da museologisação dos costumes
Pitorescos conservadores andamos todos em roda da salvação do Largo do Rato, daquilo que é hoje um nó de auto-estrada irrespirável, intransitável, poluído, onde uma flor seria um milagre sobre o alcatrão do centro da cidade. Rejubila-se pelo indeferimento de um “mono”, dizem, que “não se enquadra”, que “rompe com a malha urbana da envolvente”, em panfletaríssima indignação por uma arquitectura puramente lisboeta.
Mas que ressoa desta entrópica algazarra?, aparte mútuas acusações de “capelismo” arquitectónico-corporativo-mediático, aparte distintos derrames de gosto, aparte a insansatez das boas-consciências, aparte a ausência da ideologia e da política. E a cidade ausente do seu próprio tráfico.
A um arquitecto é encomendado, por um cliente privado – note-se curiosamente a ausência neste debate da figura do cliente, chamado apenas para responder às acusações de explorar até ao limite o que a lei lhe concede, como um criminoso por cumprir a lei e nesse cumprimento programar lucro - um projecto para determinada parcela da cidade. O arquitecto responde à solicitação do cliente – cliente que aparentemente terá concedido total liberdade ao arquitecto, coisa rara no país da brava pataria que “sabe o que o consumidor quer” - , dentro do rigoroso cumprimento da lei, dos índices das taxas, dos pdm’s, do que se quiser. O objecto em projecto é proposto e aprovado pela administração da cidade. Por pressão mediática do bom-gosto ofendido, o objecto é desaprovado, na confirmação das políticas erráticas e casuísticas que estruturam a cidade há décadas. Eloquente.
Sustentar todo um debate no “mono” desagradável à vista será tão intelectualmente sofisticado como acusar o cliente de cumprir todos os índices exigidos a que está sujeito o lote que possui. A acusação do pecado original do querer lucro, como arma retórica, é tão elucidativo como as motivações psicológicas e estéticas que sustentam todo a crítica ao “mau gosto” deste edifício. Inquinar a discussão com acusações de corporativismos, “amiguismos”, conluios, é, de todo em todo, lamentável. Existirão quatro coisas que Deus não conhece: o pensamento dos Jesuítas, os bens e propriedades dos Franciscanos, o número de congregações religiosas femininas existentes e as motivações do discurso e críticas arquitectónica urbanística portuguesa.
Voltando ao objecto, depois do processo.
O objecto de Frederico Valsassina e Manuel Aires Mateus, que poderá até nem ser o mais estimulante, e isso aqui é irrelevante, será certamente mais interessante que o paupérrimo edifício que naquele lugar vai morrendo. Se a cidade é feita de tempo, é do tempo em que se sobrepõe a História, a técnica, a cultura. São as camadas de hábitos e de habitares que vão adensando os lugares, em continuidade e em rupturas. O argumento da ruptura, como momento negativo, como contraponto à modorrenta continuidade quotidiana é pois, soterrado no andamento histórico. Em ruas contíguas ao Lg. do Rato, (que não a Av. Álvares Cabral, porque a escala será outra), procurem-se cassianos, procure-se neles essa continuidade para onde a burguesia se inclina.
E a Garagem Vitória?, o brado que daria alguém hoje querer instalar uma garagem para automóveis no centro da cidade, com aquela “volumetria”. Mas o que aqui nos prende? A vista para o xafariz do Sr. Procurador? Pela própria geografia, ele estará sempre visível. As cérceas? Lisboa não tem cérceas, tem perspectivas – e é sempre curioso e preguiçoso este truque retórico da “altura”, do temível mono que nos rouba o sol, arcaico apego ao piso raso, colados à lama de Inverno e pó de Verão.
A cidade necessita, vive, destes encontros e desencontros. Mas há qualquer coisa de inefável neste debate, sobretudo a partir de um objecto que será certamente muito mais interessantes que os paupérrimos edifícios ainda ontem construídos ali ao lado – ouço já as vestais que guardam sacrossanto Ventura Terra – e porque os debates sobre a cidade são ocasionais, aleatórios, erráticos, como no fundo tem sido a administração da cidade – onde anda o Arqtº. Salgado? - sem qualquer relevância que a nossa paixão opinativa.
Desçamos do Rato ao Marquês. E desçamos do preconceito que pretende que a arquitectura tenha lugares apropriados à sua contemporaneidade. Como se a vida, a cidade, pouco mais fossem que comportamentos e gostos “museologisados”.
