vamos, então, por partes

Reconhecendo a mistura de questões aludidas no post anterior, e que, por lealdade, o devo ao António.
O leitmotiv do post foi as várias notícias que têm vindo a lume nas semanas recentes e que culminou com a revelação das assinaturas ilícitas em projectos de engenharia/arquitectura, do nosso primeiro-ministro, (só este nubloso conceito arquitectura/engenharia, a propósito das assinaturas ilegítimas do primeiro-ministro, que existe ao arrepio da clarificação de competências, deveres e responsabilidades, no processo de projecto, é paradigmático da desordem em que os arquitectos e engenheiros actuam).
Mas esta semana, no que à prática profissional da arquitectura diz respeito, começou na semana passada com a notícia da repetição da eleição dos órgãos sociais da Ordem dos Arquitectos, por ordem da “decisão expressa no acórdão de sentença proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa”, dando razão aos argumentos do arquitecto Manuel Vicente. Ou seja, aparece-nos esta semana na imprensa matéria mais que suficiente para questionar-mos a actuação e, mais radicalmente, a necessidade da existência de uma Ordem dos Arquitectos.
Vamos, então, por partes.

Ao longo dos últimos 33 anos o pior inimigo da arquitectura e dos arquitectos foram os próprios arquitectos. Por diversos motivos, uns que os transcendem, outros que são de sua responsabilidade, somos chegados a um ponto de absoluto divórcio entre o que são os propósitos da OA - “contribuir para a defesa e promoção da arquitectura e zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de arquitecto, promovendo a valorização profissional e científica dos seus associados e a defesa dos respectivos princípios deontológicos” – e a realidade da prática da profissão. A justa batalha do 73/73 não servirá para encobrir a imensa zona de acção dos arquitectos de que a OA tem estado alheada. E ainda assim temo que a batalha do 73/73 seja vista mais como uma defesa corporativa de interesses – o alargamento do mercado de trabalho, via secretaria – do que a tentativa de reconhecimento da arquitectura como bem público que a todos os cidadãos diz respeito. E a cada novo problema que surge na prática profissional a OA tem acudido tarde e a más horas, e sempre com um vigor legislativo e impositivo eivado de vícios mais condizentes com um estado corporativo do que com uma democracia liberal que faz da livre iniciativa e do risco forças motrizes do progresso social. Comecemos pelo início

O acesso à profissão e os estágios profissionais.
A partir dos anos 1990 o número de estudantes de arquitectura aumentou exponencialmente. Em pouco mais de 20 anos passamos de uma situação de inexistência de arquitectos no território, cerca de 2000, que não respondiam às necessidades do mercado da construção – e daí o Dec. 73/73 - para um número superior a 10000 arquitectos. Evidentemente num mercado exíguo e limitado haverá quem não tenha trabalho. E naturalmente a quantidade não será necessariamente proporcional à qualidade. Daí a tentativa da OA impor alguma ordem no acesso à profissão. Só que o faz em termos que contrariam a liberdade individual e a própria Constituição da República. Passando alguns discursos que defendem o absurdo da atribuição de números clausos e o estreitamento do acesso a aos cursos de arquitectura que não seja por (de)mérito dos candidatos, discursos assentes numa suposta defesa do interesse público e das próprias vidas desses vindouros arquitectos, mal disfarçando o temor da concorrência aberta, a OA prevê que apenas possam aceder à profissão indivíduos que ela própria credita. A situação de monopólio é intolerável, não a desculpando um suposto interesse público que a OA ostenta. O interesse público é da arquitectura e não da instituição OA. Ou seja, em vez de se aligeirarem os trâmites de acesso à profissão, erguem-se burocraticamente obstáculos à livre concorrência. Numa república de boa-fé, a simples acreditação pelo Ministério do Ensino Superior, ou por uma putativa Agência de Acreditação e Avaliação do Ensino Superior, dos cursos leccionados, seria suficiente para o reconhecimento do percurso académico do indivíduo que deseja ser arquitecto. Mas a nossa proverbial desconfiança no Outro e nas instituições faz-nos complicar aquilo que aparentemente é simples.
Os procedimentos exigidos aos estagiários têm como destino a dispensável acumulação de papelada e o desprendimento burocrático dos “patronos” sobre os estagiários, muitos deles tratados como escravos, a custo 0, qual carne para canhão que daqui a 9 meses haverá mais uma fornada de carne fresca para alimentar os escritórios estabelecidos. O atmosfera de fundo é a da desconfiança e do medo. Desconfiança na credibilidade dos cursos ministrados e nas capacidades técnicas dos recém-licenciados, o medo das hordas de jovens ávidos de sucesso nesta profissão.

