retórica insuportavelmente sentimental#2

É pena, sem dúvida, que uma parte tão grande do trabalho criativo esteja tão intensamente relacionada com a personalidade daquele que o produz.
É triste, embaraçoso e pouco interessante que as emoções que sacodem o artista a ponto de lhe exigirem expressão, cumulando-a de uma certa dose de luz e força, estejam quase sempre enraizadas, por muito modificadas que apareçam à superfície, nas preocupações pessoais, por vezes singulares, do próprio artista – esse mundo particular, cujas paixões e imagens cada um de nós vai tecendo do nascimento até à morte, uma teia de complexidade monstruosa, urdida – a uma velocidade incalculável e com uma extensão impossível de medir – por essa aranha que são as percepções singulares do artista.
É uma ideia solitária, uma condição solitária, e é tão aterrorizador pensar nela que normalmente não o fazemos. E por isso falamos uns com os outros, escrevemos, telegrafamos e telefonamos uns aos outros, de perto ou de longe, cruzando terra e mar, apertamos as mãos à chegada e à partida, lutamos uns com os outros e até nos destruímos uns aos outros, neste esforço algo frustrado de atravessar paredes em direcção ao outro. Como disse uma vez um personagem numa peça, “Estamos todos condenados a viver na cela solitária da nossa pele.”
O lirismo pessoal é o grito de um prisioneiro para outro, na cela solitária a que cada um está confinado durante toda a vida.

[...]

Tennessee Williams, Uma Palavra ao Leitor in Um Eléctrico Chamado Desejo e outras Peças



Mas continuo a dizer que sou um egoísta [...]

Eduardo Souto Moura in i, 05.10.2009


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  1. Maria José Fazenda 7.10.09

    O autor de "esquizofrenia crítica" cujo texto desencadeou estes teus dois posts, toca numa questão pertinente que, num futuro próximo, poderá verificar-se em muitas áreas: um excesso de produção teórica feita à revelia de reais motivações para a investigação, dissociada das práticas, das intervenções concretas no terreno, dos compromissos e responsabilidades para com a comunidade a que todos nós enquanto profissionais estamos obrigados. Associar a intervenção no terreno com a reflexão, e eventual aquisição dos graus, seria o ideal. Algo que tu fazes, João, como arquitecto e pensador sobre a profissão a que te dedicas. Essa é uma das forças da actividade de que és autor. A actividade crítica, creio, é outra praia.

     
  2. João Amaro Correia 8.10.09

    estaremos a falar de dois planos. o crítico e a praxis (esta envolverá necessariamente reflexão. para mais, não fosse a arquitectura um acto crítico).

    mas eu quis pegar naquilo que o pedro chama 'esquizofrenia' - e nesse sentido está correcto como forma de assinalar a dissociação entre a crítica e os objectos (o mundo) - e que chamei 'sufoco'.
    sufoco, porque a produção é tão díspare, tão i-reflectida, tão rápida, tão do momento, que acaba por elidir as propriedades e qualidades dos próprios objectos. live fast, die youg, make a beautiful corpse, disseram acerca da morte do james dean. pode-se dizer que com o tsunami crítico de que estamos rodeados é o que acontece à maior parte dos objectos.

    porra, estou a ter um ataque de ansiedade. vês? respiro, expiro, respiro, expiro. merda.

    j

     
  3. João Amaro Correia 8.10.09

    'díspar', claro.

     
  4. Pedro Machado Costa 9.10.09

    Não é que me queira intrometer na V. deliciosa discussão particular, mas aquilo que foi dito aqui referia-se à aparente inutilidade da produção teórica e/ou crítica sobre factos inócuos [como este exemplo]; cuja origem parece residir exactamente sobre aquilo a que JAC chama de sufoco [de esquizofrenia, na versão d'As Catedrais], e que se deve à aparente confusão que reina sobretudo nas academias. Não é preciso ir muito longe para confirmar a confusão: bastará dar uma vista de olhos aos temas "investigados" nos últimos anos pelas teses e dissertações um pouco por todo o lado, para se perceber que há uma grande dose de irresponsabilidade sobre o exercício académico. Porque ainda assim me parece que este deveria servir para alguma coisa.

     
  5. Priscilla Marchetto 12.10.09

    "O lirismo pessoal é o grito de um prisioneiro para outro, na cela solitária a que cada um está confinado durante toda a vida."

    o quanto nos faz pensar esse trecho...

    Já leu "A Paixão segundo G.H." de Clarice Lispector...n se relaciona c arquitetura, nem criação, mas uma outra óptica da vida, da existência..penso que iria gostar.

    =]