“A primeira prova da existência do indivíduo é a ocupação do espaço.”
Le Corbusier
A metáfora arquitectónica da representação do pensamento que é a imagem do labirinto não poderá reduzir-se apenas a esse estatuto de representação: uma possibilidade de pensamento como um caminho que é criado, desbravado numa teia complexa de possibilidades. Tal como para a arquitectura e para o espaço urbano que a cidade propõe através das múltiplas arquitecturas, como para o pensamento humano, trata-se de descodificar e dar um sítio às coisas: dar lugar no espaço. Estabelecer um espaço que antes não existiu, faze-lo relacionando-o com um antes (o que já foi descoberto e os nós do enigma já desvendados), e com o depois (os nós a partir dos quais se constituirá um novo caminho inexplorado). É a tentativa para visualizar os encadeamentos do pensamento, filosófico ou arquitectónico, que permite os avanços e recuos do percurso do pensamento que pretendemos como labirinto, e é este o ponto comum, uma espacialidade do pensamento.
O espaço e a memória
O espaço é a matéria primeira da nossa existência. Vive-se num espaço, num volume, numa superfície, num apartamento, numa cidade. A experiência do espaço apresenta-se conceptualmente pela ideia de lugar: a ideia de ligação do mundo com nós mesmos. É um conceito e experiência individual: são os metros cúbicos e quadrados que necessitamos para vivermos. Ao conceito de espaço correspondem dois conceitos métricos: o plano e o volume: o espaço como volume dá lugar à ideia de quantidade do território, o espaço vital. Esta é uma referência ao nosso contacto com o mundo que nos reenvia a uma oposição entre o “aqui” e o “ali”, o mundo deixa de ser neutro: tal lugar, tal posicionamento é desejável a outro. A circulação é o desejo ou a repulsa de um lugar. O factor quantitativo, a ideia de grandeza, medida à escala humana, ou seja, a relação do indivíduo com o quadro no qual ele é, pode ser avaliado segundo alguns factores intimamente relacionados com a percepção que fazemos do espaço: a escala, a forma, contacto do indivíduo e a experiência social, a dimensão estética.
A Geometria Analítica ensina-nos modos de aproximação ao espaço, a ideia de um sistema de coordenadas no qual Descartes teve um papel determinante, onde a localização dos pontos é determinada pelos seus eixos de abcissas e coordenadas, mas o que mais nos convém à abordagem do espaço labiríntico é o sistema de coordenadas intrínsecas. Sistema pelo qual cada um dos movimentos do indivíduo na relação com o ponto de partida é indicado pela quantidade de “passos” percorridos e pelo ângulo em que se realizou cada um desses passos. Este é o sistema de coordenadas que melhor se aplica ao indivíduo errante numa rede de corredores labirínticos, que lhe permite conceber uma ideia do espaço através do seu conhecimento do espaço, pelos movimentos que teve de realizar. É justamente pelo excesso de possibilidades sobre o conhecimento do espaço que se traduz a riqueza espacial, ideia de um mundo mais vasto que o indivíduo, espécie de fonte ilimitada do ser no mundo.
Porque é que o indivíduo deseja ir mais longe que o sítio onde se encontra? A partida do ser do seu ponto de origem afecta duas formas geométricas: uma, a errância livre sobre um plano mais ou menos ilimitado; outra, a errância guiada pelos corredores do labirinto, nas ruas da cidade, nas alamedas dos jardins. Este actuar no espaço é sublinhado pela motivação estética: a mobilidade é uma tendência básica do ser, o indivíduo não está só, na cidade ou na família.
o espaço e a memória
expressões do lugar
Toda a arquitectura constitui uma forma existencial tanto quanto uma relação vital com a natureza. Physis, vida, fauna, flora, topografia, clima, paisagem ou jardim..., a natureza é sempre o que “existe” que o arquitecto não poderá ignorar mesmo se é dela que o homem se separa e é sobre ela que age.* A arquitectura caracteriza-se por ser uma mediação estável entre homem e natureza, gera um mundo habitável pelo entrecruzamento com o que existe, das situações com que se depara e de uma poética. Partindo das categorias nietzscheanas poderemos qualificar duas situações, respectivamente apolínea e dionisíaca: distância ou ligação.
Nietzsche em a Origem da tragédia, descreve estas tendências contraditórias que observa na Grécia antiga – que atravessa o homem e se experimenta na arte: a dimensão apolínea, caracterizada pela ordem, medida, serenidade, beleza formal, que se manifesta depois de Sócrates numa cultura idealista de distanciamento da natureza, que se impõe progressivamente e se opõe ao dionisíaco, instinto estético que se resguarda na natureza, hino à mesma natureza e à vida indestrutível, à natureza no homem e à embriaguez dos sentidos. O domínio dionisíaco é o espaço selvagem da physis, Dioniso, o deus ambivalente destrutor ou benfeitor, selvagem ou salvador.
