e obriga os candidatos a sujeitarem-se a quatro exames escritos e um oral. Cada exame custa 300 euros. Antes dos exames os candidatos são aconselhados a frequentar um curso de preparação com quatro módulos, que decorre ao longo de um ano. O custo de cada módulo é de 1650 euros. A pequena minoria que passa nos exames tem ainda de fazer um estágio de três anos com remunerações baixíssimas.
As estratégias variam, mas o objectivo é o mesmo: criar barreiras hercúleas que impeçam o acesso à profissão. É este o papel das Ordens. Restringir a oferta e a concorrência. Os efeitos de tamanhos obstáculos são óbvios. Já em 1776, Adam Smith escrevia que "os privilégios exclusivos das corporações, os estatutos de aprendizagem, e todas as leis que, em empregos determinados, restringem a concorrência (...) tendem a sustentar salários e lucros a um nível superior à sua taxa natural. Tais sobrevalorizações podem durar tanto quanto as regulamentações que lhe deram origem".
Não vale a pena ter ilusões. As Ordens, e outras corporações profissionais, servem para garantir remunerações anormalmente elevadas aos seus associados, perpetuando os seus privilégios, prejudicando e subjugando o interesse público a interesses privados.
Luís Aguiar-Conraria
via De Rerum Natura