hermenêutica de fim-de-semana#2

Mais que as múltiplas publicações da especialidade, regra geral ou acessíveis apenas aos iniciados, ou esvaziadas de qualquer motivação crítica, a prática arquitectónica colhe em maior divulgação se difundida nos canais ao alcance da média burguesia – que tem a capacidade, via procura, de poder alterar o panorama construtivo. E é a quem dispõe desta capacidade, inconsciente, que os arquitectos se devem dirigir, na produção de imaginários modernos e cosmopolitas. Ainda que um certo elitismo bafiento da classe despreze as aspirações da classe média, é com ela que a arquitectura poderá pretender transformar alguma coisa. Se é que pretende.
O Expresso deste fim-de-semana ilustra o que afirmo.

Eduardo Souto Moura não precisa de recorrer ao powerpoint para erguer um discurso denso e consistente sobre a prática da arquitectura. Também não lhe reconhecemos a veia pirotécnico-performativa, usual noutras latitudes, quadrantes e gerações, na exposição de um qualquer dos seus trabalhos. A justeza dos meios, a economia das palavras, o idioma de obra, resultam numa linguagem acessível e culturalmente rica. Interessa-nos tanto o que diz como o que faz, numa reprise de observações históricas feitas à acção de tantos mestres-arquitectos. Um discurso assim estruturado, e estruturante, terá a enorme vantagem de aproximar a prática disciplinar dos indivíduos mais cépticos à actuação dos arquitectos e da arquitectura. Não brilhará, como o sol na televisão, nos circuitos mais trend do coloquialismo arquitectónico. Deixa o rasto de um certo anacronismo comunicacional, mas não cede na complexidade cultural e crítica. É arquitectura pura e dura. Que alcançou a visibilidade que tem por valor próprio. A entrevista ao suplemento Espaços & Casas - haverá cabeçalho mais classe-média que este? - do jornal Expresso, é um abundante terreno de inspiração.

A primeira pergunta da entrevista alude prontamente a projectos imediatamente reconhecíveis pelo público. Obras públicas e museus, mas mais interessante que isso – Espaços & Casas – a entrevistadora Marisa Antunes recorre aos muito mediáticos empreendimentos Bom Sucesso e Vila Utopia. Para o bem e para o mal, facilmente se reconhecerá a pertinência destas empresas na transição para o mainstream de nomes importantes do reduto arquitectónico. Pese embora todas as contradições, decorrentes da situação do mercado e da sociedade, a que projectos deste tipo estejam sujeitos. Mas ao nomear o Bom Sucesso e a Vila Utopia a intenção será talvez situar o leitor no patamar de “excelência” da arquitectura de Souto Moura e legitima-la através de símbolos reconhecidos de qualidade. Perversa inversão dos termos a que o marketing nos conduz.
A franqueza de Souto Moura desconcerta o transcendentalismo com que os termos “criar”, “processo criativo”, “momentos de inspiração”, e outras "poéticas", são rezados – tanto por arquitectos como por críticos. Para Souto Moura a arquitectura “tem a ver com a vontade de resolver um problema”. Abrupta descida à terra, corte epistemológico, para quem espera da arquitectura e dos arquitectos – da arte e dos artistas – respostas definitivas sobre a condição disciplinar e o rumo da história. O pragmatismo, ainda que idealista, o realismo objectivo, solicita ainda os arquitectos a reflectirem sobre o óbvio: que a arquitectura, despida de todos dispositivos mediáticos tem de valer por ela mesma. É redundante apelar a uma “arquitectura sustentável” ou a um “edifício inteligente”. Ser sustentável, inteligente, e bonito, é, desde Vitrúvio, justamente, o propósito da arquitectura.

Uma certa objectividade entende-se também da entrevista de Gonçalo Byrne ao Expresso. Mereçe aqui mais atenção o que diz do que o que faz: Gonçalo Byrne reforça o vínculo da arquitectura com o real. Seja através da defesa da economia de meios e justeza das soluções, seja pela convocação da capacidade transformadora da arquitectura. Embora numa prosa mais “poética” e de acordo com termos – perniciosos - que aproximam o arquitecto mais do demiurgo do que do técnico capaz de resolver problemas de uma forma bela. Interessam-lhe a paisagem, e a interacção da arquitectura sobre o território – conceito amplo de realidades culturais, sociais, económicas, naturais - e a arquitectura como experiência existencial de contextualização – situação – do homem no mundo. Assume o risco e assume que, por vezes, a acção da arquitectura e transformação consequente do mundo, pode passar pela violência e pela ruptura. O compromisso da arquitectura com o mundo é também confronto, quer com a realidade, quer de realidades diversas.
Só depois deste confronto poderá aspirar a arquitectura transformar o ser. E essa experiência é já estética.


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