o espaço fractal da morte


[Mãe e Filho, Aleksandr Sokurov, 1997]



Mãe e filho desfiam a memória no conhecimento mútuo da proximidade da morte. O lugar é o da memória, vagarosa e demorada, desencadeada pelo conhecimento do que se aproxima, pela paisagem sonora e visual fragmentada, pelas manifestação onírica do sonho partilhado e continuado que povoa a noite anterior. Somos convocados à memoria de nós próprios e à memória colectiva. Como um sistema de fractais, irrompe o inconsciente colectivo: os sons da infância que se confundem terrivelmente com os da morte; a coincidência, na casa, da alegria e da dor; passos; pássaros; vento, árvores; o assobio do combóio raro e distante; o assombro da morte; o peso da imperfeição do coração; Deus que perfura a consciência e abandona a alma.
O filho contém a sua vida ao carregar a mãe à morte. Uma Pietà inversa que se detém cativa da consciência da mortalidade. Fragmentos da tristeza irreparável, do amor que se eleva, da contemplação e compreensão do outro próximo, indícios de geometria fractal que compõe a precariedade das coisas e a conexão misteriosa entre nós e as coisas do mundo.
O paraíso perdido é o arquétipo desta paisagem. O espaço é fragmentado, pulverizado, como fracturas minúsculas do todo. Metafísico, como em Munch. A estrada que se bifurca como os caminhos que decidem a vida, as nuvens e a sua sombra errante como tristezas e alegrias que passam, a floresta densa e misteriosa e a ignorância humana sobre coisas, o esplendor do mar e o vento que sacode suavemente as ervas e que constituem a beleza de um mundo, consciente e inconsciente, que nos é dado e que não compreendemos. Que nos deixa espantados pela beleza. Que nos faz permanecer exilados do conhecimento. O mistério do amor e da morte que se atravessa entre nós e o nosso entorno. Infinitamente belo, infinitamente terrível.


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  1. Anonymous 5.10.09

    As lentas imagens da mãe moribunda e filho, do passeio verde, e do vento e do mar, tão excessivamente belas e pungentes que as queremos fixar, pintar, (re)ter em quadro … sim
    E a beleza de tudo isso, dos laços, dos colos, do amor mesmo que acabado ou interrompido? Só exílio, tristeza?

     
  2. João Amaro Correia 5.10.09

    caro anónimo:

    A voz solitária do homem


    Há palavras que escrevemos mais depressa
    o terror dessas palavras derruba
    o passado dos homens
    são tão pouco: vestígios, índices, poeira
    mas nada lhes é desconhecido
    as horas em que vigiamos o escuro
    os sítios nenhuns das imagens
    a ligeira mudança que resgataria
    o abandono, todo o abandono

    [josé tolentino mendonça]

     
  3. Anonymous 5.10.09

    as palavras que de tudo sabem?
    até da ligeira mudança?
    e o que fazem então?
    C.