America, America...

uma ilha
O skyline de Manhattan, mil vezes reproduzido e consumido, postal ilustrado dos sonhos de milhões de indivíduos é uma marca indelével do século XX. É também a imagem da cidade do século XX como espectáculo de um novo turismo mas ainda mais profundamente como uma utopia de novos espaços – livre circulação da rua ao arranha-céus, ao céu. O dia 11 de Setembro de 2001 marca um ataque ao coração desta utopia em que o desvio de dois aviões perverte o sonho modernista da livre circulação pelo espaço cosmopolita. O dano está causado e é irreparável... Nova Iorque é a capital deste sonho, agora pesadelo.
É a celebração desta utopia que Rem Koolhaas pretende em Delirious New York. Este texto polémico, pela primeira vez editado em 1978, abre com a pretensão de ser um manifesto retroactivo, nas palavras do autor. Na sua introdução Koolhaas convoca duas distintas observações que serão a matriz de todo o texto: um tempo avesso a qualquer manifesto, um tempo em que a falência destes é a sua falta de evidência externa, e por outro lado o caracter da cidade de Nova Iorque como manifestação à qual falta o seu manifesto. O encantamento que se lê nestas primeiras palavras reflecte-se no elogio de Manhattan como o lugar de todas as utopias e fantasias, como laboratório de uma nova cultura e de um novo modo de vida. Uma experiência colectiva na qual a cidade se torna na democracia onde o real e o natural cessam de existir: apenas o construído pelo homem permanece. O modelo investigado por Koolhaas opõe-se quer ao modelo de cidade dos irmãos Rob e Leon Krier, que insiste num regresso ao “quarteirão histórico” como base do planeamento na Europa, quer à rua comercial (strip mall) defendida por Robert Venturi e Denise Scott-Brown em Learning from Las Vegas. Há, portanto, a vontade de rejeição de um historicismo reaccionário dos Krier e do populismo comercial de Venturi e Scott-Brown ou ainda do compromisso entre os dois, o historicismo-pop, que funcionou como receita pós-modernista. A estratégia desta posição residia na convocação do modernismo, tanto europeu (com um carácter utópico que ao tempo era profundamente criticado), como americano (mais pragmático e marcadamente capitalista), e demonstrar que este pode co-existir com o núcleo da cidade histórica e deste modo o urbanismo abandonar as pretensões de harmonia e coerência total e assumir a contradição e tensão entre o “novo” e o “velho” que fazem parte do tecido da cidade.
Os desejos são desde logo afirmados de: “se Manhattan procura uma teoria, uma vez identificada essa teoria deverá verter numa fórmula que seja num mesmo tempo ambiciosa e popular”. É essa ideologia que se procura: o manhattanism. A arquitectura do próprio texto é uma metáfora assumida da grelha urbana de Manhattan: “blocos cuja proximidade e justaposição reforça os seus significados separados”

o tecido
O destaque dado à grelha desenhada ao longo da ilha é compreendida como um “colossal acto de fé”, uma acto ambicioso numa ilha deserta que para lá da sua aparente neutralidade anuncia um “programa intelectual”. Para Koolhaas esta demonstra a superioridade da construção mental (a grelha cartesiana) sobre a realidade (a topografia). O domínio do natural pelo desenho das ruas e quarteirões são a sua verdadeira aspiração. O sistema, em que os quarteirões todos iguais se equivalem, eclipsa todos os anteriores sistemas de articulação e hierarquias urbanas que o desenho das cidades tradicionais administrava. É de facto um novo mundo que se anuncia, no qual se prevê o empenho de todos na invenção da cidade.
A ocupação humana terá sempre como custo ocupação humana. A cidade torna-se num mosaico de acontecimentos, cada um ontologicamente distinto do outro e que competem entre si através da mediação da grelha. Antevê-se uma cidade em perpétua re-invenção dentro dos seus limites rígidos. Abraçada pelo Hudson, a ilha desdobra-se em 2028 quarteirões no interior de cada qual cada um é livre de erigir o que lhe convier.
Ao ir mais longe na investigação da bi-dimensionalidade da grelha descobre-se uma insuspeita anarquia tri-dimensional. A disciplina fundadora gera agora novos equilíbrios de fluxos: um “caos rígido” mas “ordenado e fluido”. É defensiva, na medida em que preserva a cidade de qualquer desejo totalitário dado o quarteirão ser a unidade sobre a qual recai a intervenção do arquitecto. Koolhaas convoca o quarteirão como a chave da grelha considerando-o a “maior unidade do Ego urbanístico”. Este gesto pragmático determina que não mais do que uma destas parcelas possa ser dominada por mais que um “cliente ou arquitecto, onde cada intenção – cada ideologia arquitectónica – tenha que ser realizada nas limitações do quarteirão”.
Parece-nos lógica esta ênfase na unidade-quarteirão dada a finitude dos limites da ilha e a necessidade de prever que o mais que irá acontecer acontecerá num qualquer dos 2028 quarteirões da grelha de Manhattan.


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