O facto é consumado, o acordo firmado, o contribuinte delapidado. Sic transit gloria Olissiponensis: do alto do zelo “competitivo”, da indemne pose das administrações dos tentaculares organismos estatais, que vigiam administrativamente o “viver habitualmente” da cidade e dos cidadãos, naturalmente fundados em evidentes estudos e consultorias, recebemos, cidadãos, apenas a impassividade das certezas rematadas. O facto é, repita-se, consumado. A democracia, um pouco mais débil. Mas saltou para o espaço, esse maçador pormenor.
Lisboa necessita do porto. De terminais de contentores, de terminais de cruzeiros. É de sua natureza abrir-se ao estuário, ao Atlântico. Mas todo este barulho sobre Alcântara, aparece para nada. Porque nada há a fazer?
i.
A actividade portuária serve não só a cidade de Lisboa, a sua área metropolitana, todo o país. Desconhecemos se existe um levantamento das necessidades e especificidades da actividade portuária em todo o território português. Mas é inquietante proporem-se milhões de euros para uma obra da qual não se conhece o contexto nacional e apenas se debate o local. Serve-nos, ao país, melhor um porto em Alcântara ou em Santa Apolónia? Será Lisboa a localização que melhor serve os propósitos da coesão territorial que deve fundar o planeamento regional? E Sines e os milhões lá submergidos? Há uma estratégia nacional e regional de transportes de pessoas e de bens? Serve essa estratégia os pressupostos da coesão social, territorial, económica e paisagística?
ii.
A paisagem é onde estas operações são efectuadas. É, enfim, a síntese de todas as actividades, dos elementos naturais e humanos, que ocorrem em determinado espaço. Para que a liberdade - individual, de circulação, de criação - seja assegurada sobre o território, os instrumentos de planeamento não podem ser aquilo que por ora são: mantas de retalhos zonning, cobertores A0 coloridos por rebuscados “índices”, “cotas”, “cérceas”, sem qualquer relação entre si que a pouco mais que casuística e orientações políticas ou erradas ou inexistentes ou ignorantes. A política é a instância onde uma visão para a paisagem deverá ter lugar. A política deveria ser a assertividade do país que se deseja. Sem política, diria, sem ideologia, o território, a paisagem, as cidades, são apenas o palco de disputas de interesses sem qualquer sujeição ao bem-comum. A paisagem é um bem escasso, recorde-se.
iii.
Lisboa. Naturalmente que Lisboa tem que ter o seu porto. De contentores e de cruzeiros. Naturalmente porque é de sua natureza. E porque a cidade não pode ser uma imensa esplanada à beira rio plena de metecos em laser “very typical” sem ser very muito menos typical.
A diversidade das actividades que ocorrem na frente de rio deverá, com predominância para as actividades portuárias, articular tanto o trabalho como o laser como toda a cidade e, decorrente das pesadas implicações económicas, com todo o país. Mas para tal seria necessária uma “perspectiva olho-de-pássaro”, política, que é coisa ausente em todos os debates que ocorrem. Prefere-se retalhar, escortaçar, dividir o território por sacrossantas “acessibilidades”, mudar de “paradigmas” no vale de Alcântara, como se Alcântara fosse um território apartado da cidade, da região e do país.
iv.
A polémica em torno do porto de Lisboa encerra todos os vícios da nossa depauperada democracia. Interesses privados que se sobrepõem ao público. Acordos apressados, que pesam ao contribuinte. Explicações absurdamente demagógicas – é fácil e eficaz acenar com o espectro do emprego/desemprego como argumento para o gasto irracional de milhões de euros em “acessibilidades” pouco menos que inúteis, (chega até a ser comovente).
E a cidade prossegue. Entregue a negociatas. Quando deveria estar entregue a si própria.
por exemplo, Lisboa
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- published:
- on 19.11.08
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- lx, portugal pós-moderno
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