Um
Ao minuto sessenta e oito do jogo Alemanha-Portugal cabe a Cristiano Ronaldo a marcação de um livre directo. A postura é de uma concentração extrema: pés firmemente apoiados no chão, joelhos esticados, pernas afastadas, tronco direito, imóvel, pescoço ligeiramente inclinado para a frente, o suficiente para obter o maior raio de visão possível. Olha fixamente para a bola, como se comunicasse com ela, depois, em fracções de segundo, desloca o olhar para a baliza, regressando de novo à bola. O desenho do corpo no momento em que a pontapeia é invulgar: uma diagonal curvilínea sobre o lado esquerdo, um equilíbrio precário no momento da transferência de peso, como se convocasse todo o corpo, todas as suas partes, organicamente, para mobilizar a energia e a força muscular exactas com vista a produzir determinado efeito sobre a bola.
Para além do desenho táctico e da estratégia que subjazem ao que os entendidos reconhecem ser um bom jogo, da componente agonística implícita nos movimentos alternadamente ofensivos e defensivos das duas equipas no meio campo — esse “sítio” onde se “ganha” a bola —, do significado “tribal” que alguns analistas atribuem aos comportamentos, à indumentária, às pinturas corporais ou aos cânticos das claques, pode olhar-se para uma partida de futebol como se olha para uma coreografia, com regras estruturadas e possíveis improvisações em torno delas.
As analogias com a dança abundam nos discursos dos especialistas quando dissertam sobre um espectáculo desportivo. Também houve vários coreógrafos que se inspiraram em movimentos e técnicas do desporto para criar movimento. Contudo, não é ao nível das funções que a dança e o futebol têm que é possível estabelecer comparações, pois aí só encontramos diferenças que estão à distância de tudo o que separa a arte do jogo, mas antes pelo facto de estes dois géneros performativos terem como instrumento o movimento do corpo no tempo e no espaço, com regras, convenções, e por obrigarem ao domínio de técnicas extraordinárias.
Admitindo que há no futebol uma coreografia — um arranjo de movimentos no espaço e no tempo — a determinação dos movimentos é, no jogo, aparentemente limitada. O génio é o que se eleva das convenções para inventar o seu próprio jogo. Da cultura táctica, dos posicionamentos pré-estabelecidos no espaço, dos trajectos e das determinações estratégicas irrompe a cultura do improviso. É nesse momento que o corpo se torna mais rápido do que a mente, como diria o grande bailarino improvisador Steve Paxton.
A singularidade de Ronaldo, o número 7 da selecção nacional, advém das qualidades do seu movimento: um movimento espacialmente directo, forte, rápido, com uma fluência controlada, com uma dinâmica balística e um tipo de fraseado staccato, especialmente quando se apodera da bola. Estas são qualidades incorporadas que lhe permitem improvisar ao correr das circunstâncias do próprio jogo, ou seja, da acção dos seus companheiros e adversários.
Relembre-se a propósito desta capacidade de improviso de Ronaldo os momentos em que faz rolar a bola de um pé para o outro e a desvia do adversário; em que se aventura, da ala esquerda para a zona central, ainda antes de assim ser determinado; em que ultrapassa, numa curva, de um só passo alongado, um jogador da outra equipa, e, de repente, o confunde, girando e fazendo recuar a bola; em que saltita sobre a meia ponta, tornando imprevisíveis o exacto momento e a direcção em que vai rematar a bola.
Num jogo de futebol o movimento pode ser assim, independentemente do resultado obtido pela equipa, olhado e fruído como uma materialidade objectiva, um fraseado ou uma improvisação irrepetíveis, um movimento votado à perda, ainda que prosseguindo sempre uma obstinada procura da glória.
Maria José Fazenda, Público, 21.06.2008
nota: Não teve este vosso escriba a sageza suficiente para fazer compreender à autora a Lei do Fora de Jogo. Além de que, graças a Scolari e ao seu rasgo táctico, foram parcas as oportunidades para análise do movimento de Ronaldo.
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