A modernidade que se manifesta no séc. XIX é um modo de vida, uma visão do mundo e uma relação com a terra. O que chamamos de modernidade está associado à visão da natureza que devém paisagem. Os arquitectos modernos do movimento moderno privilegiaram a perda do contacto com o solo sobre diferentes modos. Mies van der Rohe e o primeiro Le Corbusier são as suas figuras emblemáticas. Mas há uma outra via diferente desta correntemente entendida como modernidade: arquitectos contemporâneos tais como Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto, ou Siza, cruzam-se num caminho do lugar reencontrado com o meio.
* Michel Mangematin, Méditation architecturale entre l’homme et la nature, Ville contre-nature, Philosophie et architecture, Éditions la Découvert, Paris, 1999
localização
Mas porque estar aqui é muito, e porque tudo
o que é daqui aparentemente precisa de nós, estas coisas efémeras, que
estranhamente nos dizem respeito. A nós os mais efémeros. Cada uma
uma vez, só uma vez. Uma vez, não mais. E nós também
uma vez. E nunca mais. Mas o
ter sido uma vez, mesmo uma só vez:
o ter sido terreno, parece irrevogável.
Ranier Maria Rilke, As Elegias de Duíno, A Nona Elegia
Genius loci é um conceito romano. De acordo com uma antiga crença romana todo o “ser independente” tem o seu genius, o seu espírito guardião. Esse espírito dá vida às pessoas e aos lugares, acompanha-os da nascença à morte e determina o carácter da sua essência. O conceito de habitar convoca a relação que o homem estabelece com o lugar. Quando o homem habita está simultaneamente localizado no espaço e exposto a determinados caracteres da envolvente. A localização no espaço envolve duas funções psicológicas: orientação e identificação. O homem necessita de saber onde está e ao mesmo tempo terá de se identificar com as características do meio que o envolve, como está num lugar. Indentificação e orientação são aspectos primeiros do ser-no-mundo. A identificação é a base do sentimento de pertença e o sentido de orientação é o que nos habilita a sermos o homo viator que é parte da nossa natureza. O homem habita quando é capaz de concretizar e resolver o mundo em edifícios e coisas, em objectos. A concretização é a função da obra de arte, em oposição à abstracção da ciência. O nosso quotidiano consiste nestes objectos intermediários, a função da arte é ocultar as contradições e complexidades do mundo: ser uma imago mundi, a obra de arte ajuda o homem a habitar. Habitar é o fim último do construir. Esta relação estabelece uma via que conduz ao habitar, “construir é já por si só, habitar”. Este estar-na-terra é para a nossa experiência quotidiana algo que desde o princípio é “habitual”. A função primeira da arquitectura é tornar visível o habitar um lugar.
Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Herberto Helder, A Colher na Boca, prefácio
Labirinto
Arquitectura para além da representação do pensamento, arquitectura como possibilidade de pensamento que não se poderá reduzir ao estatuto de representação do pensamento. Aristóteles dá exemplo da associação teoria/prática, citando a “architeckton”, e a partir desta estabelece uma hierarquia política: a arquitectura é definida como uma arte de sistemas, como arte, logo passível de organização racional dos vários ramos do conhecimento. Antes da separação teoria / prática, entre pensamento e arquitectura, deverá, poderá, ter existido um modo de pensamento ligado ao evento arquitectónico. Se cada linguagem propõe uma espacialização, um concerto do espaço, que o não domina mas apenas dele se aproxima, é como a abertura de um caminho. Um caminho que não deve ser descoberto mas criado. É justamente esta criação de caminhos que não é de todo estranha à arquitectura: cada sítio, cada habitação, cada edifício está localizado num caminho, num cruzamento de caminhos onde a chegada e a partida são possibilidades. O caminho não é um método. O método é a técnica, o procedimento com o sentido de ganhar controlo do caminho, com o sentido de o tornar viável.
Caminho e método: há um caminho que não poderá ser confundido ou reduzido à definição de método. (Definição de método, tradição iniciada por Descartes, Leibeniz e Hegel, que oculta a sua natureza de ser “caminho” , quando indica infinidade do pensamento: pensar é sempre um caminho.) Esta infinidade de caminhos/pensamento conduz à metáfora arquitectónica do Labirinto.