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4.8.08
Para repor alguma justiça (naturalmente inflamada por motivos familiares), permitam-me o esclarecimento:
O Arqt.º Salgado anda a bulir que nem um cão, tirando do papel, ponto por ponto, aquilo a que se propôs no respectivo programa eleitoral.
Não há que enganar... e se falta debate sobre a cidade, tal deve-se apenas à (ainda maior) falta de tempo, face a tudo quanto hà a pôr em prática.
Não ponho em causa a beleza e melodia das palavras do post em referência, mas sinceramente, mais errático me parece o seu conteúdo do que a administração da Cidade no presente mandato.
Porque é mais fácil criticar (onde andas, Salgado... como se se tivesse demitido das funções para as quais foi eleito!) do que fazer, estudar, pensar, aturar, levar na touca, e continuar...
Impôs-se o desabafo.
Cmpts,
S. Salgado -
4.8.08
a minha interrogação relavitamente ao arq. salgado será mais um desabafo por expectativas depositadas em alguém que, lamento, as está a defraudar - um ano e no passa nada. (quero acreditar que um zum zum sobre uma praia de ondas no tejo será piada de silly season) mas sei bem também o estado deplorável em que se encontra a cãmara, mas, já disse, já passou um ano.
lamento que pessoalize o debate, como se de ataque à pessoa do arq. salgado fosse, quando o mesmo é, na nossa narrativa, tão só e "apenas" verador do urbanismo da cidade de lisboa - com todas as responsabilidades inerentes. sendo que acredito piamente que o arq. salgado ande "a bulir que nem um cão" para pôr de pé alguma coisa desta cidade. e sendo que também já passou um ano, repito, um ano, sobre a tomada de posse do verador - mas talvez esta "desilusão", se assim lhe pudermos chamar, tenha apenas a ver com as elevadas expectativas sobre a actuação de alguém que já demonstrou que conhece de cidades.
quanto ao seu último argumento, acho-o lamentável, eivado do costumeiro autoritarismo rançoso ao melhor estilo valentim loureiriano: "você só fala, você nunca fez nada".
até porque falar já não é pouco, e sabe deus como o nosso espaço público de debate anda deserto, segundo porque o senhor não me conhecerá de lado algum e não poderá provar se passo o dia todo sem fazer nada ou a fazer alguma coisa. "estudar, pensar, aturar, levar na touca, e continuar...", sabemos todos o que é isso. ou alguns. ou não fossem alguns desejarem ser conscientes arquitectos - coisa difícil e pesada, mas alegre. e mais lamentável ainda porque esa lógica anti-intelectualista, se quiser, pesa e abre debates através da capacidade de tentar desqualificar alguém como se fora crime dizer alguma coisa.
voltando à vaca fria, ainda não se percebeu a actuação do arq. salgado neste processo - se tanto insiste.
atenciosamente,
j -
5.8.08
Caro João
Gostei de ler a tua posta mas (como anteciparás) não concordo com tudo o que escreves.
Para mim o mais "relevante" sempre foi o projecto. Aquele projecto, aquela solução em concreto, como "caso" único, mas também como "modelo", como hipótese, para a "mudança" da cidade (de Lisboa, neste caso).
Não percebo quando afirmas que o projecto proposto é "certamente" mais "interessante" (?) do que a construção existente. Acho que não fazes a "prova" dessa evidência (mas se calhar é mais uma questão de fé-zada...)
O teu discurso (principalmente na "conclusão") parece-me ainda "contaminado" pela "febre" das "novidades" (pela novidade...) e das "rupturas" (pela ruptura...). Uma "febre" recuperada pelos "contemporâneos" todos "trans-modernos" (e pseudo "vanguardistas"...) aos "modernos" (propriamente ditos) das vanguardas heróicas...
É um discurso (vide o projecto para o novo museu dos coches...) adoptado por tudo quanto é ministro (ou "alto quadro"!...), e que serve para justificar (para mascarar...) as maiores prepotências e atrocidades.
É uma posição cómoda e simplista, tão preguiçosa como as dos "conservadores" (e reaças) que tudo querem "preservar".
E não é preconceito (porque é que há-de ser preconceito!?) continuar a acreditar que existem "lugares apropriados" (e "boas maneiras"...) para a construção do "nosso" tempo e para a transformação da cidade de acordo com as nossas necessidades e os nossos desejos.
Não me quero repetir...