O trabalho em regime liberal.
Trabalhar em regime liberal é entrar na selva. Nesta profissão, neste país, é o espelho daquilo que somos enquanto sociedade.
A escassez de trabalho e o fenómeno recente da concentração do trabalho, conduz-nos a uma situação que divide os arquitectos entre os grandes escritórios, vulgo tubarões, e os escritórios de vão de escada que se alimentam de moscas.
Angariar trabalhos, para os pequenos escritórios, é uma peripécia quase ao registo Buster Keaton. É ter que lidar com clientes que fogem para os braços de colegas, concorrentes, que de dentro ou na teia das câmaras, sabem “fazer as coisas”. É ter que concorrer com assinaturas ilícitas que defendem tudo menos a arquitectura. É tentar concorrer com estruturas que já têm a mecânica dos interesses bem oleada. É fazer arquitectura como quem enche chouriços, com todo o respeito pelas chouriceiras.
Ou é ter que trabalhar anos a fio, por conta de outrem, a passar um recibo verde que corresponde a um futuro cinzento.
Por isso é que a cada nova obra com interesse arquitectónico que (ainda) vamos descobrindo por estas estradas nacionais fora, assistimos a um pequeno milagre da vontade e de quase excepcionais cruzamentos do destino, que deveriam ser a regra.

O trabalho no regime de funcionalismo público.
Os mal amados pelos arquitectos que trabalham em regime liberal. Quer por culpa própria, quer por uma realidade que os ultrapassa, são o elo mais fraco na cadeia dos licenciamentos de projectos de arquitectura. Vivem numa espécie de limbo, entre as muitas pressões políticas que se lhes sobrepõem e a teia legislativa que os sobrecarrega na avaliação técnica de um projecto de arquitectura.
Quer trabalhem em autarquias, quer em instituições públicas com deveres no licenciamento de projectos de arquitectura, a galáxia legislativa é de tal modo densa e complexa – e com os inevitáveis buracos na lei – que os miríficos 30 dias para emissão de um parecer sobre o projecto em avaliação, previstos no Dec. Lei 555/99 de 16 de Dezembro, são apenas isso: uma miragem que tem pesadas consequências tanto a montante como a jusante do momento da apreciação. E com evidentes efeitos na qualidade da prática da arquitectura, na paisagem e no ambiente do nosso território.
E nos buracos da lei vamos vendo os arquitectos, funcionários públicos, que se “sabem mexer”, alargando uma teia de influências e pequenos poderes discricionários que chegam ao ponto de recomendar determinados escritórios de arquitectos como condição para “aligeirar” as demoras em projectos que envolvem sempre muito dinheiro. Uma espécie de chantagem corrupta que, como um eucalipto, absorve tudo à volta: o trabalho que vai aparecendo para arquitectos “de fora” e que é desviado para estes esquemas imorais de assinaturas ilícitas ou traficadas, a idoneidade de colegas que são encobertos pela suspeição generalizada, a ineficiência da administração pública.
Em última análise, bastaria o Termo de Responsabilidade do técnico para o deferimento de um processo e um vínculo de exclusividade dos arquitectos que escolhem uma vida de serviço público. Uma forte componente fiscalizadora, por parte das autarquias, a jusante desse deferimento. Consequentemente haveria um curto-circuito nos processos, a eliminação de burocracias, a remoção das influências políticas no sector das construção – remetendo a política para aquilo que deverá ser a sua competência, na definição de estratégias de desenvolvimento urbano integrado – o fim da casuística como ponto cardeal da aplicação Planos Directores Municipais, a impossibilidade de tráfico de influências “dentro” das entidades a quem compete a emissão dos pareceres.
A lei e os seus labirintos, num Simplex, a partir de Março, feito na voracidade de uma superficial “reforma da administração pública”, que apenas produzirá mais equívocos e canais abertos à pequena corrupção. Que em vez de responsabilizar cada vez mais o técnico dos projectos, diminuindo o volume de requerimentos e imposições legais, de obstáculos, que distanciam e desresponsabilizam os técnicos que “assinam” os projectos, e proporciona a discricionariedade de muitos serviços administrativos. A lei e os seus labirintos, que conduz promotores e construtores à certeza de verem o retorno dos seus investimentos e que não os querem ver "parados" por coisas tão insignificantes como a arquitectura.

São alguma inquietações que pelos vistos não chegam ao altar da OA. Perdida nos “banhos de S. Paulo”, no glamour da vernissage, numa torre de arquitecturas virtuais, alheada das dificuldades com que os arquitectos se deparam quotidianamente, em prejuízo da arquitecura, do ambiente, e do bem público. É por isso que é pertinente questionar a necessidade de uma Ordem.
Não há aqui virtuosos ou maldosos. Ou melhor, há-os tanto como em qualquer outra profissão, e na arquitectura, tanto os há no regime liberal como no funcionalismo público. O que há aqui é uma batalha ética que tem de ser travada, primeiro dentro da classe, para depois a Ordem poder alegar autoridade na mais ínfima matéria. Só depois disso.


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  1. AM 2.2.08

    nem sei o que dizer...
    olha, um abraço

     
  2. João Amaro Correia 3.2.08

    pq?
    diz, pá, diz!

     
  3. Anonymous 4.2.08

    "Em última análise, bastaria o Termo de Responsabilidade do técnico para o deferimento de um processo e um vínculo de exclusividade dos arquitectos que escolhem uma vida de serviço público"
    Nem mais. E,já agora, PDMs em condições e autarcas que não os cumprem na pildra.
    JFC