A questão para a arquitectura é o sítio: ter lugar no espaço. Estabelecer um espaço que antes não existiu e fazê-lo conviver com o que um dia aí existirá, isto é sítio. Este acto é sempre técnico, tornar um lugar habitável: inventar algo que não existia antes e ao mesmo tempo que existe o “inhabitante”, o inventor, (homem ou deus), que necessita do sítio primeiro ou “apenas” uma causa para a sua invenção. E há sempre a inquietação da origem do lugar. Há talvez um labirinto, que não é nem natural nem artificial, o qual nós não habitamos. ( Tradição da filosofia ocidental da oposição natureza / tecnologia. Desta oposição surgem-nos dois labirintos: regressar ao lugar, à espacialidade; à escrita. Um processo des-construtivista, uma tentativa para a libertação das históricas oposições “physis / techne, deus / homem, filosofia / arquitectura. Des-construção analisa e questiona os pares conceptuais correntemente aceites como evidentes e naturais, que por serem tomados como garantidos restringem o pensamento.)
“des-construção”: não simplesmente a técnica de uma construção inversa quando proposta de construção. Nada de mais arquitectónico e nada de menos arquitectónico! O pensamento arquitectónico só pode ser des-construtivista neste sentido: uma tentativa para visualizar, a qual estabelece um encadeamento arquitectónico na filosofia. E deste ponto voltar para o que liga a des-construção com a escrita: a espacialidade, pensar em termos de “caminho”, percurso, da abertura de uma via – sem se saber onde esta irá dar – inscrita em traços, (vestígios?, riscos?). Olhando deste modo, poderemos afirmar que esta “abertura de caminhos” é uma escrita que não poderá ser atribuída ao homem, a deus ou ao animal, desde que, no seu mais amplo sentido, o lugar onde esta classificação – homem/deus/animal – pode tomar forma. E esta escrita é como um labirinto, porque não tem um início nem um fim. Há sempre e apenas o movimento: a oposição espaço/tempo, tempo de discurso/espaço do templo ou da casa não fazem mais sentido. Vivemos na escrita; a escrita é um modo de vida.
*desejo, dicionário de psicologia, lisboa, editora verbo, 1980
Aspiração a qualquer coisa que nos falta e que se pode pretender e de que se pode ter uma representação. Uma definição clássica o desejo reside na tendência e surge por subtracção dos elementos positivos da vontade. Pode não ter satisfação se a vontade não for vencedora. Ao mesmo tempo é por insatisfação que o desejo se define. Psicologicamente o desejo é a testemunha de uma chamada da líbido e traduz uma ausência: em última análise, o desejo é “o desejo de outra coisa, desejo de desejo e, por vezes, desejo de ter um desejo insatisfeito”.
tendência – impulso espontâneo que orienta a conduta do indivíduo. A tendência vai do sujeito para o objecto. Ela responde a uma necessidade interna (pulsões sexuais, afectivas, intelectuais, etc.). Somos levados a realizar os nossos próprios fins com que o mundo nos oferece; a tendência está sempre presente, persistente, inacabada. Pode ele ser mais ou menos complexa, articular-se com os dados da experiência, elevar-se por uma síntese cada vez mais completa das impulsões elementares que correspondam às necessidades orgânicas; segundo Janet, as tendência mais complexas subordinam-se às tendências simples e utilizam-nas em seu proveito, impondo ao sujeito uma “tensão psicológica” cada vez mais elaborada. Assim, as tendências morais são mais elaboradas que as tendências para a afirmação de si. Têm necessidade de uma aprendizagem mais longa e mais complexa.
Vontade – esforço mental que incita à acção. Poder que o homem tem de representar a si mesmo uma tarefa e de a realizar ou não. Há quatro momentos no acto voluntário: concepção, a deliberação, a decisão e a execução. Mas a natureza da vontade escapa à análise. Alguns subordinam-na à conduta racional; mas quando há uma escolha a fazer entre duas eventualidades igualmente tentadoras, pode-se perguntar porque acaso um sujeito se inclina bruscamente para um lado. Determina-se, sem dúvida, segundo móbiles inconscientes, portanto irracionais.
Admite-se geralmente que a vontade traduz o equilíbrio entre os impulsos do dinamismo instintivo e os motivos ditados pela razão. A vontade não é uma força, mas o ajustamento correcto de forças. O homem de vontade torna-se, ao mesmo tempo, o sujeito e o responsável da sua conduta. O acto voluntário reside no controle de si. Exige grande dispêndio de energia e uma elevada tensão psicológica, porque necessita de inibição, de resistência, por exemplo às pulsões ou aos hábitos. Por isso, ele é frágil e será facilmente perturbado por uma lesão do sistema nervoso, assim como a atenção à qual ele está ligado. Esta lesão do sistema nervoso provoca uma diminuição ou uma perturbação da actividade voluntária, enquanto a actividade automática permanece intacta. São os actos elaborados os primeiros e os mais facilmente atingidos.
As doenças da vontade são as doenças do esforço: a abulia manifesta-se pela impossibilidade de tomar uma decisão, traço marcante da psicastenia. O abúlico é um ser assediado por tendências contraditórias. A sua personalidade, incompletamente formada, não sabe realizar a escolha que se impõe.