Harmonia e leveza triunfantes*


A colecção de imagens que Pina Bausch e os bailarinos do Tanztheater Wuppertal recolheram em Lisboa, mas não só, foi o pretexto para a construção de um espectáculo luminoso, de uma harmonia e de uma leveza triunfantes. Masurca Fogo, o espectáculo que foi anteontem estreado no Centro Cultural de Belém em Lisboa, no âmbito do Festival dos 100 Dias da Expo’98, está distante da densidade dramática de obras anteriores da coreógrafa, como Viktor ou Palermo, Palermo, onde o mundo era representado como um lugar de um peso, de uma desolação e de uma solidão insustentáveis, para dar apenas exemplos de obras que foram construídas a partir do mesmo modelo de Masurca Fogo: Pina Bausch e a companhia realizam um workshop na cidade que o espectáculo acaba por “reflectir”, mas de forma transversal, a fim de recolherem imagens que constituem as suas fontes inspiradoras.
Em Masurca Fogo não é só o universo de representação de Pina Bausch que se transforma. Por um lado, o lugar de primazia dado habitualmente aos movimentos realizados em coro é agora atribuído aos magníficos solos que se sucedem ao longo da peça, dançados por corpos que se precipitam da rocha aveludada que constitui o cenário, ou que dançam envoltos pelas imagens projectadas de uma viagem, do mar ou de flamingos. Estas imagens moldam-se tridimensionalmente aos recortes do espaço de cena, criando-se um impressionante efeito de fusão entre as imagens projectadas e os movimentos dos bailarinos. Por outro lado, os movimentos coreograficamente muito virtuosos — alguns deles, sobretudo os dos homens, são mesmo atléticos, como os dançados ao som dos tambores de Rui Júnior — ganham espaço e tempo às secções onde a expressão do corpo se socorre de outros elementos de teatralidade, como a voz, a representação, o gag.
Sabendo-se que as diferentes fisicalidades e experiências vividas dos bailarinos são transportadas para as peças de Pina Bausch, através de improvisações temáticas realizadas durante o processo de criação, e tendo a companhia sido recentemente renovada, sendo agora constituída por um grande número de bailarinos jovens, não será arriscado afirmar-se que estes também terão contribuído para estas transformações. Mas os métodos de construção — a fragmentação do tempo, do espaço, das referências sonoras e das acções e a sua subsequente sobreposição —, assim como a alternância de momentos intensos que representam experiências humanas e de situações descontextualizadas e caricaturas que criam momentos de humor, ou a genial concepção dramatúrgica, fazem de Masurca Fogo uma peça com a assinatura inconfundível de Pina Bausch.
O que é verdadeiramente inesperado em Masurca Fogo, se bem que já tenha vindo a ser esboçado em peças recentes da criadora, é que a relação tensa e difícil entre homens e mulheres dá lugar a um encontro intensamente harmonioso representado através da própria dança, sobretudo na segunda parte da peça. A linha de pares que, na primeira parte, serpenteia no palco ao som de uma morna desenvolve-se, no final do espectáculo, em fortes abraços e desfaz-se com os corpos, dois a dois, deitados serenamente uns sobre os outros. Bausch foi buscar estas imagens da dança a Cabo Verde e ao Brasil. Antes, as imagens filmadas de um concurso de dança — Dança Cabo Verde, edição 96 — enquadram o movimento de dois pares no palco. De repente, quando outros pares salpicam a plateia com o seu lento rodopiar, nós, espectadores, sentimo-nos também envolvidos no espectáculo. Noutra secção, os bailarinos constroem uma exígua barraca e, no seu interior, dançam ao som de valsas brasileiras.
Mas se esta harmonia luminosa é dominante, sendo reforçada pelo cenário branco e pelo desenho de luzes que em muitos momentos propaga uma intensa claridade — sobretudo durante alguns solos ou movimentos dos homens em grupo, como a secção das corridas —, a solidão e a nostalgia acompanham também os “habitantes” de Masurca Fogo. Logo no início da peça, uma mulher (Ruth Amarante), cujos suspiros incessantes são amplificados por um microfone, é deitada, sem reagir, sobre o corpo de um homem. Ouve-se cantar: “I feel so sad”. A nostalgia dança-se ainda em alguns solos de fluido esbracejar, como os interpretados por Dominique Mercy ou Beatrice Libonati (dois dos intérpretes mais antigos da companhia) sobre fados de Alfredo Marceneiro e de Amália Rodrigues.
A incomunicabilidade entre os homem e as mulher — um leitmotiv bauschiano — exprime-se também em Masurca Fogo, se bem que de forma mais leve, quase brincalhona: um homem e uma mulher, colocados frente a frente, empurram a cara um do outro com um brando safanão; um rapaz diz a uma rapariga que gosta dela, mas esta foge, depois a situação inverte-se, e quando finalmente revelam o desejo mútuo de se beijar, não são capazes de o fazer.
Outros temas caros a Pina Bausch, como os jogos dos adultos-crianças — a cena em que o rapaz vê as suas traquinices boicotadas por outro que o persegue, ou a cena em que várias pessoas nadam dentro de um plástico gigante — cruzam-se em Masurca Fogo com outras hilariantes paródias aos rituais cerimoniosos — quando um romântico par faz um brinde com champanhe partem-se as bases das taças; um homem despeja a água e as flores de uma jarra sobre a saia de uma mulher — ou aos comportamentos de alienação, como quando três comensais e um par de dançarinos ficam suspensos face a um televisor.
Em Masurca Fogo, Pina Bausch sobrepõe imagens recolhidas em Lisboa, ou melhor, Portugal, a outras captadas em Cabo Verde. Imagens filtradas pelo seu olhar e pelo dos seus bailarinos que nos são devolvidas num espectáculo de uma intensa luminosidade que ficará registado para sempre na nossa memória. Em fragmentos, secções, que se alinharão em ordem diferente ou se sobreporão.


* Crítica de dança publicado no jornal Público, a 13 de Maio de 1998.

Maria José Fazenda


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  1. A. 16.5.08

    [...o amor é a única actividade que vale a pena, como uma questão de sobrevivência...(já Rilke o dizia).]

    P.Bausch





    ...e ainda temos capacidade do espanto!

    :)