boutade

Como qualquer capciosa e definitiva afirmação, que proclama tudo e o seu contrário, Nikos Salingaros incorre no mesmo equívoco de que acusa o Movimento Moderno. Com alguma paciência suportam-se as cinco partes da entrevista que nos chega via Complexidade & Contradição.
Primeiro há a perplexidade por tão assertivas palavras: contemporary architecture is all wrong. A soberba também pode abrir portas de sentido inverso: contemporary architecture is all right. Mas não nos impeça a retórica ardilosa, o anátema é sempre de efeito boomerang.
A arquitectura não é uma ciência, não se resume ao método experimental, nem, jamais, poderá ser testada apenas pela observação empírica. A experiência da sensibilidade e dos sentimentos não será a fonte única do conhecimento. E aqui começa a duvidosa retórica.
Era justamente este o ethos “cientificista” e progressista do moderno que merece agora esconjuro de Nikos Salingaros, que utiliza o mesmo discurso de testabilidade, tentativa e erro, para a arquitectura.
Depois de devidamente vergastado o modernismo, a “insensibilidade” e “agorafobia” de Le Corbusier – parece que é moda - o arrazoado prossegue ao acusar o Moderno de mera agitação propagandística com uma agenda outra que não a reflexão sobre a arquitectura e as cidades. A nefasta visão moderna que, não tendo sustentação histórica e “humanista”, se alcandorou à posição dominante do pensamento arquitectónico. Uma espécie de pensamento único. E é verdade que o foi. E é verdade que o marxismo foi determinante na própria produção teórica e prática do modernismo. Zeitgeist. Mas contar a história a meio, fundada em estórias, é tão parcial e pernicioso que raia a manipulação. E este é o caminho mais perigoso da teoria. O caminho que atraiu muitos. Um caminho que está sempre ao serviço de um poder.
A teoria aqui deixa de ser a produção de pensamento, de reflexão crítica sobre o objecto arquitectura, e passa bandeira e estandarte uma qualquer facção. Descritivos, explicativos ou normativos, os textos teóricos têm uma função essencial na discussão e no pensamento arquitectónicos. Para além de preservarem a tradição estruturam os princípios da prática arquitectónica. E o que esta entrevista denuncia é uma deliberada manipulação dos textos para se chegar à dissolução de toda a prática moderna e contemporânea e a partir das cinzas reconfigurar o mundo à medida das virtualidades do, aqui ultra-conservador (para não lhe chamar nazi), novo-urbanismo (que o não é).
A partir das “definitivas” soluções oferecidas por Christopher Alexander, um conjunto de leis que determinam a estrutura da cidade, de um edifício ou de um compartimento, com pretensões universais que se pretendem legitimados pela ciência – não por acaso uma enfermidade muito Moderna, a da ciência legitimadora – exala o odor de uma metafísica new-age orientada pelo determinismo histórico. Uma ontologia final, com soluções finais.
Depois de devidamente manipuladas a ciência e a história, a difusão proselitista destes conversos – fanáticos como todos os convertidos – é aberrante. Livre-mo-nos destes mundos fechados, exclusivos, determinados e inumanos. Não fossem tão perigosos, tudo isto não passaria de uma boutade.


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