O Siza, salvo erro, e salvo erro a propósito do projecto para o Condes, dizia que por vontade dele "fechava" (dava por "fechada" e "acabada", ou qualquer coisa parecida com isso...) a cidade "histórica" anterior a 1950... -
6.8.08
caro antónio,
será talvez mais o que nos aproxima do que o que nos distingue. desculpa o cliché, mas a esta hora, neste mês, não se consegue melhor.
não afirmo que o projecto será a única ou sequer a melhor proposta para aquele bocado de cidade. em todo o caso não conheceremos mais nenhuma. terei até reservas sobre isso. e também não condeno à fogueira do horrendo o que actualmente lá existe. tudo terá o seu valor e o que lá está, quanto mais não seja, ainda que não muito rico, terá o valor de quem o trabalhou - é preciso amar um pouco todas as coisas (esta soou demasiado católica, mas é o que a casa gasta). talvez por isso perceba que tenhas entendido este post como uma irredutível crença no prgresso e no novo. não. aliás sou bastante céptico sobre o nosso, português, discurso do progresso. sobretudo no domínio político - já sabemos que serão os buldozers a avançar sem dó nem piedade, nem amor nem desamor.
mas o outro lado será o da passividade. o do preservacionismo bacoco. o do conservadorismo sem nexo nem riqueza cultural. presumo que aqui, como talvez em tudo, haja um ponto de equilíbrio.
e se nas consciências modernas o progresso seria imparável, no nosso miserável e reaccionário pós-modernismo, o progresso é capaz de ser um monstro. (teremos provas irrefutáveis das duas tendências). não há, portanto, aqui, nem heróis nem vilões. haverá, presumo, repito, um justo equilíbrio.
o mesmo direi relativamente aos lugares "apropriados" à contemporaneidade. e aí distanciar-me-ei do discurso do mestre siza. ressoa a algum afastamento do presente (verificável), e temor ao futuro (imprevisível). porquê "fechar" a cidade "histórica" circa 1950? acaso o mundo parou de girar? acaso a História findou? - bem o desejariam os comunas e os mais impenitentes "capitalistas". mas para nossa ventura a História ainda não fechou os livros (que faltam escrever).
a histeria toda à volta do "mono" é que surpreende. mas mais surpreendente seráo alguns argumentos do "manifesto" para salvar o rato - e sabe deus e quem lá passa todos os dias, como o rato necessita de salvação. tudo me parece descabido e assaz conservador, no que este conceito terá de ultra-montano e anti-cosmopolita - e a actuação da câmara.
mais uma vez a sensação que há algo que não bate certo no clamor que alastra nas multidões (ignorància? medo?), na "forma" da administração (ausència da política? desaparecimento da ideologia? errância urbanística?) e em nós, arquitectos (e eu que até não suporto o corporativismo da classe), em mantermos um debate decente e culturalmente rico sobre o objecto em causa.
continuemos, então.
abraço,
j -
6.8.08
devo ser dos poucos que acham uma certa piada ao rato, ao episódio absurdo de uma largo que não o chega a ser, uma espécie de largo que nasceu aleijado pela topografia e os seus desníveis, pelos edifícios que o confinam desajeitadamente, uns de esguelha como se tivessem sido apanhados desprevenidos, outros convictos à espera de um 'parterre' que não aconteceu, outros no deixa ver o que isto vai dar...e a verdade é que com um pouco mais de artereoesclerose viária, isto é, com o alargamento de passeios, a criação, quem sabe?, de uma ilha, o rato aleijado pudesse passar a hamster amestrado, com carros a rodar e espaço onde o mortal pedestre parasse, sentasse e até dissesse: porra, uma merda destas só mesmo em Lisboa ,baril!
Isto a propósito de ali poder nascer seja o que for porque o que lá está não presta...
JFC (o pedestre- não confundir com 'pedrasta' que é uma coisa completamente diferente) -
6.8.08
"Isto a propósito de ali poder nascer seja o que for porque o que lá está não presta..." - que exagero.
a única coisa que lá está e que não presta é o partido da mãozinha cerrada e a imundície da tasca ao lado da fernandes (compensada talvez pelas belas doses de frango assado que se podem adquirir na frangaria ainda mais ao lado em dias apressados).
(é curioso que ninguém traz à colação o belo edifício que se ergue atrás da sede dos socialistas - suponho que do frederico george: magnífica geografia, melhor topografia, inteligentíssima implantação, moderníssima aparência, que apenas se deixa ver a quem desce a álvares cabral, mas que, paradoxo, domina toda a lisboa. uma presença ausente.)