"Sem dúvida que todo este texto em relação à Praça das Flores está muito bem escrito, bem escrito entenda-se bonito, porque a realidade da Praça das Flores vai muito além da designação de espaço publico que está a ser dada.
A realidade da Praça das Flores é de prostituição masculina e droga a partir de certas horas, a realidade é a de que os moradores não se sentem seguros a frequentar o mesmo pela frequência que por ali passa, a realidade é de um espaço livre, mas livre de ordem, livre de regras, onde se partem garrafas, partem bancos, riscam fontes, um espaço de ninguém, mas de todos, de todos que fazem imperar o medo.
Será que este é o espaço que queremos, que os moradores querem, ou que alguns políticos estão a tirar proveito por terem perdido o “poiso”? Será que estamos só a mostrar o lado negativo desta situação de 20 dias e, ocultar o lado positivo? Será que estamos a entrar no velho Fado Português que de tudo se queixa e de nada congratula?
Não tivéssemos nós o exemplo do Miradouro de São Pedro de Alcântara, que não levantou vozes como estão a ser levantadas em relação à Praça das Flores. No final, o resultado é o mesmo, ESPAÇOS PÚBLICOS RECUPERADOS. Apesar do caminho percorrido ser diferente. Enquanto o Miradouro S. Pedro de Alcântara esteve 2 anos vedado com grandes custos para a Câmara, a Praça das Flores estará durante 20 dias vedada entre as 17h00 e as 00h00, com lucros para a Câmara, que podem ser aplicados na recuperação de mais espaços.
Vamos começar a ser mais sérios e tentar realmente perceber o que a maioria pensa em vez de dar voz a uma pequena minoria que na realidade só olha para o próprio umbigo em vez de pensar no que realmente o povo precisa."
Comentário Anónimo.
Caro Anónimo,
O caso da Praça das Flores é simbólico. De muitas coisas. Do desdém com que as instituições olham para os indivíduos, da casuística que orienta as opções urbanísticas da cidade de Lisboa, do desprezo do poder pela garantia da liberdade individual, da submissão da política à economia e aos interesses – privados – lesivos dos interesses, não de todos, mas da opção de cada um fazer aquilo que bem entende com a sua própria vida.
O tom do seu comentário decorre da lógica do “mas...”. “Mas” a marca de automóveis financia a reabilitação da Praça das Flores, “mas” é preciso encontrar formas “criativas” de participação dos privados na reabilitação da cidade. Só há aqui um pequeno problema de lógica. Ou de ideologia, se quiser. O espaço público é, numa democracia liberal, inviolável. Porque o espaço público é a concretização física, política, simbólica, do pluralismo, da diversidade, do debate, do contraditório, do confronto democrático. Está, portanto, acima de qualquer fractura ideológica.
Foi (mais) esta concessão da política, de quem nos representa, à erosão da democracia e do seu espaço simbólico, que me deixou perplexo no meio disto tudo. Isto, e claro, o disparatado dispositivo policial que lá está montado até dia 20.
A cidade não é o jogo do Monopólio. Não se compram ruas nem se passa pela casa da partida sem se receber dois contos. A cidade é a riqueza da circulação e do tráfego. Que proporciona rápidas trocas e inusitados encontros. E não apenas de mercadorias. De ideias, de amores, de frustrações.
Mas tentemos ser racionais – pudera eu despender de maiores quantias de dinheiro e “alugaria” a Praça das Flores todos os Sábados de manhã para ter um pequeno almoço descansado, acharia isto conveniente?
Mas tentemos ser racionais:
1. Como já vi espalhado por essa blogosfera fora, esta inquietação com a Praça das Flores só o é porque é o centro de um bairro em que vivem os “privilegiados”. Com mais voz blogosférica. Uma espécie de casta cibernético-cultural. Falácia que exala um certo ressentimento. Eu, morador do bairro, não me considero privilegiado. Aliás, uma das riquezas do bairro é, justamente, a diversidade de quem o habita. Ricos, pobres, remediados, novos, velhos, brancos, pretos, amarelos, portugueses, estrangeiros, deputados e putas, paneleiros e garanhões. O convívio com a diferença é o melhor antídoto contra o preconceito, assim como o conhecimento da história o é contra nostalgias reaccionárias de passados miríficos. Sempre circulei com segurança naquele bairro. A todas as horas e em qualquer circunstância. Dou-me ao luxo de parar num banco da Praça das Flores para fumar um cigarro e tomar balanço para subir a Rua Marcos Portugal, repito, a qualquer hora da noite ou do dia.
2. Decisões como esta resultam na “privatização” do espaço público, assentam numa ideologia de segregação e o consequente ressentimento. As imagens medievais, dos servos da gleba a mirarem ao longe a boda real são também aqui apropriadas.
3. Naturalmente tem que se encontrar uma solução política e urbanística, que envolva privados, na reabilitação da cidade. Os cofres da Câmara estão depauperados e tal deve-se a sucessivas catastróficas administrações. Presumo que um qualquer tipo de mecenato seria uma solução. Não serei naïve e saberei, com certeza, o peso do dinheiro e da necessidade que dele carece a tesouraria da Câmara Municipal de Lisboa. Não me chocaria o Rossio patrocinado por um sabonete, o Largo da Graça pela Moviflor, a Avenida 24 de Julho pelo Martini, etc, etc, etc. [O Terreiro do Paço será, em todo o caso, uma excepção.] Mas nunca soluções deste tipo, que vedam o espaço público aos cidadãos.
4. Todo este processo está eivado de hipocrisia. De quem em campanhas eleitorais se indigna facilmente com os jogos florais da política. Não esqueçamos que a Câmara Municipal de Lisboa é o palco de lutas político partidária nacionais que têm pouco a ver com os interesses da cidade. Como uma montra, um tubo de ensaio. E fica a cidade à mercê dos desmandos dos lobos com ar de cordeiros. Nunca ninguém pôs em causa a honorabilidade do Vereador José Sá Fernades, como apressada e freudianamente, o Daniel Oliveira e o Pedro Sales se prestaram a ilibar – e veja-se como tudo isto serviu para logo se entrar em mesquinho combate político-partidário. Está em causa, sim, uma decisão política intolerável. E reveladora.
5. A Praça das Flores não estava em tão mau estado que merecesse esta honra em prol da sua recuperação. Bancos sujos? Pintem-se. O repuxo está sujo? Então? Já reparou naquela cor brilhantemente escolhida com que o pintaram por dentro? Parece uma piscina para os 100m mariposa. As plantas estavam secas? Reguem-nas – ao que parece, a política da jardinagem neste município é também um mundo obscuro. Há praças e largos e becos de Lisboa com muito mais urgência em reabilitar. Quaisquer 5.000 euros serviriam para fazer a festa da Praça das Flores.
6. Todo o seu comentário está apontado para um problema que não é urbanístico. É cultural, ou antes, civilizacional. Se partem garrafas na Praça das Flores, a culpa não será certamente do jardim. E educar trogloditas é outra tarefa. Os bárbaros continuarão a sê-lo, mesmo depois do jardim arranjado. Não?
7. O anedótico disto tudo é que os executivos da Skoda, ao abandonarem o “evento”, não o fazem em Skoda. Fazem-no em Mercedes. Tem piada.
8. O nosso fado é esta eterna submissão. E diga-se, que essa lógica d'"o que o povo precisa" me recorda uns sabonetes que o Emídio Rangel queria vender há uns anos atrás.
praça das flores de aço#4
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- on 11.6.08
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- cidades, lx, portugal pós-moderno
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